Opinião

A tragédia de Santo Antônio de Jesus: a verdadeira face do trabalho infantil

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31 de outubro de 2020, 7h13

Em decisão notificada na última segunda-feira (26/10), o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violação de direitos fundamentais dos trabalhadores e dos familiares das vítimas da explosão da fábrica de fogos de artifícios em Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano [1].

A tragédia ocorreu por volta das 11 horas do dia 11 de dezembro de 1998. Dos 64 trabalhadores mortos na explosão, 63 eram mulheres. A única vítima do sexo masculino era uma criança de 11 anos de idade. Entre as vítimas havia 22 crianças e adolescentes, com idades entre nove e 17 anos. A imensa maioria eram negras — dos 57 atestados de óbito juntados ao processo, 49 eram de pessoas negras, três brancas, e seis sem identificação. Quatro mulheres grávidas e três nascituros também foram vítimas da explosão. Nas precárias instalações, os homens ficavam em um local fabricando as bombas, enquanto as mulheres permaneciam em uma área mais acima, amarrando os traques de pólvora. De acordo com as investigações do Ministério Público, no momento da explosão, havia 1,5 tonelada de pólvora armazenada sem as condições mínimas de segurança [2].

Na decisão, proferida em 15 de julho de 2020, a Corte Interamericana registrou que, além de não fiscalizar o cumprimento das normas de segurança, o Brasil também violou os direitos das vítimas ao não garantir o acesso efetivo à Justiça (o caso permaneceu sem a devida reparação por mais de 20 anos!), sem  punir os responsáveis. Em consequência, entre as cominações, a CIDH determinou o pagamento de 50 mil dólares em favor de cada uma das vítimas falecidas e sobreviventes da explosão da fábrica de fogos, bem como a concessão de tratamento médico e psicológico.

As condições de trabalho no local da explosão eram desumanas.  A fabricação de fogos de artifício era a principal e, na maioria dos casos, a única opção de renda para os habitantes do município, que não tinham outra alternativa a não ser aceitar um trabalho de alto risco, com baixo salário e sem medidas de segurança adequadas. O mais estarrecedor é a exploração do trabalho infantil em atividade extremamente perigosa e insegura, submetendo crianças e adolescentes a um risco de vida constante, que acabou resultando em uma tragédia de proporções apocalípticas [3].

Não estamos falando de estatísticas, mas, sim, de seres humanos que perderam suas vidas ou seus entes queridos para sempre. São pessoas como Fabiana, de 14 anos, Adriana, 15, e Mônica, 24, três irmãs que tiveram o mesmo fim trágico. Para Rosângela Rocha, irmã das vítimas, que sobreviveu ao desastre, "não foi tragédia, mas um crime".

As trabalhadoras arriscavam a vida produzindo os traques, ou biribinhas de estalo. As testemunhas relatam que "quem fizesse menos de cinco mil traques (a meta diária individual) era substituído como peça de máquina com defeito". Dizem também que os empregados recebiam R$ 0,50 a cada mil fogos entregues. Um pacote de 50 caixas de biribinhas com dez unidades, totalizando 500, custa cerca de R$ 40. "Os donos não queriam saber se quem ia trabalhar era criança ou adulto. Eles queriam lucrar. Era uma máquina de pessoas, um ciclo vicioso de escravidão", diz Rocha [4].

Dizem que a história não se repete a não ser como farsa. No Brasil, ela teima em se repetir como tragédia, como se tivéssemos um grande passado pela frente (Millôr). Impossível não estabelecer o paralelo entre a tragédia de Santo Antônio de Jesus e as condições precárias dos mineiros no livro "Germinal", de Émile Zola, no século XIX:

"A companhia roubava-lhes uma hora de trabalho por dia, e os mineiros não engoliram isso, mas foram obrigados a se submeter. O trabalho havia recomeçado em todas as minas (…) homens andavam em filas, olhando para o chão, como um rebanho que vai para o abatedouro. (ZOLA, 2000, p. 229).
Bruscamente, ele teve uma visão do desastre: crianças morrendo, mulheres chorando, enquanto os homens, magros e abatidos, voltavam ao trabalho. …(ZOLA, 2000, p. 91)

O desabamento começara por baixo e vinha subindo, até chegar à superfície (…) Enquanto ocorriam as explosões subterrâneas, as construções que ainda não tinham sido atingidas foram completamente arrasadas. Até a máquina foi devorada pela terra. Não sobrou nada, absolutamente nada. Todo o complexo da Voreux acabava de ser tragado pelo abismo" (ZOLA, 2000, p. 204-205).

