Opinião

A pressão tributária sobre os livros no Brasil e o 'efeito cliquet'

Autor

1 de setembro de 2020, 15h02

A Lei nº 10.865/2004 prevê a isenção de PIS/Cofins para a produção e comercialização de livros no mercado interno e para a importação de livros (artigo 8º, §12, XII e artigo 28, VI).

Para além da desoneração no âmbito das contribuições sociais, a Constituição Federal assegura a imunidade dos impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão, nos termos do artigo 150, VI, "d".

Com a modernidade, o alcance da regra constitucional enfrentou um novo debate acerca da imunidade sobre leitores eletrônicos e suportes exclusivamente utilizados para fixá-los. E, por isso, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar a imunidade relativa aos livros, entendeu que, por se tratar de uma limitação constitucional ao poder de tributar com o objetivo de fomentar a liberdade de expressão e a liberdade intelectual, a desoneração também compreende os instrumentos de vanguarda com fins de leitura.

Na conclusão do julgamento, o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 57 com o seguinte teor: "A imunidade tributária constante do artigo 150, VI, d, da CF/88 aplica-se à importação e comercialização, no mercado interno, do livro eletrônico (e-book) e dos suportes exclusivamente utilizados para fixá-los, como leitores de livros eletrônicos (e-readers), ainda que possuam funcionalidades acessórias".

No plano infraconstitucional, especialmente da incidência do PIS e da Cofins, o Tribunal Regional da Terceira Região já entendeu, por aplicação da regra do artigo 111, II, do CTN, que os dispositivos da Lei nº 10.865/2004 devem ser interpretados literalmente, ou seja, a isenção estende-se tão somente aos livros físicos, e não os livros eletrônicos. A benesse, segundo o tribunal, incidiria apenas sobre os livros eletrônicos destinados aos deficientes visuais — comercializado em CD-ROM, CD, DVD, fita cassete de áudio e vídeo [1].

A Receita Federal do Brasil, ao enfrentar o assunto, entendeu que as mídias digitais que acompanham os livros impressos, contendo textos derivados de livro ou originais, produzidos por editores, mediante contrato de edição celebrado com o autor, estão sujeitas, na importação e venda no mercado interno, à alíquota zero da contribuição para o PIS/Pasep, ainda que não sejam destinadas exclusivamente ao uso de pessoas com deficiência visual [2].

Para a RFB, as mídias digitais estão sujeitas à alíquota zero se acompanham os livros impressos e também contenham conteúdo idêntico, parcial ou suplementar ao dessas obras físicas, nos termos do inciso VI do parágrafo único do artigo 2°, da Lei no 10.753, de 2003, segundo o qual são equiparados a livro os "textos derivados de livro ou originais, produzidos por editores, mediante contrato de edição celebrado com o autor, com a utilização de qualquer suporte".

A extensão desonerativa à mídia digital está compreendida na expressão "com a utilização de qualquer suporte", mas relaciona-se a condicionantes como a de que o conteúdo dessas mídias deve derivar de um livro publicado, no formato tradicional, ou de originais de livro ainda não publicado, desde que a obra seja produzida por editores, mediante contrato de edição celebrado com o autor. Na hipótese de observância desses requisitos, aplica-se a alíquota zero relativamente às contribuições para o PIS/Pasep e para a Cofins.

Aos poucos, consegue-se enxergar, progressivamente, que o repertório de jurisprudência dos tribunais vem se consolidando, a cada dia, na extensão ampla da desoneração aplicada aos livros, ultrapassando a literalidade do texto normativo para compreender o sentido lógico de se imunizar ou isentar as operações deste setor de modo que a educação e a cultura em sentido amplo alcancem o maior número de pessoas, crianças e adultos.

Essa trajetória inclusiva parece ameaçada e pode sofrer um freio histórico.

O Governo Federal, por meio do Ministério da Economia, apresentou o Projeto de Lei 3887/2020, com a pretensão de instituir a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substituiria as contribuições ao PIS e à Cofins.

