Opinião

Breve análise da viabilidade da recuperação judicial do produtor rural

Autor

  • Diogo Ferreira

    é advogado especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Federal de Goiás e secretário-geral da Comissão de Estudos Processuais da OAB-GO.

31 de outubro de 2020, 13h16

A recuperação judicial do produtor rural tem ganhado grande relevância nos últimos anos, sobretudo em razão do alto endividamento existente nesse setor.

A principal discussão a respeito do tema pode ser resumida da seguinte forma: sendo a Lei de Recuperação Judicial (Lei 11.101/2005) aplicável somente a empresários ou sociedades empresariais (artigo 1º) com efetivo exercício de suas atividades por pelo menos dois anos (artigo 48), qual a natureza jurídica do registro na junta comercial, nos termos do artigo 971 do Código Civil, para que o produtor rural acesse esse instituto?

Em outras palavras: o registro na junta comercial teria natureza constitutiva ou declaratória, ou seja, o prazo de dois anos de comprovação da atividade mercantil exigido pela lei para postular o processamento da RJ tem o seu início a partir do registro ou, se já existisse o exercício da atividade de produtor rural ainda que praticado pelo "CPF", essa inscrição na junta comercial seria somente uma condição declaratória da situação do empresário rural?

Nesse sentido, a 3ª e a 4ª Turmas do Superior Tribunal de Justiça, responsáveis por sedimentar os conflitos de interesses privados, já se manifestaram a respeito do tema, respectivamente, nos Recursos Especiais oriundos do Estado do Mato Grosso números 1.811.953 e 1.800.032, no sentido de conferir a natureza declaratória ao registro do produtor rural na junta comercial, não sendo necessário, após o registro, aguardar dois anos para eventual pedido de processamento da RJ.

Ressalte-se, nesse ponto, que a comprovação da atividade empresarial pelo prazo de dois anos, ainda que praticada antes do registro, continua necessária.

As duas decisões acima destacadas, muito embora não possuam efeito vinculante, servem como direcionamento para outros julgamentos de igual teor.

Nesse passo, considerando a direção em que o STJ parece caminhar sobre o tema, necessário se faz adentrar ao seguinte questionamento: existe viabilidade de um plano de recuperação judicial feito por um produtor rural que, em muitas vezes, resume-se a um patriarca sujeito a todas as vulnerabilidades temporais oriundas dos seres humanos?

Como é cediço, a recuperação judicial, não só no Brasil como em outros países, foi criada com o intuito de possibilitar o soerguimento de empresas que atravessam crises pontuais e passageiras, preservando-se os empregos, os recolhimentos de tributos e demais contratos existentes.

Tem-se, contudo, que todo esse microssistema é pensado a partir da ideia de que empresas possuem personalidades jurídicas próprias, formadas com propósitos, missões, valores e patrimônio distinto de seus sócios. Dessa forma, não estariam sujeitas às fragilidades biológicas humanas, como doenças e limitações físicas, por exemplo.

Logo, o simples registro do produtor rural na junta comercial, por óbvio, não o protege da efemeridade intrínseca existente. Nesse ponto, vale destacar o noticiado [1] a respeito da expectativa de vida média do homem brasileiro ser de 72,8 anos, ou seja, considerando a existência de diversos planos de recuperação judicial nesse setor, com prazo para pagamento estimado em 20 anos, no exemplo de um produtor rural possuir 60 anos de idade no início do processamento da RJ, de acordo com as estatísticas, possivelmente não teria mais saúde para continuar com os seus negócios e adimplir com o pactuado no plano.

É claro que essa análise última, acerca da viabilidade econômico-financeira, depende/dependerá dos credores tendo em vista a supremacia da assembleia geral, mas, indaga-se, desde já, se não seria uma violação aos princípios da economia processual e celeridade submeter o produtor rural ao tratamento da RJ, que possivelmente não será concluída por questões naturais…

E se o produtor rural perder a sua capacidade ou até mesmo falecer, como ficaria o plano de RJ? Seria automaticamente considerado descumprido e convolado em falência, nos termos da lei?

Percebe-se, de outro lado, que o patrimônio que propicia o exercício dessa atividade "mercantil" rural (terras, maquinários), e até mesmo movimentação financeira na grande maioria dos casos, são de propriedade do produtor rural enquanto pessoa natural, vinculados ao CPF, o que torna esse tipo de discussão ainda mais profunda.

Por fim, o terceiro questionamento diz respeito às intempéries climáticas às quais esse setor está sujeito, sendo classificadas como riscos ordinários da atividade rural pelo STJ [2] e, portanto, de responsabilidade integral do produtor rural.

Nesse sentido, qual seria a forma de proteção do recuperando às oscilações climáticas que, apesar de não estarem sob os seus cuidados, são riscos comuns à atividade e, portanto, não afastariam a exigibilidade das obrigações?

Parece-nos, por tudo isso, que o tema carece de estudos mais aprofundados, sobretudo a respeito da sistemática na qual o produtor rural está inserido que, claramente, se difere de uma sociedade empresária.

Fundamental, portanto, que as questões acima mencionadas sejam todas levadas em consideração antes do início do processamento da recuperação judicial e após ele, pelos credores quando da análise do plano de recuperação, evitando-se, assim, o desperdício de tempo e dinheiro do Poder Judiciário e de todos os envolvidos com um processo recuperacional possivelmente fadado ao insucesso.

 

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    é advogado, especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Federal de Goiás e secretário-geral da Comissão de Estudos Processuais da OAB-GO.

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