Opinião

As cortes supremas, afinal, não são inimigas da democracia

Autor

  • Renzzo Giaccomo Ronchi

    é juiz de Direito do TJ-MG doutorando em Direito pelo IDP mestre em Direito Constitucional pelo IDP docente da Escola Judicial (Ejef) do TJ-MG e professor colaborador do mestrado em administração pública da UFVJM.

30 de outubro de 2020, 6h04

Até hoje a Segunda Guerra Mundial continua sendo um marco importante para compreender, historicamente, o avanço da jurisdição constitucional em países democráticos.

Se até a Segunda Guerra Mundial o Poder Judiciário era visto com certa desconfiança, fenômeno que foi bem descrito por Chaim Perelman em sua obra lógica jurídica (Perelman, 2002, pp. 31-69), à medida em que as atrocidades cometidas pelo Partido Nazista vão se tornando públicas, o sistema de tripartição de poderes começa a ser revisto e, na busca de um mecanismo de preservação de valores maiores como vida, liberdade, dignidade da pessoa humana, dentre outros, a jurisdição constitucional ganha destaque por sua atuação contramajoritária na defesa dos direitos fundamentais.

Nesse contexto, surge a necessidade de problematizar os avanços da jurisdição constitucional na defesa dos direitos fundamentais com a ideia do princípio democrático, que pressupõe a tomada das decisões políticas mais importantes da sociedade por um corpo de representantes eleitos democraticamente pelo voto, segundo a teoria da tripartição de poderes formulada por Montesquieu.

Enfrentando esse dilema, Ronald Dworkin formula o que ele chama de a charada da democracia, escrevendo que, se por um lado, é evidente que ela se tornou muito popular entre os povos do mundo, por outro, há uma tendência em enxergar seu enfraquecimento em razão do chamado constitucionalismo, que permite a juízes não eleitos o poder de revisar decisões dos poderes executivo e legislativo quando for manifesta a violação dos direitos humanos assegurados pela Constituição. (Dworkin, 2001, pp. 155-156).

Para muitos, o constitucionalismo seria uma experiência antidemocrática, já que os cidadãos comuns estariam subordinados a uma elite de juízes. Mas essa premissa, segundo Dworkin, é contestável, à medida em que outros, por sua vez, veem no constitucionalismo a alma da democracia porque protege os direitos humanos. (Dworkin, 2001, p. 157).

Diante desse aparente impasse, Dworkin refuta a ideia de democracia vinculada ao governo da maioria do povo porque, se hipoteticamente estiver afastada das conquistas dos direitos humanos, não haveria justificativa moral, motivo pelo qual ele defende que, para além de uma maioria, há que se ver a democracia como um empreendimento coletivo em parceria. (Dworkin, 2001, pp. 158-160).

E é justamente nesse ponto que a democracia se aproxima do constitucionalismo porque pressupor uma parceria em um empreendimento coletivo de governo dos cidadãos exige que certos direitos individuais sejam assegurados (Dworkin, 2001, p. 161), sendo que, ao se adotar uma Constituição para proteger esses mesmo direitos, em caso de discordância, deverão ser interpretados e aplicados por juízes, que se encontram afastados do jogo político. (Dworkin, 2001, pp. 161-162).

A Constituição é o fio condutor do empreendimento democrático.

O constitucionalismo, portanto, não é inimigo da democracia. (Dworkin, 2001, p. 162).

Eis alguns exemplos de avanços da jurisdição constitucional no Brasil.

Em 2011, no julgamento da ADI nº 4277/DF, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade jurídica das uniões homoafetivas fundamentando na proibição de discriminação das pessoas em razão do sexo e na proibição do preconceito como capítulo do constitucionalismo fraternal. Foi reconhecido, também, que cada pessoa possui liberdade para dispor da própria sexualidade, sendo decorrência do direito à intimidade e à vida privada.

Agora em 2019, no julgamento da ADO nº 26/DF, o Supremo Tribunal Federal, reconhecendo o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do artigo 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBTQIA+, deu interpretação conforme à Constituição para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional.

Não obstante o grau de importância indiscutível dessas decisões para a evolução dos direitos humanos, há quem veja nesses julgamentos a chamada prática do ativismo judicial, violando o princípio da separação de poderes, com sério risco de fragilizar a produção democrática do direito (Streck, Barretto; Oliveira, 2019).

