Opinião

Portaria do Ministério da Saúde sobre aborto legal precisa ser revista

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2 de setembro de 2020, 12h51

Foi noticiado pela imprensa o caso de uma menina de dez anos que obteve na Justiça o direito de interromper uma gravidez de 22 semanas, decorrente de reiterados abusos sexuais praticados por seu tio. Tanto o processo que autorizou a interrupção da gravidez quanto a investigação em desfavor do autor tramitam em segredo de Justiça, de forma que não é possível inteirar-se dos eventos documentados e como ocorreu em termos legais.

A partir desse marco, é de grande importância tomar conhecimento e avaliar o procedimento legal adotado nos casos de interrupção de gestação decorrente de estupro, principalmente quando trata-se de vítimas crianças ou adolescentes. O tema é pertinente na medida em que no ano de 2019 o Brasil teve registro de 72 abortos legais em meninas de até 14 anos e, nesses números, especialistas vêm subnotificação [1].

O artigo 128 do Código Penal estabelece que não se pune o aborto praticado por médico se a gravidez decorreu de estupro e é precedido de consentimento da gestante ou dos representantes legais, quando incapaz. Ocorre que para interrupção da gestação nessas condições é preciso satisfazer uma série de determinações. Nesse sentido, dispõe a Portaria nº 2.282, do último dia 28 [2], editada pelo ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, que substituiu a Portaria nº 1.508, de 1º de setembro de 2005.

A título ilustrativo, o ato normativo dispõe que a gestante deve assinar cinco documentos, é imposto ao médico o dever de comunicar à autoridade policial o crime de estupro que resultou na gravidez [3], preservar evidências materiais do crime e, até mesmo, informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia.

Entre essas medidas, está a necessidade de a própria gestante, mesmo sendo menor de idade, fazer um relato dos abusos sexuais perante dois profissionais de saúde. Essa obrigação está disposta no artigo 3º da portaria, que também traz os modelos documentais a serem preenchidos e assinados.

Segundo o documento, denominado Termo de Relato Circunstanciado, a vítima precisa relatar: "Fui vítima de crime de estupro, nas seguintes circunstâncias: (…)". Em caso de homens desconhecidos, deve descrever características de cada um. Sendo o agressor conhecido, afirmar quem é e onde localizá-lo, além de apontar eventuais testemunhas.

A preocupação com essa imposição, que alcança até as crianças e adolescentes, é de que a narrativa dos estupros arrete o fenômeno da revitimização [4]. Compelir a menina que enfrentará um processo cirúrgico para retirada do feto ou embrião, decorrente de abuso sexual, a narrar em quais circunstâncias foi violentada, pode estimular sua angustia e causar ainda mais perturbação emocional. Entretanto, isso não significa que ela jamais falará daquele assunto.

Orienta a Convenção Internacional de Direitos da Criança de 1989, em seu artigo 12, que seja assegurado ao menor expressar-se sobre situações ocorridas, mas frisa que essa narrativa deve ser feita por intermédio de um representante ou órgão apropriado e em conformidade com a legislação nacional. Em harmonia com a convenção, em 2017 foi sancionada a Lei nº 13.431/2017, que trata da escuta especializada e do depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no âmbito de um procedimento criminal (artigos 7º e ss.).

Em linhas gerais, essa oitiva deve ser em local apropriado, acolhedor, com infraestrutura e espaço físico adequado, colhida por profissionais especializados que utilizem de técnicas pertinentes e, principalmente, seja feito o procedimento de uma só vez, em sede de produção antecipada de prova judicial. Tudo isso garantido o contraditório e a ampla defesa do investigado. A vontade político-criminal da lei é evitar a revitimização do menor, que, em um processo comum, seria constrangido várias vezes a relatar fatos cuja lembrança lhe cause vergonha, repugnância, tristeza e revolta [5].

Essa modalidade de escuta é feita por um psicólogo especializado, que tem autonomia para seu trabalho e não exerce a função de inquiridor. O profissional irá considerar o contexto social, histórico de vida, cultura e diversidade do menor [6]. Nesses moldes, sua higidez mental é preservada e a prova a ser utilizada em eventual processo criminal fica mantida, respeitados os direitos e garantias do investigado/réu.

Causa estranheza que a Portaria nº 2.282/2020, em especial, o artigo 3º, tenha sido publicada em um cenário em que já é reconhecido que o depoimento da vítima de violência sexual precisa se dar com maior cuidado. Parece estranho e desnecessário que o relato dos abusos perante equipe médica seja condição para o aborto legal.

Por essa razão, mesmo já havendo sido publicado, a releitura do artigo 3º dessa nova portaria, à luz dos princípios constitucionais e das normas legais norteadores que prezam pelo bem estar da criança e do adolescente, parece ser medida relevante.

 


[2] Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS.

[3] Vide artigo 1º, §4º, da Lei nº 10.778/2003.

[4] SILVEIRA, Marcelo Pichioli; SILVEIRA, Danilo Pichiolo. Depoimento especial: proposta de uma intersecção entre direito probatório e psicologia. Orgs.: FUGA, Bruno Augusto Sampaio; RODRIGUES, Daniel Colnago; ANTUNES, Thiago Carvesan. In: Produção antecipada de prova: questões relevantes e aspectos polêmicos. Londrina: Thoth, p. 151-165, 2018, p. 154.

[5] ROQUE, Emy Carla Yamamoto. Depoimento sem dano – viabilidade jurídica, eficácia segundo as ciências afins e a necessidade de sua implantação no judiciário Rondoniense. Revista da Escola de Magistratura do Estado de Rondônia, n. 17, p. 320-345, 2018, p. 331.

[6] PELISOLI, Cátula; DOBKE, Veleda; DELL’AGLIO, Débora Dalbosco. Depoimento Especial: Para Além do Embate e pela Proteção das Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual. Temas em Psicologia, n. 1, p. 25-38, 2014, p. 32.

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