Opinião

Processo coletivo: preocupações legislativas

Autor

  • Ricardo de Barros Leonel

    é mestre doutor livre docente e professor associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e promotor de Justiça em São Paulo.

30 de outubro de 2020, 10h36

Veio a público notícia de projetos de lei com objetivo de mudar a legislação do processo coletivo (PL 4441-2020, do deputado Paulo Teixeira; PL 4778-2020, do deputado Marcos Pereira).

Além disso, tramita no Congresso, há anos, o PL 8058-2014, cujo intuito é regular o processo coletivo estrutural, isto é, a solução de conflitos sobre políticas públicas.

Há também o PL 5139-2009, apresentando, à época, pelo Poder Executivo, com a finalidade de conferir nova disciplina para as ações coletivas.

Não resta dúvida de que se trata de tema de primeira grandeza, a ser examinado com interesse e zelo pelos envolvidos na discussão, por ser assunto que afeta a todos, como profissionais do direito e como cidadãos.

Não há espaço, neste artigo, para aprofundar, com todo o detalhe necessário, os inúmeros pontos de interesse de cada um desses textos.

Cabe, contudo, respeitando o pensamento divergente, chamar a atenção para preocupações importantes.

Razão para isso: vivenciar o assunto no dia a dia, como operador do processo, e também estudá-lo, há muitos anos, com preocupações acadêmicas e práticas, na atividade docente no ensino superior, tanto na graduação como na pós-graduação.

Tive oportunidade de testemunhar e participar de inúmeros trabalhos e debates sobre o tema. Neles foi figura singular, ao lado de outros estudiosos, a saudosa professora Ada Pellegrini Grinover.

Fruto dessa discussão coletiva e aberta, da qual muitos participaram, foi o PL 5139-2009.

Foi elaborado por comissão de juristas designada junto ao Ministério da Justiça, que integrei. Com inúmeros debates, dissensos e construção de convergências, chegou-se a um texto de qualidade substancial.

Concluído o trabalho técnico, na comissão de juristas, foi ele apresentado à Presidência da República, que o encaminhou com modificações sensíveis e reducionistas.

O relator na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, então deputado Antônio Biscaia, resgatou o conteúdo técnico do texto do anteprojeto, apresentando substitutivo que, por pequena diferença de votos (e não por razões técnicas), não foi aprovado na CCJ da Câmara.

Até hoje pende de exame recurso para o Plenário da Casa Legislativa, que, mais de dez anos depois, não foi submetido a apreciação.

O substitutivo do deputado Antônio Carlos Biscaia ao PL 5139-2009 era abrangente, de alta qualidade técnica, e enfrentava dificuldades (gargalos) existentes no processo coletivo, criando verdadeira codificação.

Trazia disposições gerais, alinhava princípios aplicáveis ao tema, assinalava condições e pressupostos para a tutela coletiva, disciplinava a legitimação, o procedimento, a produção de provas, o custeio das perícias, as técnicas de tutela, a sentença, a coisa julgada, a liquidação, a relação entre demandas (com criteriosa suspensão, em princípio, de ações individuais), entre outros tópicos.

Aperfeiçoava o sistema coletivo, estimulando sua aplicação.

O PL 5139-2009, fruto debate extenuante e técnico, procurou manter os aspectos positivos do sistema brasileiro de processo coletivo, incorporar avanços sedimentados na jurisprudência e doutrina pátrias, e resolver problemas importantes (verdadeiras falhas sistêmicas) que, depois de décadas de ações coletivas, são de todos conhecidos.

Sua não aprovação, segundo percepção geral na época, não se deveu a razões técnicas, dada a excelente qualidade daquele texto.

Anos depois, na esteira da necessidade de eliminar déficits da legislação processual coletiva, foi apresentado o PL 8058-2014, cuidando de tema específico, qual seja, o processo estrutural, ou, conforme sua ementa, "controle e intervenção em políticas públicas pelo Poder Judiciário".

Esse texto — também ele fruto da capacidade de organização e fomento ao debate de professores cuja genialidade é inegável, sobretudo Ada Pellegrini Grinover e Kazuo Watanabe — apresenta incontáveis pontos positivos, enfrentando problemas reais com proposta de soluções possíveis.

Não há como negar que temos um sistema de processo coletivo.

Mas, décadas após seu efetivo nascimento e consolidação (no primeiro momento com a Lei 7347/85, e depois com a Lei 8078/90, que passaram a ser lidas e compreendidas de modo conjunto), suas lacunas e gargalos se tornam mais evidentes.

Vêm a lume, agora, os dois novos projetos.

Os PLs 4441-2020 e o 4778-2020, com o mesmo objeto: disciplinar as ações coletivas, ou, conforme suas ementas, a ação civil pública.

Deixando de lado o aspecto terminológico (que é, por si só, objeto de discussão), é útil fazer reflexões, inclusive quanto aos antecedentes de sua apresentação à Câmara dos Deputados.

