Opinião

Dedução de despesas com saúde não é benefício revogável

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2 de setembro de 2020, 6h35

Na famosa cena do balcão de "Romeu e Julieta", Julieta, inconformada por ter de odiar Romeu apenas por ele ser um Montéquio e ela, uma Capuleto, faz uma reflexão: "Mas o que há em um nome? Uma rosa, com qualquer outro nome, teria a mesma doce fragrância!". Em outras palavras, menos poéticas, o que importa é a substância das coisas, não seu nome.

Aplicando a mesma noção ao Direito Tributário, já afirmou o Supremo Tribunal Federal: "Se a lei pudesse chamar de compra e venda o que não é compra, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição" (RE 71.758). Mais uma vez, o nome dado não transforma a substância das coisas.

Logo, na vida e no Direito devemos estar atentos à substância por trás do nome.

A lembrança desses trechos é valiosa no presente momento, em que se discute possível reforma tributária envolvendo o imposto sobre a renda. Volta e meia são dadas declarações ou são veiculadas notícias no sentido de o Ministério da Economia cogitar a eliminação ou a redução de "benefícios do imposto sobre a renda", entre as quais as deduções com despesas com saúde e com educação de pessoas físicas. Os comentários despertam imediato questionamento: essas deduções seriam realmente benefícios, graciosamente concedidas pelo legislador federal? A resposta é negativa e essas sugestões contrariam abertamente a Constituição, de modo a merecerem firme repúdio.

Realmente, a Constituição concede competência à União Federal para tributar a renda e proventos de qualquer natureza. Embora existam divergências quanto ao exato conteúdo e alcance dessa competência, em geral aceita-se que o imposto sobre a renda, o IR, visa a onerar acréscimos patrimoniais ocorridos em determinado período de tempo, em linha com o prescrito no Código Tributário Nacional. O STF, assim, manifestou-se em vários julgamentos.

Há, portanto, um conteúdo mínimo do conceito constitucional de renda, que se alia a princípios e outras regras constitucionais para que se possa saber até onde vai a competência da União Federal para tributar a renda. É certo que o legislador tem discricionariedade razoavelmente ampla para formatar o IR. Por exemplo, pode estabelecer as alíquotas e tratar certos rendimentos e receitas diferentemente de modo a incentivar certas condutas. Não pode, porém, pretender tributar, a título de imposto sobre a renda, o que não for renda.

Ora, para configurar-se a renda — o acréscimo patrimonial em certo período temporal — é obrigatório respeitar a dedução de despesas que viabilizem, para a pessoa jurídica, o exercício de sua atividade econômica e, para a pessoa física, a sua própria existência, na complexidade do mundo atual.

Daí que, para as pessoas físicas, não se pode falar em imposto sobre a renda sem que sejam dedutíveis despesas mínimas, entre as quais aquelas despendidas com saúde e com educação. Registre-se que está sendo debatida em tribunais a constitucionalidade do limite atual dos gastos com educação. Ainda que se entenda constitucional fixar um valor máximo de dedução, para evitar o abatimento de montantes muito superiores aos necessários para garantir uma educação de qualidade, o valor de dedução atual, de pouco mais de R$ 3,5 mil por ano, afigura-se irrealista. Contudo, é, ao menos, alguma dedução.

Já em relação às despesas com saúde, porém, não se admite limite. Os gastos, não importam quão elevados, visam a garantir a saúde e até a sobrevivência do contribuinte. As pessoas não gastam recursos com saúde desmotivadamente, sem que eles sejam necessários para manutenção de boas condições físicas. Por isso, esses gastos, não importa o quão elevados, são despesas necessárias e devem ser deduzidos para identificar o montante da renda auferida por uma pessoa física.

Assim, a despeito de, como antes mencionado, a União Federal ter certa discricionariedade para formar a base de cálculo do IR, ela não pode transpor o conteúdo mínimo do conceito de renda, vedando a dedução de despesas necessárias. Se desconsiderá-las, ainda que seja mantido o nome "imposto sobre a renda", o que será tributado não será a renda, mas outra substância, como receitas e rendimentos.

Chamar despesas, cuja dedução é imprescindível para identificar a renda, de benefícios, é distorcer a realidade. Não importa se com isso tenta-se angariar a simpatia de alguns e viabilizar uma reforma tributária. A adoção de nome impróprio — "benefício" —, onde somente há obediência mínima à Constituição é estratagema simplório que não resiste a mais básica análise jurídica. É, via manipulação de palavras, fraudar a Constituição.

Frente à tentativa de distorcer a competência de tributar a renda, deve-se refletir: o que há em um nome? O direito a deduzir despesas com saúde e educação, para identificar a renda auferida, tem a mesma firme imposição constitucional com qualquer outro nome. Chamar de benefício o que é direito dos contribuintes é tentativa canhestra de se furtar aos soberanos limites constitucionais.

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