Academia de Polícia

Entre a negociação processual e a redução criminal: uma necessária escolha política

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

1 de setembro de 2020, 9h28

O sistema de persecução criminal, desde a sua fase inicial até o momento final, ou seja, desde a investigação preliminar até a execução penal, apresenta-se completamente envolto por falsas promessas. O seu funcionamento concreto evidencia, de um lado, a completa impossibilidade do aparato investigativo proceder à devida apuração de todas as notícias supostamente delitivas que chegam ao seu conhecimento [1], bem como, de outro lado, a sua incapacidade absoluta no cumprimento dos objetivos declarados das penas criminais [2], em especial no que toca a eventual "ressocialização"[3].

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O que se tem, na verdade, sem qualquer exagero, é um modelo irracional de criminalização, o qual, no entanto, continua em franca expansão, principalmente em nossa realidade periférica [4]. Diante da completa falência da Justiça criminal, sempre abarrotada de casos pendentes para julgamento, a grande "solução" proposta nas últimas décadas tem sido a de eliminar processos por meio da "negociação penal". A saída, tipicamente utilitária, com nítida inspiração neoliberal, aposta em pretensos "acordos" como forma principal de diminuição do volume de casos para instrução, debates e acertamento perante o juízo criminal. O que, no fundo, significa abdicar de um procedimento regular de formação de conhecimento para a tomada (ou imposição) de decisões penais sem, no entanto, diminuir o amplo espaço de criminalização.

A técnica negocial, originalmente incorporada à legislação brasileira como estratégia político-criminal centrada em ilícitos de menor potencial ofensivo [5] e que ganhou força nos últimos anos com as delações e colaborações premiadas dos "maxiprocessos" [6], chega ao rol da criminalização ordinária com o chamado "acordo de não persecução penal". Isso sem falar, é claro, nas tentativas recentes, ainda não completamente abandonadas, de uma negociata (processual) penal alargada pelo transplante arbitrário de institutos jurídicos estadunidenses como o plea bargaining [7], em uma espécie de "americanização à brasileira" [8].

Por óbvio, nesse contexto, os procedimentos de investigação preliminar passam a ocupar um lugar de destaque. Afinal de contas, no universo da "Justiça negociada", em que os "acordos" são normalmente estabelecidos na primeira fase da persecução criminal, as investigações acabam figurando como a principal (ou, muitas vezes, a única) fonte informativa do caso penal. Ademais, apurações preliminares que, em sua enorme maioria, são controladas pelos órgãos estatais, mais especificamente pelas agências policiais, tendo em vista as limitações atuais ao real exercício da investigação defensiva no país.

O efeito concreto desse modelo é justamente a expansão disfuncional do poder punitivo. Isso porque a renúncia, nessas hipóteses de "Justiça negociada", à garantia fundamental de nulla poena sine judicio, para além de um retrocesso democrático formal [9]. não é capaz de diminuir o estado agudo de ineficácia do sistema criminal quanto às suas finalidades oficiais no campo da prevenção delitiva. A única possibilidade efetiva de mitigação da irracionalidade penal decorre exatamente da sua contenção, ou seja, de um movimento de retração considerável dos processos de criminalização.

Uma reflexão, entre tantas possíveis nesse contexto de barganha (processual) penal, que deve ser levada em consideração, especialmente por aqueles que, embora refratários às críticas criminológicas, se dizem preocupados com a "melhoria" do sistema de justiça criminal, diz respeito à qualidade epistêmica dos casos penais. A pergunta básica é a seguinte: como assegurar uma base informativa adequada para esses acordos se a etapa de investigação preliminar, ainda regida por uma obrigatoriedade mítica [10], continua sobrecarregada pela hipercriminalização?

É evidente que sem uma drástica redução do espectro de criminalização, orientada por critérios rigorosos de intervenção penal mínima [11], bem como de um reaparelhamento estrutural aliado a uma mudança cultural das agências penais, impossível a mitigação desse estado de injustiça criminal.

Vale lembrar, aos entusiastas do poder punitivo, que os tão proclamados (e controvertidos) baixos índices nacionais de resolutividade na fase de investigação preliminar, especialmente em crimes graves como homicídio, não são fruto do acaso. E, claro, tampouco serão revertidos com uma estratégia de negociação processual. Afinal de contas, há uma distância abissal entre eliminar processos e reduzir violências.

De fato, essa importação de uma política mitigadora do devido processo penal e suas garantias fundamentais enquanto procedimento epistêmico regular de arbitramento de responsabilidade criminal [12] não parece a melhor forma de regulação da conflitividade social brasileira. O efeito, aliás, como já referido acima, tende a ser justamente a ampliação dos danos (ou dores) próprias desse aparato punitivo [13].