No final do ano de 2019, foi criado grupo de trabalho no Conselho Nacional de Justiça para "apresentar propostas voltadas para o aprimoramento da atuação do Poder Judiciário nas ações de tutela de direitos coletivos e difusos" (Portaria 152, de 30/9/2019, da presidência do CNJ).

Fui designado para participar do referido grupo. Minha avaliação pessoal é de que há espaço para avanço, tanto com modificações legislativas como com providências fora do âmbito legislativo. Mas é imprescindível o cuidado.

Quem estuda e trabalha com processo coletivo reconhece, em regra, algumas ideias centrais, que podem ser assim sintetizadas: temos um sistema que pode ser aperfeiçoado, mas ainda representa, no cenário do Direito Processual Coletivo, um exemplo positivo, inclusive para outros países; há campo para melhorar sem mudar a lei; alterações legislativas, diante da sensibilidade do tema (que afeta interesses os mais variados), devem ser promovidas com cautela, no momento oportuno e da forma adequada.

É apriorística e, quando menos, injusta, a avaliação de que ações coletivas são causadoras de todos os males.

Ao contrário: são meios que viabilizam algo fundamental na sociedade contemporânea, ou seja, a solução de conflitos coletivos.

Mudar, só se for para melhor. Deve-se trabalhar para aperfeiçoar, não para cercear, limitar, ou aniquilar o processo coletivo.

No referido grupo de trabalho foram feitas inúmeras propostas não legislativas, que acabaram sendo acolhidas pela presidência do CNJ.

Foi editada a Resolução 339, de 8/9/2020, disciplinando os "Núcleos de Ações Coletivas e os cadastros de ações coletivas". Fomenta-se a organização e melhor gerenciamento das informações relacionadas à tramitação de processos coletivos, bem como facilitação de acesso a tais dados. Acesso à informação é fundamental para gerenciar melhor.

Foi também editada a Recomendação 76, de 8/9/2020: indicações aos magistrados, respeitada sua independência funcional e a legislação em vigor, de cuidados a adotar no âmbito de sua atuação jurisdicional, com potencial para se extrair, do processo coletivo, resultados melhores.

Assim, por exemplo, as recomendações para: diante de processos repetitivos, fomentar a atuação dos legitimados coletivos; estimular a solução consensual dos litígios coletivos; priorizar o processamento das ações coletivas (sem prejuízo das preferências legalmente estabelecidas); cuidados no saneamento do processo; prolação de sentenças líquidas; preferência de afetação de ações coletivas em caso de processos repetitivos (recursos especiais e extraordinários, bem como incidente de resolução de demandas repetitivas); entre outras providências.

No referido grupo de trabalho do CNJ surgiu a ideia, por outro lado, da elaboração de anteprojeto de nova lei para as ações coletivas.

Com absoluto respeito a quem pensa de modo diferente, é necessário registrar: sabe-se como os projetos de lei se iniciam, mas não como terminam.

Para avançar, por vezes é necessário esperar a ocasião apropriada.

Por isso registro, nesse passo, a opinião que tive oportunidade de manifestar, expressamente, na discussão no grupo de trabalho: não era este o momento oportuno para apresentação de projeto de lei para alteração do sistema processual coletivo.

A afirmação, formulada na oportunidade dos debates acima mencionados e, neste texto, reiterada, é impessoal, fruto de simples observação.

Basta olhar com atenção: é difícil imaginar, num período tão conturbado sob todos os aspectos (político e institucional especialmente), como este pelo qual passamos, que haja espaço para uma discussão serena, predominantemente técnica (não exclusivamente política) a respeito de um tema que envolve a defesa de interesses que, normalmente, não encontram arena adequada, senão no processo coletivo.

A defesa do meio ambiente, do consumidor, dos titulares de contas bancárias, dos usuários dos sistemas públicos e privados de saúde, das minorias, dos moradores de rua, das crianças e adolescentes, dos idosos, das pessoas portadoras de deficiência, dos usuários de serviços de telefonia, água, eletricidade, dos serviços de telecomunicação e dados etc. exige cuidado não só no processo, mas também nos trabalhos legislativos.

Insisto: respeitando opiniões diferentes e partindo da simples observação, notadamente por vivenciar o assunto como profissional do foro e como estudioso, é nítida a percepção de inadequação do momento político e legislativo nacional para um debate sereno sobre o sistema de ações coletivas.

Além de opinar contrariamente à apresentação de qualquer anteprojeto de lei, tive oportunidade de propor, no mérito, sugestões para que, se efetivamente viesse a ser apresentado, eventual texto de proposta legislativa significasse verdadeiro avanço, e não risco de retrocesso.

O texto que foi encaminhado pelo CNJ à Câmara dos Deputados (fato este do qual só se teve conhecimento, tempos depois, por meios de comunicação em geral, tendo em vista a inocorrência de efetiva deliberação a respeito, opinativa, do grupo de trabalho) é aquele que se identifica como PL 4778-2020. Essa é a proposta do CNJ (com todas as ressalvas acima formuladas) para uma nova disciplina das ações coletivas.