Mas nem precisamos ir tão longe. Basta lembrarmos dos versos de Manuel Bandeira:

"Os meninos carvoeiros
Passam a caminho da cidade.
— Eh, carvoero!
E vão tocando os animais com um relho enorme.
Os burros são magrinhos e velhos.
Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.
A aniagem é toda remendada.
Os carvões caem.
(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um gemido.)

— Eh, carvoero!
Só mesmo estas crianças raquíticas
Vão bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingênua parece feita para eles…
Pequenina, ingênua miséria!
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis!
— Eh, carvoero!"

Assim como as vítimas da tragédia de Santo Antônio de Jesus, os carvoeiros de Manuel Bandeira retratam as milhões de crianças expostas ao trabalho infantil em nosso país e que deveriam estar brincando e estudando para terem um futuro melhor. Entre 2007 e 2019, 279 crianças e adolescentes de cinco a 17 anos morreram enquanto trabalhavam, de acordo com o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). E estamos falando apenas dos acidentes notificados, lembrando que, como se trata de um trabalho irregular, a maioria dos empregadores procura ocultar o falecimento. Em 2016, 2,4 milhões (dois milhões e quatrocentos mil) de brasileiros na mesma faixa etária trabalhavam no Brasil, segundo dados da Pnad 2016 tabulados pelo FNPETI (Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil). É uma tragédia sem fim.

A decisão que condenou o Brasil aponta que, além da violação dos artigos 4.1, 5.1, 19, 24 e 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), a omissão do Estado brasileiro, seja na prevenção ou na reparação, também atentou contra as Convenções 138 e 182 da Organização Internacional do Trabalho. Em especial, houve transgressão direta à Convenção 182 da OIT, que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil, principalmente diante da negligência na fiscalização de outras fábricas para evitar que tragédias semelhantes a de Santo Antônio venham a se repetir.

Aqueles que romantizam o trabalho infantil deveriam tirar os olhos da tela do computador e enxergar a realidade ao seu redor. Não estamos falando de vender brigadeiro no recreio do colégio nem de passar a tarde no escritório climatizado do papai. Estamos falando de milhares de crianças que "vendem" sua infância, cortam sisal, quebram pedras, carregam carvão, são domésticas "da família" ou trabalham em fábricas de fogos de artifícios. Esse é o mundo real. É mentiroso o falso dilema de quem diz ser "melhor a criança trabalhando do que na rua roubando". Não. Definitivamente, não. Lugar de criança não é no trabalho, nem na rua. É na escola, estudando — de preferência, em tempo integral. Para que ela possa ter as mesmas oportunidades que terão os nossos filhos e netos.

Nas palavras de Emicida e Drik Barbosa, na música "Sementes": "É muito triste, muito cedo, é muito covarde cortar infâncias pela metade. Pra ser um adulto sem tumulto, não existe atalho. Em resumo, crianças não têm trabalho, não."

 

[1] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_407_esp.pdf.

[2] https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/brasil-e-condenado-em-corte-interamericana-por-mortes-em-fabrica-de-fogos-no-reconcavo-baiano/.

[3] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/10/26/corte-interamericana-condena-brasil-por-explosao-em-fabrica-de-fogos-de-artificio.htm?cmpid=copiaecola.

[4] https://tab.uol.com.br/edicao/fogos-de-artificio/.

[5] ZOLA, Émile. Germinal. Tradução, adaptação e apêndice Silvana Salerno. São Paulo: Cia das Letras, 2000.

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