Não por outro motivo a tese ora defendida quanto à necessária revisão dos fundamentos dessa política criminal, a começar pela ruptura com um paradigma jurídico cognoscitivo próprio do norte global (estadunidense e eurocêntrico) e inspirado numa lógica expansionista da intervenção penal [14]. Busca-se, enfim, provocar uma reflexão alternativa ao movimento de importação (ou imposição) negocial a partir de um "giro processual decolonial" [15] comprometido com a redução das injustiças [16] criminais.

 


[1] “Nenhum sistema judicial tem a capacidade para processar todos os delitos, nem sequer com os mecanismos mais simplificados” (ANITUA, Gabriel Ignacio. Introdução à Criminologia: uma aproximação desde o poder de julgar. Trad. Augusto Jobim do Amaral, Brunna Laporte e Ricardo Jacobsen Gloeckner. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 128).

[2] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral. 5 ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 421-430; .

[3] “(…) O termo ressocialização nunca resultou de um dado empiricamente comprovado. Nasceu no contexto de um ideal humanizador das prisões e acabou servindo mais como legitimador do que como motivo de efetiva reforma. Subterfúgio, reduzido a instrumento de retórica, para convencer a sociedade e o Estado de que era necessário investir na prisão, melhorando-a, mas, como consequência, sustentando-a. A política criminal dos últimos anos é exemplo do quanto a prática punitiva sabe da ineficácia da prisão para qualquer tipo de reeducação”. (VALOIS, Luís Carlos. Conflito entre Ressocialização e Princípio da Legalidade Penal. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 292-293).

[4] GIAMBERARDINO, André Ribeiro. Pobreza, Culpabilidade e Prisão: diálogos entre a ética da libertação e o direito penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 94, p. 10-50, 2012.

[5] Muito embora os instrumentos negociais criados pela Lei n. 9.099/95 (transação penal e suspensão condicional do processo) tenham incidência nuclear quanto às infrações penais de menor potencial ofensivo, vale sempre lembrar que o sursis processual pode alcançar outros tipos de crimes em que a pena mínima cominada seja igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não pela legislação dos juizados especiais criminais (artigo 89 da Lei n. 9.099/95).

[6] SANTORO, Antonio E. R. A Imbricação entre Maxiprocessos e Colaboração Premiada: o deslocamento do centro informativo para a fase investigatória na Operação Lava Jato. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 81-116, jan./abr. 2020.

[7] LANGER, Máximo. Dos Transplantes Jurídicos às Traduções Jurídicas: a globalização do plea bargaining e a tese da americanização do processo penal. Delictae: Revista de Estudos Interdisciplinares sobre o Delito, v. 2, n. 3, p. 19-115, jul./dez. 2017.

[8] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Plea bargaining no projeto anticrime: crônica de um desastre anunciado. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 27, n. 317, p. 2-5, abr./2019.

[9] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. 04 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 675-694.

[10] MACHADO, Leonardo Marcondes. Manual de Inquérito Policial. 01 ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2020, p. 47-48.

[11] “Há sólidas razões para a contenção da atual expansão das instituições penais (…) Reduzamos as condições que criam comportamentos inaceitáveis; da mesma forma, limitemos o tamanho do aparato penal e, particularmente, façamos o máximo para reduzir o volume de inflição de dor” (CHRISTIE, Nils. Uma Razoável Quantidade de Crimes. Trad. André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 159).

[12] PRADO, Geraldo. Prefácio. In: KHALED JR, Salah H.. Discurso de Ódio e Sistema Penal. 01 ed. Belo Horizonte: Letramento, 2016, p. 17-20.

[13] Mauricio Duce, em pesquisa empírica sobre os “procedimientos abreviados y simplificados” chilenos, explora a questão do possível aumento do risco de condenações errôneas (DUCE JULIO, Mauricio. Los procedimientos abreviados y simplificados y el riesgo de condenas erróneas en Chile: resultados de una investigación empírica. Revista de Derecho – Universidad Católica del Norte, Chile, v. 26, e3845, 2019).

[14] “A polarização histórica de cinco séculos em nossa região é agora percebida ainda mais claramente, sob o ataque de uma nova etapa do colonialismo que se traduz em todos os nossos países em um acentuado aumento de estratificação e injustiça social, porque nunca pode ser socialmente justa uma sociedade colonizada (…) Isso nos mostra – como nunca – a necessidade de incorporar a experiência anticolonial de cinco séculos para moldar uma criminologia do Sul”. (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; SANTOS, Ílison Dias dos. A Nova Crítica Criminológica: criminologia em tempos de totalitarismo financeiro. 1 ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 159).

[15] Trata-se de uma adaptação livre ao conhecido “giro decolonial” discutido no campo da filosofia política enquanto “movimento de resistência teórico e prático, político e epistemológico, à lógica da modernidade/colonialidade” (BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília , n. 11, p. 89-117, ago. 2013, p. 105).

[16] BERCLAZ, Márcio Soares. Da injustiça à democracia: ensaio para uma justiça de libertação. 01 ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019.

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    é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC. Professor em cursos de graduação e pós-graduação.

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