O PL 4778-2020 repete, em linhas gerais, o que já está no sistema.

Isso é desnecessário. Mudanças devem vir para melhorar, não para simplesmente repetir.

E melhorar aqui, significa aperfeiçoar a proteção dos direitos coletivos, e não criar obstáculos ou formalismos ao seu tratamento judicial.

Há retrocessos no projeto por dificultarem, desnecessariamente, a análise das situações litigiosas. Alguns exemplos:

— Criação de obstáculos formais à atuação das associações (como a autorização estatutária ou assemblear — artigo 4º, V);

— Impedimento à tutela provisória antes do exame da adequação da representação na ação movida por associação (artigo 10, §4º), o que pode por em risco a tutela do direito;

— Exigência de desistência de ações individuais (artigo 9º, par. único);

— Combinação da exigência de desistência à previsão de inocorrência de interrupção da prescrição individual pela propositura da demanda coletiva (artigo 26, §4º). É orientação que contraria a funcionalidade do sistema coletivo;

— Burocrática exigência de prévia consulta, pela parte, do Cadastro Nacional de Processos Coletivos, como forma de demonstração de interesse de agir (artigo 11, §2º, e artigo 15). Note-se que a finalidade do quesito é detectar casos de conexão, continência ou litispendência. Isso não tem relação alguma com o interesse de agir. Tal verificação pode ser feita, especialmente em tempos de processo eletrônico, pelos cartórios;

— Fixação da competência do foro da capital do Estado para as demandas coletivas (artigo. 14), com consequências disfuncionais: o processo sobre conflito coletivo local terá que tramitar perante juízo longínquo; além de se inviabilizar a atuação dos órgãos jurisdicionais, nas capitais, com competência para a temática coletiva, pelo excesso de processos;

— Vedação da motivação da sentença exclusivamente com a prova produzida no inquérito civil (artigo 20), desconsiderando, v.g., hipóteses em que a prova dele constante é formada por documentos, o que torna indiferente o momento de sua obtenção (se no inquérito ou em juízo);

— Previsão expressa de que a ação coletiva não interrompe prescrição de pretensões individuais (artigo 26, §5º), contrariando doutrina e jurisprudência hoje existentes. Além disso, desestimula-se a adesão dos indivíduos ao processo coletivo ou, de outra forma, cria-se armadilha para aqueles que vierem a aguardar, se ao final a ação coletiva for improcedente;

— Aplicação geral do instituto da suspensão de liminar (artigo 27, §1º), convertendo-a em meio comum de impugnação, com possibilidade de recursos especial ou extraordinário contra decisão do presidente do tribunal (artigo 27, §3º), o que é de duvidosa constitucionalidade (por ser, o cabimento destes recursos, matéria de disciplina constitucional);

— Eliminação dos incentivos relacionados com o custo do processo, e imposição do sistema geral do CPC, dificultando as ações coletivas por parte de associações, trazendo, ainda, regra que pretende desestimular a atuação do Ministério Público e das Defensorias (artigo 35);

— Falta de disciplina apropriada das perícias, liquidação e execução, verdadeiros gargalos dos processos coletivos;

— Eliminação da disciplina hoje existente (ainda que incompleta) com relação ao inquérito civil.

O PL 4441-2020, embora tenha sido apresentado pouco antes do 4778-2020, contem redação e conteúdo mais amplos, técnicos e equilibrados, promovendo, efetivamente, abordagem em relação a pontos que mereciam atenção e aprimoramento.

Basta dizer que o PL 4441-2020s além de, substancialmente, disciplinar melhor a matéria, abordou, detalhada e acertadamente, pontos importantes, que não foram (ou não foram suficientemente) regulados no outro projeto, como, por exemplo: saneamento do processo; a autocomposição; inquérito civil; reparação fluída e fundos; conversão da ação individual em ação coletiva; audiências e consultas públicas; entre outros.

Finalmente, é necessário voltar à origem: o substitutivo do Deputado Antônio Carlos Biscaia ao PL 5139-2009 já trazia diretrizes para o efetivo avanço no sistema de ações coletivas.

Se este é o momento de mudar, mais apropriado seria retomá-lo, seja postulando a apreciação do recurso contra a decisão que, na época, por razões aparentemente não técnicas, rejeitou-o na CCJ da Câmara, ou então modificando os projetos mais recentes para incluir diretrizes do PL 5139-2009.

Em suma: se há disposição de mudar, que seja para melhor, não por mero formalismo ou para voltar ao passado.

O retrocesso não aproveitará à tutela dos interesses coletivos. Ficará como triste herança para as futuras gerações.

Estas custarão a compreender o porquê do abandono da posição de destaque e a volta ao cenário de quase quatro décadas passadas nesta matéria.

Autores

  • Brave

    é mestre, doutor e livre docente pela USP, professor associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e promotor de Justiça em São Paulo.

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