A partir desse projeto, que constitui a "primeira etapa" da reforma tributária pretendida pelo governo federal, nada mencionou-se a respeito do tratamento tributário diferenciado sobre operações com livros. Isso significaria que os livros, ou melhor, o valor da receita bruta auferida com sua comercialização, atualmente sujeitos à alíquota zero de PIS/Cofins, podem submeter-se à alíquota de 12% a título de CBS.

O alcance do PL 3.887/20, por óbvio, não atinge a imunidade conferida constitucionalmente aos impostos sobre os livros e periódicos, tão somente as atuais contribuições do PIS e da Cofins. E, ainda que qualquer pretensão de reforma constitucional se apresente neste aspecto, relativamente à imunidade dos impostos, encontrará obstáculos quase que intransponíveis nas cláusulas pétreas.

Conquanto não haja previsão constitucional expressa que estabeleça imunidade de contribuições especiais (como no caso do PIS/Cofins) para livros, é possível enxergar, a partir de uma interpretação sistemática da Constituição Federal, a inconstitucionalidade na pretensão de extinguir a vigente desoneração.

A Constituição Federal preocupou-se em positivar direitos fundamentais reconhecidos e conquistados ao longo de décadas, em um processo histórico que apresenta avanços sociais, econômicos e políticos. A consolidação dos valores de alta envergadura está refletida também em instrumentos constitucionais que asseguram a força normativa desses princípios.

Por isso, o Supremo Tribunal Federal reconhece que alguns direitos, uma vez concretizados, estão protegidos pela máxima do "efeito cliquet", isto é, não é possível retroceder na efetivação de um direito constitucional, salvo com uma correspondente compensação. Nessa dimensão, a limitação constitucional ao poder de tributar deve ser acionada de modo a assegurar o maior e mais amplo acesso da sociedade à educação e à cultura.

A origem do termo cliquet é francesa e utilizada no sentido de que, ao se alcançar determinado ponto da escalada, está assegurada a progressão atingida e não é possível voltar, devendo-se avançar no movimento de subida do percurso.

A força dessa premissa para a proteção dos direitos e das garantias fundamentais tornam apropriada a lógica de que qualquer exclusão de regras desonerativas que incentivam e ampliam a educação no país, como direito social geral, deve ser afastada pela teoria da vedação ao retrocesso, segundo as palavras do STF:

"(…) A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados". (ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011)

A teoria não pode ser desvencilhada da prática e, por isso, revela-se um dado importante. O mercado é, essencialmente, dominado por livros didáticos e apresenta curva de crescimento ao longo dos anos: "em 2019, 395 milhões de livros físicos foram produzidos no Brasil, segundo levantamento da consultoria Nielsen Book, coordenada pela CBL (Câmara Brasileira do Livro) e pelo Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livro). Desses, 47,5% são livros didáticos e 18,8% são religiosos". [3].

Ainda assim, no ranking do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), o Brasil teve desempenho abaixo de outros países da América Latina em relação ao aspecto "leitura", ficando atrás de países como Chile, Uruguai, Costa Rica e México [4].

Não se discute a importância de uma reforma tributária, mas a necessidade de sua concretização também deve estar baseada no fim social e constitucional do sistema tributário, o que parece conflitante com uma pressão econômica sobre a produção de livros e correlatos, sob pena de desencadear uma piora no desempenho educacional do país e frear um processo histórico, longo e sofrido de inclusão social, o que evidenciaria um retrocesso.

 


[1] TRF 3ª Região, QUARTA TURMA, Ap – APELAÇÃO CÍVEL – 1483602 – 0005696-55.2005.4.03.6100, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL ALDA BASTO, julgado em 18/09/2014, e-DJF3 Judicial 1DATA:02/10/2014; TRF 3ª Região, 4ª Turma, ApelRemNec – APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA – 5013060-70.2017.4.03.6100, Rel. Desembargador Federal ANDRE NABARRETE NETO, julgado em 24/06/2020.

[2] Solução de Consulta no 393 – Cosit, data: 5 de setembro de 2017.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!