Opinião

O que é estudar direito penal? E como se estuda?

Autor

  • Hamilton Gonçalves Ferraz

    é advogado doutor em Direito pela PUC-Rio mestre em Direito Penal pela UERJ professor de Direito Penal e Prática Penal (Unesa) e ex-professor substituto de Direito Penal e Criminologia na UFRJ.

3 de setembro de 2020, 15h12

Para o estudante de direito de primeiro, segundo período, o direito penal é caracterizado de inúmeras maneiras. Conforme a experiência de sala de aula demonstra, a maioria destas representações iniciais tende a perceber o direito penal um pouco como "o direito da maldade humana": um ramo do direito que se ocuparia, essencialmente, daquilo mais abjeto, reprovável, injustificável do ser humano. Aulas introdutórias que seriam dedicadas ao estudo dos princípios, regras fundamentais, limites intrínsecos ao direito penal tornam-se menos interessantes do que o desejo de certa "criminalística de boteco" que habita no estudante. Um pouco como um seriado ao estilo "Criminal Minds", com elementos de "Tropa de Elite", e alguns (excepcionais) casos de impacto, de crimes "terríveis", fora da curva, incompreensíveis ao ser humano — desde já considerados fora da razão, mas que, por algum motivo, o estudante teima que o direito penal lhe forneceria alguma resposta, alívio, "solução".

Curiosamente, o estudante tende a já chegar com a "solução" para o professor — a despeito de sequer ter tido contato com a literatura jurídica especializada. Se na aula de direito civil, o aluno escuta, escreve e aceita, sem maiores dificuldades, as lições, por vezes controvertidas, de direito contratual; nas aulas de administrativo, mesmo diante das mais aberrantes formas de intervenção do Estado na propriedade que persistem no direito brasileiro, que destroem lares de famílias pobres inteiras no varejo do direito; nas aulas de direito penal, o aluno vem com ao menos uma certeza: punir — punir o que não se concorda, punir o que ou quem não se gosta, punir o que não se entende. Certeza fácil, rápida, analgésica, anestesiante, e por vezes inebriante; por isso mesmo, muitas vezes errada. Com um aspecto grave: errar em questões criminais custa futuros, famílias, sonhos, vidas, às vezes (e na maior parte delas) irreparavelmente.

O título desta fala é "por que estudar direito penal". Antes de compreendê-la, é necessário compreender uma pergunta prévia: o que é estudar direito penal? E como se estuda? Vamos começar a responder pelas negativas: estudar direito penal não é através de reportagens sensacionalistas; não é o que você acha que sabe; que leu em algum lugar; por fim, não é sua vivência particular, sua visão de mundo, suas experiências do que sofreu ou passou, ou do que pessoas próximas a você passaram — embora eu respeite e reconheça que essas vivências são quase decisivas para a formação de opiniões sobre a questão criminal, às vezes de forma irreversível.

Estudar direito penal é, antes de mais nada, estudar um ramo do saber jurídico. Cumpre sabermos qual objeto deste saber.

Quando se pensa, por exemplo, em temas como Polícia, Ministério Público, Tribunal do Júri, Prisões, "Criminosos", "Vítimas", se pensa em direito penal? Sim. Porém, estes são temas que atravessam um dos objetos do saber jurídico-penal: o poder punitivo, as agências do sistema penal.

Uma segunda linha de resposta diria que o objeto de estudo é a "Lei", a legislação penal, em uma visão, até mesmo, constitucional. Aqui, estaríamos a falar da lei penal, da "programação criminalizante", como dizem alguns penalistas.

Porém, o direito penal enquanto saber jurídico não se confunde nem com o primeiro objeto, nem com o segundo; não depende de um nem de outro; não está à disposição de um ou outro; não se reduz a um ou outro.

O direito penal, enquanto saber jurídico, é ciência — e como tal, construída por razões e argumentos, não por sensacionalismo, apelo, choque. Mas não uma ciência natural, exata, que buscaria verdades cristalizadas e consolidadas eternamente. Por outro lado, não é uma ciência puramente dogmática, ou filosófica. Por seu impacto inegável na realidade social, o direito penal é melhor compreendido no âmbito das ciências sociais aplicadas.

O que busca essa ciência?
Aqui, devemos fazer uma pausa para observarmos certo descrédito por que passam as humanidades, as ciências humanas, desde já algum tempo. De certo modo, parece haver maior prestígio nas chamadas ciências exatas, médicas, médico-biológicas, ou, atualmente, nas ciências econômicas. Isso não é à toa: quando se pensa na construção de grandes feitos, grandes obras de engenharia, tecnologia avançada, avanços médico-científicos, novos combustíveis, novos computadores, smartphones, aplicativos. É compreensível este maior prestígio.

Contudo, peçam a essas ciências, perguntem a médicos, engenheiros, economistas para apresentarem, conceituarem, definirem o que seja liberdade; desenharem igualdade; definirem respeito e tolerância, por exemplo. Por evidente que nossas vidas são muito mais fáceis com smartphones; são mais duradouras com vacinas e remédios; mas são insuportáveis e inviáveis sem liberdade, igualdade, respeito, tolerância, entre outros direitos.

Isso é o que compete ao direito, e, mais sensivelmente, ao direito penal. Pensar em crimes, penas, em todo o sofrimento com que lida o direito penal só se justifica se essas reflexões atenderem a esses valores — que, hoje, são representados pela expressão “Direitos Humanos”.