Diante desse panorama, pergunta-se: o desenvolvimento da jurisdição constitucional está em confronto direto com a democracia? Quando atua incisivamente na defesa de direitos fundamentais previstos no texto da constituição, concretizando posições jurídicas que não foram criadas ou regulamentadas pelo Poder Legislativo, não nos parece que esse tipo de atuação possa ser considerada uma violação ao princípio da separação de poderes tampouco uma forma de fragilização da democracia.

No Brasil, por exemplo, o caráter complexo qualificado pela conjunção do modelo representativo com instrumentos da participação direta do cidadão demonstra que a ordem democrática prevista na Constituição da República não se amolda à noção clássica de democracia liberal-individualista, guardando sintonia com uma concepção dinâmica de democracia, típica de uma sociedade aberta (livre), inclusiva (solidária) e plural (justa) em um ambiente marcado pela ideia de justiça social (artigos 3º, inciso I, c/c artigo 170 da CR) (Sarlet; Marinoni; Mitidiero, 2020, p. 282).

Não bastasse isso, também é oportuna a reflexão sobre o modelo de separação de poderes, concebido por Montesquieu.

Em texto provocativo intitulado "Adeus, Montesquieu", o professor de Direito e Ciência Política na Universidade de Yale Bruce Ackerman põe em xeque para os tempos atuais o modelo rígido de separação de poderes criado por Montesquieu no século XVIII.

Sem desconsiderar a grandeza desse pensador que tanto influencia até hoje o meio prático e acadêmico, o autor questiona que Montesquieu, naquele contexto histórico, não tinha nenhuma noção sobre partidos políticos, política democrática, desenhos constitucionais modernos, técnicas burocráticas e as ambições específicas do moderno Estado regulatório, de forma que ele não teria condições de captar adequadamente toda a complexidade contemporânea (Ackerman, 2014, p. 14).

Ainda que o autor não esteja sendo específico sobre o desenvolvimento da jurisdição constitucional nas democracias contemporâneas, sua reflexão nos deixa um importante espaço de abertura teórica para realmente questionar e pensar as críticas voltadas à atuação das cortes supremas de países democráticos quando avançam no reconhecimento de direitos humanos que não receberam a devida proteção ou regulamentação pelo poder legislativo, cujos representantes, eleitos pelo voto, por motivos óbvios, deixam propositalmente de enfrentar certos temas pela polêmica que provocam na sociedade.

É desejável que as questões mais complexas da sociedade sejam deliberadas no foro legislativo, mas, se por diversas razões não o foram, o só fato de terem sido discutidas e resolvidas pelas cortes supremas não significa que houve um enfraquecimento democrático, até porque, conquanto não faltem vozes sustentando que a última palavra sobre a constituição deveria ser dita pelo poder legislativo (Waldron, 2005), a história tem mostrado que as cortes supremas de cada país foram quem até o momento exerceram melhor essa função, equilibrando as forças políticas e sociais adversas.

Segundo Rawls, "um tribunal supremo encaixa-se nessa ideia de democracia constitucional dualista, como um dos dispositivos constitucionais para proteger a lei mais alta. Ao aplicar a razão pública, o tribunal age para evitar que a lei seja erodida pela legislação de maiorias transitórias ou, o que é mais provável, que corresponda a interesses estreitos, organizados e muito bem posicionados para fazer valer seus pontos de vista. Se o tribunal assume esse papel e o cumpre de forma efetiva, é incorreto afirmar que isso é claramente antidemocrático" (Rawls, 2020, p. 276).

Assim, cortes supremas podem não só ser as melhores intérpretes da constituição como podem também ser garantidoras do próprio pacto democrático, incumbindo-lhes a tarefa de concretizar os direitos fundamentais. (Bonavides, 2010, pp. 575-577).

Partindo dessa linha de raciocínio, cumpre abordar o papel desempenhado pelas cortes supremas diante de um fenômeno que tem sido cada vez mais recorrente nas democracias contemporâneas, qual seja o chamado constitucionalismo abusivo, expressão cunhada pelo professor norte-americano David Landau. (Landau, 2020).

O constitucionalismo abusivo é um mecanismo de mudança constitucional utilizado com o propósito de corroer a ordem democrática. Subdivide-se em ferramentas como emendas constitucionais ou substituição constitucional para minar a democracia com certa facilidade. (Landau, 2020).

