Opinião

O IAB na contramão do descaso com a educação jurídica

Autor

  • Rita Cortez

    é advogada presidente da Academia Carioca de Direito e ex-presidente nacional do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros).

3 de setembro de 2020, 12h05

O dia 11 de agosto de 1827 foi a data da abertura dos primeiros cursos de Direito e de Ciências Sociais em São Paulo e Olinda. Marco inaugural da educação jurídica no Brasil, a criação dos cursos precedeu e serviu de estímulo a fundação do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros (IOAB), em 7 de agosto de 1843.

A pátria livre e independente de 1822 carecia da organização de um Estado soberano, sendo vital a criação de uma entidade dedicada à construção e à formação de um sistema de normas legais e constitucionais genuinamente brasileiro. A nossa jovem nação passou a investir no intercâmbio de ideias entre os estudantes de Direito egressos dos cursos recém-criados e os advogados já ativos, para uma atuação conjunta nos campos político e legislativo, em prol da gradativa substituição da legislação portuguesa.

Coube ao Instituto dos Advogados Brasileiros produzir, desde então, o conhecimento na área do Direito, encarnar a formação da inteligência jurídica do país e assumir, ao longo dos seus 177 anos, a defesa das liberdades, da democracia e do estado de direito. A salvaguarda desses direitos sociais e das liberdades democráticas pela advocacia é item essencial à construção de uma sólida educação no segmento da Justiça e do Direito.

Como casa de educação e cultura, o IAB não poderia deixar de lembrar o histórico 11 de agosto como uma data especial, dedicada a exaltar a educação jurídica no país, apesar do quadro desalentador. Desmotiva falar de educação quando tomamos conhecimento que o Ministério da Defesa receberá no próximo ano investimentos orçamentários de R$ 5,8 bilhões a mais do que o da Educação. E que os cortes no orçamento de 2020 atingirão a Educação na ordem de 13%. É a primeira vez que o orçamento da Defesa supera o da Educação em valores absolutos.

As notícias não surpreendem. O governo brasileiro, nos últimos tempos, atua muito mais no sentido de blindar e oferecer benefícios aos militares, ignorando, em contrapartida, o descalabro das políticas públicas voltadas à educação, à cultura, às artes e à pesquisa, atividades conexas à liberdade de expressão e de pensamento.

A existência de uma brutal repressão na área do conhecimento científico, a retração financeira e a interferência na autonomia universitária também não são novidades, vide o documento oficial do MEC estimulando alunos, pais e professores a identificarem a promoção de eventos (manifestações) tidos como "subversivos" ou "fora de ordem", para punição de seus organizadores. Apesar da proibição prevista no nosso ordenamento jurídico, incentiva-se a censura, notadamente a de natureza política e ideológica.

A educação tem aptidão libertária. Num contexto de desigualdade social profunda, o descaso por parte das autoridades públicas serve exclusivamente para promover a barbárie. Triste exemplo dessa constatação é o caso do sofrimento impingido à menor estuprada, vítima de violência familiar e de setores fanáticos e fundamentalistas da própria sociedade, na maioria dos casos movidos e influenciados pela ignorância.

A agravar o quadro, o Ministério da Economia cogita que não haja o censo demográfico de 2020 e, no projeto de reforma tributária, o ministro Paulo Guedes afirma que implantará a taxação da venda de livros, cuja isenção remonta a 1946. O mercado de livros é protegido pela Constituição Federal no seu artigo 150 e a isenção de cobrança de determinadas contribuições está prevista em lei aprovada em 2004 (Lei 10.865). Como bem disse o jornalista Bernardo Mello Franco, "estamos perante um governo cuja tônica é mais armas e menos livros".

O acesso aos livros e à educação são direitos sociais. É um direito de todos e um dever do Estado conforme previsto na Constituição no seu artigo 6º. Os princípios que norteiam a educação são os da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte, o saber e o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (artigos 205 e 206 da CF).

No caso específico da educação jurídica e do ensino do Direito, a desídia dos órgãos de governo não discrepa. As iniciativas no sentido da ampliação da oferta de cursos universitários (desde 2018 foram criados mais de cem cursos de Direito) não estão sendo pautadas nas demandas sociais, mas em interesses meramente econômicos e mercantis, fazendo com que o Brasil seja o país com maior número de faculdades de Direito no mundo. São mais de 1,5 mil cursos para formar bacharéis.

O aumento vertiginoso de 539% ao longo dos últimos 20 anos está longe de significar qualidade. O exame da OAB entra nesse cenário para funcionar como principal instrumento de avaliação das faculdades de Direito, na ausência de um sistema de monitoramento pelos órgãos públicos responsáveis pela educação. Esses exames têm demonstrado que certos padrões mínimos na qualidade da graduação são imprescindíveis para que seja oferecida aos bacharéis de Direito uma formação acadêmica adequada e compatível com a valorização da advocacia.

Por outro lado, a ameaça de extinção de cadeiras universitárias na área das ciências humanas, como Filosofia e Sociologia, sob o falso argumento de não serem uma exigência das famílias, tentam afastar os estudantes universitários de uma postura social crítica, colocando a educação num fictício patamar de neutralidade política e ideológica.

A superação de crises (econômicas e sociais), incluindo as provenientes da pandemia, deve ser fundada na cuidadosa promoção da educação, desde a educação básica ao ensino universitário, porque através dela é possível buscar o pleno desenvolvimento da pessoa, preparando-a para o exercício da cidadania, e não apenas para uma melhor qualificação no trabalho.

As dificuldades são imensas, como saber lidar com os inevitáveis impactos decorrentes do veloz avanço da tecnologia, que cria empecilhos de acesso digital para os estudantes pobres, ou, ainda, da dívida histórica para com a educação da população negra.

Diante do agravamento de problemas sociais pré-existentes, especialistas defendem que é preciso rediscutir e redimensionar o papel do Estado. Todos os governos no mundo pós-pandemia, provavelmente, serão cobrados a solucionar moléstias sociais e políticas antigas, como reduzir a desigualdade de renda; fortalecer os serviços públicos básicos; impor ações estratégicas que atendam às demandas essenciais da população, entre as quais a educação e o ensino. São providências que implicarão certamente em mudanças nos gastos públicos e no sistema tributário, e teremos de estar preparados para isso.

Em quase todo o mundo, exceto no Brasil, a ideia do Estado-nação, garantidor dos direitos sociais, está em franca ascensão. Portanto, no mês de comemoração da advocacia, temos mais um motivo para refletir sobre essas questões, principalmente as que envolvem a educação, incluindo as particularidades da educação jurídica, posto que são da maior importância para a evolução e o progresso de uma nação e de seu povo.

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