E mais. O direito penal existe, também, porque, em um dado momento da história, mais precisamente, no iluminismo, percebeu-se que o Estado, o governante não podia exercer poder como quisesse. Não poderia punir como quisesse. Que liberdade, igualdade, respeito, os direitos humanos dos cidadãos não podiam ser deixados de lado nem mesmo ao se punir àqueles que violam a lei, sob pena deste poder punitivo se tornar ainda mais violento e censurável do que o ato daquele que viola a lei penal.

Essa é a preocupação principal do direito penal. E por quê? Porque sem essa preocupação, simplesmente não precisaríamos de direito penal, que talvez sequer teria este nome, sendo não mais do que alguma técnica de punir a serviço do Estado, no máximo um ramo administrativo (se tanto).

Com isso, voltamos à pergunta inicial, ainda não respondida: por que estudar direito penal?

Porque diante de tudo isso, estudar direito penal é estudar um ramo do direito que, pela grande sensibilidade dos temas que envolve, e pela extrema gravidade de suas consequências na vida das pessoas, nos toca mais fundo em nossa cidadania, aqui compreendida, sem maiores preocupações terminológicas, de acordo com o que esperamos e o que almejamos como cidadãos, como queremos ver nossos conflitos resolvidos, como queremos ser respeitados — pelos demais e pelo Estado.

Contudo, no direito penal ocorre uma forma bastante singular de se querer respeito: através da aplicação de dor. No direito civil não parece tão problemático obter-se respeito e segurança por meio de indenização, reparação, conciliação; o direito administrativo convive com multas e sanções pecuniárias em favor do Estado. O direito penal, por sua vez, quer preservar a vida, a liberdade, o patrimônio, entre outros direitos através da imposição de violência e medo, consagrados na sanção estatal atribuída a um certo número de condutas reconhecidas como infrações penais. Como se vê na realidade de periferias, favelas e comunidades menos favorecidas, medo e violência são inclusive — e principalmente — impostos para além da pena estatal, como as incontáveis chacinas policiais  (algumas das quais que já levaram o Brasil a denúncias e condenações internacionais) tragicamente demonstram.

Que tipo de sociedade se pretende construir através do medo, da violência e do sofrimento? Uma sociedade de dores, rancores coletivos e paranoia, que só produzem mais dores e mais paranoias? Não à toa, como ainda estudaremos, a chamada "teoria da retribuição" da pena, que atribui à pena uma função de retribuir o mal causado, é, de longe, a mais criticada e repudiada: vestindo-se da nobre roupagem da justiça, esse argumento vazio, despreocupado com qualquer consequência na realidade social, encobre quase sempre a vingança, o ódio sobre o outro, que nada tem a ver com justiça.

Por paradoxal que possa parecer, o direito penal só pode atender bem aos seus propósitos — insisto, de garantir e efetivar direitos humanos — se não se deixar seduzir, entorpecer pela euforia e êxtase — momentâneos e passageiros — da violência, da punição, da dor.

Violência, porém, é antes de uma questão de razões, é questão de sentimento, de emoções, de preconceitos, ódios, rancores, vivências, que, estes sim, passam a produzir razões correspondentes e coerentes. Razões muito poderosas, influentes e perigosas. Por isso, é preciso muito cuidado com o direito penal, pois o que pensamos, teorizamos, construímos intelectualmente, destroi vidas, como uma "ciência destruidora de vidas" (expressão de um querido amigo, em uma de nossas conversas). O que foi o direito penal nazista, o direito penal de estados totalitários senão isso? O que não representam as prisões no nosso Brasil de 2020, as condenações com base em depoimentos vagos (quando existem), falta de provas, e argumentos do tipo "o réu possui a personalidade voltada para a prática de delitos" — quando não é a sua própria cor da pele, explicitamente, que é utilizada como argumento para justificar sua punição?

Como sempre leciona a professora Vera Malaguti Batista, "não basta pensar a questão criminal, é preciso sentir a questão criminal".

Por que, então, estudar direito penal? Porque é preciso aprender a sentir a questão criminal. Aprender empatia com o sofrimento humano, esteja onde estiver — estirado no chão com tiros em seu peito, nas suas costas, ou trancado e esquecido em celas imundas repletas de passado, maldade, culpa, rancor, vergonha, humilhação, e, através desse aprendizado, construirmos razões coerentes e compromissadas com objetivo maior de reduzir dor e sofrimento desnecessários. Talvez assim possamos aprender mais do que direito penal, ou mesmo direitos humanos: possamos aprender e reaprender mais sobre nós mesmos, o que, numa sociedade que, como a nossa, é tão apegada à violência (sofrida e infligida, tanto oficial como extra-oficialmente), é tarefa urgente. Difícil, desafiadora, mas libertadora. Eis a primeira tarefa que lhes convido a fazer como meus alunos. Um excelente semestre e um excelente curso a todas e a todos.


[1] Texto revisado que reduz por escrito minha palestra de abertura de semestre na Semana de Boas Vindas aos Calorous de Direito da Universidade Estácio de Sá, Campus Nova Friburgo (RJ), que se deu em 27/08/2020. Dedico o texto à aluna Brenda Isabela Norberto Oliveira, como forma de gratidão ao feedback que me deu por sua primeira aula de direito penal no curso.

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    é advogado, doutorando em Direito (PUC-Rio), mestre em Direito Penal (Uerj), bacharel em Direito (Uerj), professor de Direito Penal e Prática Penal (Unesa) e ex-professor substituto de Direito Penal e Criminologia (UFRJ).

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