Como o uso de métodos tradicionais de derrubada da democracia como golpes de Estado estão em declínio há décadas, pelo grande perigo que causam ao mundo contemporâneo, o uso de ferramentas constitucionais por presidentes pode projetar mudanças constitucionais, desarmando instituições e dificultando sua fiscalização pelo Poder Judiciário. Ao fim e ao cabo, as Constituições resultantes desse processo, a uma primeira visada, parecem não diferir muito daquelas Constituições liberais, porém, de perto, elas foram substancialmente retrabalhadas para minar a democracia. (Landau, 2020).

Importante acentuar que esses exemplos se encontram apenas na superfície que esconde um inimigo cada vez mais presente no mundo.

Na Colômbia houve a prática do constitucionalismo abusivo por emenda. O candidato Álvaro Uribe venceu as eleições em 2002 como outsider, contra dois partidos tradicionais. Como já tinha exercido os cargos de prefeito de Medelín e senador da República, ganhou popularidade pela percepção social de que havia diminuído sensivelmente os índices de violência no país.

Uribe apresentou emenda de reeleição, já que a Constituição da Colômbia exige apenas maioria absoluta do Congresso em duas sessões consecutivas. A emenda foi chancelada pela Suprema Corte, que rechaçou a alegação de inconstitucionalidade, sob o fundamento de que dois mandatos são razoáveis do ponto de vista internacional.

Não satisfeito, ao final do segundo mandato, Uribe tentou uma nova emenda para exercer um terceiro mandato, sendo que o Congresso, apoiando a iniciativa de Uribe, aprovou um referendo para tanto, mas dessa vez a Suprema Corte rejeitou a proposta, do ponto de vista processual e material, à justificativa de que havia problema de iniciativa e passagem no Congresso, além de que um terceiro mandato daria a Uribe o poder de nomear quase todos aqueles que seriam, em tese, responsáveis por sua fiscalização. (Landau, 2020).

Uribe aceitou a decisão da Suprema Corte, que impediu uma significativa erosão da democracia.

Na Venezuela, por sua vez, foi colocado em prática o constitucionalismo abusivo por substituição. Hugo Chavez foi eleito com 56% como outsider em um sistema tradicional de dois partidos, que perderam prestígio por conta de escândalos de corrupção.

Mesmo vencendo, os partidos derrotados ainda eram maioria no Congresso, de modo que não conseguia cumprir sua agenda.

Para neutralizar a oposição, Chavez articulou uma proposta de substituição da constituição vigente por outra, propondo referendo à luz de que o povo detinha um poder constitucional inerente. A Constituição venezuelana somente admitia reformas por emenda, mas nada falava sobre substituição constitucional. A Suprema Corte, agindo de forma passiva, concordou com a proposta ao fundamento de que o povo detinha um "poder constituinte originário".

Convocada a assembleia, como primeira medida, Chavez suspendeu o Congresso e, imediatamente, determinou o fechamento da própria Suprema Corte. Não bastasse isso, criou um conselho encarregado de expurgar o Judiciário. Algumas dessas ações foram questionadas posteriormente na Suprema Corte, que mais uma vez se recusou a intervir. Na nova Constituição, criou a regra dos dois mandatos de seis anos, permitindo, assim, que ele permanecesse no poder por até 12 anos. (Landau, 2020).

Com isso, Chavez arregimentou poder, removeu figuras da oposição e projetou instituições que ele pudesse controlar, o que foi feito até 2013, quando de sua morte. A Venezuela, portanto, tornou-se um regime autoritário competitivo (Landau, 2020), crise que se arrasta até os dias atuais com Nicolás Maduro, que se recusa a deixar a presidência do país, não aceitando o resultado das urnas.

Na Hungria, por sua vez, houve uma mistura de emenda e substituição. O partido Fidesz venceu as eleições em 2010, com 56%, mas, diante das regras de votação, esses 56% se converteram em 68% dos assentos.

O Fidesz assumiu o lugar de um partido socialista que administrava uma economia em decadência. Em sua origem pós-comunismo, o Fidesz defendia ideais libertários, contudo, em razão de derrotas nas urnas, passou a assumir um viés conservador. O partido desenvolveu uma forte campanha por reformas constitucionais radicais, conseguindo, no final de 2010, com que dez emendas fossem aprovadas, enfraquecendo, assim, instituições que fiscalizavam as maiorias parlamentares. (Landau, 2020).

