Bancadas evangélicas

"Não confunda liberdade de religião com privilégio à religião", diz entidade dos EUA

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1 de setembro de 2020, 9h34

Decisões da justiça e medidas governamentais e legislativas que favorecem grupos religiosos em detrimento de outros têm sido sustentadas nos EUA com base no preceito constitucional da liberdade de religião, quando não é bem isso. Na verdade, elas criam privilégios a determinadas religiões, prejudicando praticantes de outras religiões e quem não tem religião alguma, diz o presidente emérito do Capítulo de Nashville da Americans United for Separation of Church and State, Charles Sumner.

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Em artigo para o jornal Tennessean, Sumner argumenta que o preceito da liberdade de religião foi incluído na Constituição para proteger os cidadãos contra o governo, não para favorecer uma ou outra crença religiosa.

“A intenção da liberdade de religião é a de proteger o direito de todos a ser crente ou não, por vontade própria — desde que isso não cause danos a outros. A intenção da liberdade de religião é proteger os cidadãos contra serem forçados a viver de acordo com a crença de outros. E proteger os contribuintes contra serem forçados a financiar a religião dos outros.

“A intenção principal é proteger as religiões contra interferência do governo e assegurar que o governo execute as leis seculares compartilhadas — e não promover a crença religiosa de alguns grupos. Precisamos entender o que é liberdade de religião, porque privilégios para determinados grupos religiosos não significa liberdade igual para todos”, ele afirma.

O que está acontecendo
Só neste ano, a Suprema Corte dos EUA tomou três decisões que favoreceram especialmente religiões cristãs, com base no preceito da liberdade de religião. Em uma delas, decidiu que os contribuintes devem financiar escolas religiosas — o que pode significar financiar o ensino de suas crenças. Em outra, decidiu que escolas religiosas têm amplos direitos de negar aos professores e funcionários proteção contra discriminação, com base em suas crenças.

Na terceira, a corte decidiu que o governo Trump pode emitir regulamentos que permitem a empregadores e universidades negar aos trabalhadores e estudantes cobertura prevista no seguro-saúde social para controle de natalidade.

Em decisões anteriores, a corte deu razão a um confeiteiro evangélico que se recusou a fazer um bolo de casamento para um casal gay; autorizou um conselho municipal a fazer orações de uma determinada religião antes do início de suas assembleias, decidiu que a pavimentação do pátio de uma escola religiosa tem de ser financiada com recursos públicos — entre outras.

Atuação política
Na política, medidas legislativas para proteger as religiões cristãs são mais frequentes. Só em 2017 e 2018, com as bênçãos do presidente Donald Trump, que cultiva avidamente sua base cristã-evangélica, pelo menos 75 projetos de lei foram apresentados a assembleias legislativas de 20 estados, com a intenção de promover interesses religiosos, segundo o The Guardian.

Os projetos de lei seguem um playbook (manual estratégico), criado pela “Congressional Prayer Caucus Foundation (CPCF)”, uma espécie de bancada evangélica composta por um grupo de mais de 600 parlamentares republicanos estaduais e federais. A CPCF pretende “proteger a liberdade de religião, preservar a tradição judaica-cristã dos EUA e promover a oração”, segundo a Americans United for Separation of Church and State.

O playbook de 116 páginas, que adotou o nome de “Project Blitz”, traz uma série de “modelos de projetos de lei”, com instruções para parlamentares apresentarem projetos de lei em suas respectivas assembleias legislativas. E, segundo a Americans United for Separation of Church and State, “para impor as crenças cristãs ao público do país, ao meio político e à vida cultural”.

O playbook divide os projetos em três categorias e instrui os políticos e a comunidade religiosa sobre como se defender das críticas que, com certeza, irão acontecer.

Uma categoria de PL é intitulada “In God We Trust” (a mesma expressão que aparece em notas de dólares). PLs dessa categoria viraram leis no Alabama, Arizona, Florida, Louisiana e Tennessee, todos estados sulistas, notadamente conservadores e republicanos. A expressão aparece em brasões, prédios públicos, escolas e em veículos públicos, incluindo carros de polícia.

O manual recomenda aos religiosos que rebatam às críticas pintando os oponentes, na mídia e em campanhas eleitorais, como inimigos da fé. Para muitos americanos, “ inimigo da fé” pode ser sinônimo de comunista.

A categoria dois inclui PLs para uma variedade de proclamações ou resoluções. Exemplos: criação do dia da liberdade de religião e da semana das tradições cristãs, que podem abrir caminho para o ensino religioso nas escolas. O manual sugere gravar declarações de opositores para provar que são contrários às tradições e liberdades do povo.

A categoria três é a que pode exercer maior impacto, mas será, provavelmente, a mais contestada. Ela prevê resoluções a favor de “valores bíblicos, no que se refere ao casamento e à sexualidade”. Isso inclui “estabelecer políticas públicas que favoreçam a adoção de crianças por casais heterossexuais” e que “favoreçam relações sexuais íntimas apenas entre casais heterossexuais, dentro do casamento”.

A defesa desses PLs que visam proibir a adoção e o casamento na comunidade LGBT deve ser mais organizada, porque a oposição será também mais organizada, além de bem financiada, diz o playbook da organização cristã.

Em alguns estados mais conservadores, os legisladores superam o playbook. Por exemplo, no início deste ano o governador do Tennessee, Bill Lee, sancionou uma lei que permite a orfanatos financiados por recursos públicos negar pedidos de adoção de pais qualificados, mas que pertencem à comunidade LGBTQ ou à religião “errada”.

A Assembleia Legislativa do Tennessee também discutiu um projeto de lei que iria declarar a Bíblia como o “livro oficial” do estado. Mas o PL, que iria renegar os cidadãos sem religião ou da religião “errada”, não passou.

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