Diante desse cenário, a Suprema Corte se recusou a revisar as emendas, sob o fundamento de que somente poderia por problemas procedimentais, o que não era o caso. Não bastasse isso, o partido então iniciou um processo de substituição constitucional, conseguindo minar qualquer atitude contrária da oposição. A nova Constituição aumentou o número de cargos na Suprema Corte, dando ao partido a oportunidade de escolha. Também foi criado o Escritório Nacional da Justiça, dando amplos poderes ao partido sobre a seleção de juízes e a designação de casos na jurisdição ordinária. A idade da aposentadoria foi reduzida de 70 para 62 anos, dando ao partido uma grande quantidade de vagas para preencher em um curto período. (Landau, 2020).

Mesmo com todas essas mudanças, a Suprema Corte húngara manteve sua independência e proferiu decisões contra o partido. Além disso, o partido encontrou resistência internacional, a exemplo da Comissão de Veneza, criada para prestar assistência constitucional às democracias de transição na Europa Oriental, tendo ela criticado certas partes do novo texto e leis correlatas. Em razão dessa resistência, o Fidesz reviu algumas de suas políticas, até por ser membro da União Europeia. Embora não se saiba qual será o resultado, isto é, de um regime, ou não, autoritário, fato é que o Fidesz caminhava claramente nesse sentido.

O que essas situações nos mostram? Que as cortes supremas de uma nação podem preservar a democracia, ainda que sejam criticadas por suposta deliberação ativista.

Aliás, o termo ativismo judicial é repleto de ambiguidade e dúvida, sendo, como o professor Paulo Gustavo Gonet Branco mencionou, "tão débil no seu conteúdo quanto forte na sua carga emocional" (Gonet Branco, 2011, p. 1).

Assim, o desenvolvimento da jurisdição constitucional e sua relação com o princípio democrático é um tema que ainda não foi esgotado pela literatura, de modo que as constantes mudanças pelas quais a democracia vem passando, a guinada autoritária em países de origem democrática, o crescimento de vitórias nas urnas de partidos de extrema direita, a decisão da Inglaterra sobre a sua saída da União Europeia (Brexit), o constitucionalismo abusivo, são fenômenos recentes e que lançam um novo olhar sobre a atuação das cortes supremas.

De nossa parte, uma coisa é certa: cortes supremas não são inimigas da democracia e sua persistente e incisiva atuação contramajoritária na defesa dos direitos fundamentais deve ser lembrada como ajuste ou mecanismo de salvaguarda do próprio sistema democrático, cujo elo de ligação é o pacto firmado na constituição, sendo que a apatia ou o silêncio eloquente dos poderes legislativo ou executivo, ao não cumprirem sua parte no empreendimento coletivo, deve ser superada para que a democracia, mais do que o governo da maioria, seja o governo razoável que respeite a todas e todos com igual consideração.

 

Referências bibliográficas
— ACKERMAN, Bruce. Adeus, Montesquieu. RDA – Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro. V. 265, 2014.

— BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 25ª ed. São Paulo: Malheiros; 2010.

— DWORKIN, Ronald. A democracia e os direitos do homem. Apud DARNTON, Robert; DUHAMEL, Olivier. Democracia. Rio de Janeiro: Record, 2001.

— GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Em busca de um conceito fugidio – o ativismo judicial. Apud André Fellet et alii (orgs). As novas faces do ativismo judicial. Salvador: Juspodivm; 2011.

— LANDAU, David. Constitucionalismo abusivo. REJUR – Revista Jurídica da UFERSA. Mossoró. V. 4. n. 7; 2020.

— PERELMAN, Chaim. Lógica jurídica. Nova retórica. Martins Fontes. São Paulo, 2002.

— RAWLS, John. Liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes; 2020.

— SARLET; Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva; 2020.

— STRECK, Lenio Luiz; BARRETTO, Vicente de Paulo; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Normas constitucionais inconstitucionais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-jul-19/confiar-interpretacao-constituicao-poupa-ativismo-judiciario, acesso em 20 de outubro de 2020.

— WALDRON, Jeremy. Derecho y desacuerdos. Madrid: Marcial Pons; 2005.

Autores

  • é juiz de Direito do TJ-MG, mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), mestrando em Processo Constitucional na Universidad Lomas de Zamora na Argentina, pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG e membro da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!