Olhar econômico

STF ainda pode impedir impactos econômicos da norma pseudo-inclusiva dos PCDs

Autor

  • João Grandino Rodas

    é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP da qual foi diretor mestre em Direito pela Harvard Law School mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

29 de outubro de 2020, 9h22

Spacca
A questão da fixação de percentuais de veículos de locadoras, a serem adaptados para pessoas com deficiência (PcD); bem como as exigências tecnicamente incompatíveis advindas de emprego errado de vocábulo, ambos ínsitos no art. 52, da Lei 13.146/2015, vem gerando polêmica. Em decorrência: (i) a Confederação Nacional do Transporte (CNT), embora reconhecendo os direitos das PcD e não desejando restringi-los propôs, em 20 de janeiro de 2016, ação direta de inconstitucionalidade 5.452/Distrito Federal, junto ao STF, cujo relator original foi o Ministro Dias Toffoli, que, ao aceder à presidência da referida Corte Suprema, deixou a relatoria para a Ministra Cármen Lúcia; e (ii) em, 2019, o Centro de Estudos de Direito Econômico e Social – CEDES realizou pesquisa a respeito1.

Em seu voto, a Ministra-Relatora, em suma, relembrou: os direitos fundamentais das PcD inscritos na Constituição vigente; e (ii) os artigos 3º, 4º, 9º e 20 da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, concluída em Nova Iorque em 2007, e aprovada pelo Brasil, com status constitucional (Dec. 6.949/2009); afirmando a seguir que as medidas legislativas sub judice conformam-se com precedentes do STF.

Com relação aos artigos da Lei 13.146/2015 questionados, disse a Relatora: (i) que “não se vislumbra contrariedade ao princípio da livre iniciativa”; (ii) que “não inviabiliza a atividade econômica de locadoras nem impõe às empresas ônus excessivo, atendendo-se ao princípio da proporcionalidade”; (iii) que a clareza dessas normas é tal, de modo a não possibilitar outra interpretação a não ser a literal; e (iv) que não há fundamento constitucional para a pretensão da autora, que pretende alterar os termos da lei e não interpretá-los.

Antes de exarar voto, concluiu a Ministra: (i) pela improcedência da pretensão restritiva da norma, somente alcançando a exigência de adaptação veicular os veículo de categoria M1, projetados e construídos para transportar até oito passageiros; (ii) que a alegação de erro de técnica legislativa não é apta a fundamentar pedido de declaração de inconstitucionalidade; (iii) que o parágrafo único do art. 52 prevê os itens mínimos de adaptação veicular componentes da cota legal da frota para PcD que, não impossibilita o acréscimo de outros elementos de tecnologia que sejam necessários à viabilização técnica da norma; (iv) que a vacatio legis de 180 é válida, não havendo motivo para postergar a eficácia da norma relativamente a veículos adquiridos após sua vigência; e (v) o art. 52 não institui, nem majora tributos, não afrontando, consequentemente, princípios de direito tributário.

Afinal, a Ministra Cármen Lúcia, em 22 de setembro de 2020, votou pela improcedência do pedido, no que foi seguida pelos demais Ministros do Pleno do STJ: Luiz Fux, Rosa Weber, Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre e Morais, Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Por estar em licença médica, não votou o Ministro Celso de Mello.

Inconformada a CNT, em outubro de 2020, opôs Embargos de Declaração em face do Acórdão2, cuja fundamentação, em resumo, é a seguinte. Existe erro de premissa no acórdão em tela, uma vez que a configuração mínima do art. 52 não atende as necessidades da grande maioria das PcDs. Esse artigo, além de não cumprir sua finalidade precípua de promover a mobilidade social das PcDs, viola o Código Brasileiro de Trânsito (art. 97), que dá competência ao Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN para estabelecer as especificações básicas dos veículos.

Por outro lado, a não preocupação com a correlação entre condutores habilitados com deficiência – 1,6% do total – e o percentual legal de 5% da frota veicular previsto no art. 52, resultou em nítida desproporcionalidade e ineficiência. Políticas públicas são de extrema importância, mas não podem divorciar-se de dados e percentagens estatísticas reais, sob pena de contrariar os princípios do art. 37 da Constituição: legalidade, publicidade e eficiência dos atos administrativos. In casu, inexiste elemento técnico, nem estudo demográfico a embasar os requisitos mínimos do art. 52. Ademais, o acórdão não se manifestou sobre a impossibilidade de cumprimento da obrigação contida no art. 52, em razão dos equívocos legislativos que impossibilitam seu cumprimento.

Foi requerido o acolhimento de embargos, “com efeitos modificativos”. Diante da incompatibilidade do suprimento dos vícios apontados com a solução anteriormente adotada, para que, sanados os vícios apontados, seja reformado o v. acórdão embargado pelos fundamentos de mérito aduzidos na (…) Ação Direta de Inconstitucionalidade.”

De sua parte, a pesquisa, realizada pelo CEDES, em 2019, foi ampliada no corrente ano, sendo relevantes as seguintes considerações:

  1. “O tratamento efetivo da inclusão pressupõe respeito às características demográficas, econômicas, sociais de cada unidade da federação.

  2. As políticas públicas efetivas devem estar embasadas em dados reais e não em suposições ou generalizações.

  3. Os percentuais fixados na Lei 13.146/2015 não refletem a diversidade da realidade socioeconômica e demográfica brasileira.

  4. Segundo dados das locadoras e das associações, a demanda real e atual para locação de automóveis adaptados estaria aquém da exigência trazida pela norma em análise.

  5. As diversas classes e graus de comprometimento de deficiências físicas exigem o caráter personalíssimo das adaptações. A legislação pode ser considerada discriminatória por não atender a alguns tipos de deficiência, tratando-as de forma homogênea.

  6. As exigências legais aplicar-se-iam à frota atual ou apenas aos veículos a serem adquiridos após a vigência do decreto ou do julgamento da ADIN?”

A guisa de conclusão, são cabíveis os embargos de declaração opostos em razão de violação efetiva aos artigos 11, 489 e 1.022 do Código de Processo Civil. Em nenhum momento, a Ação teve por finalidade restringir direitos das PcDs; nem contrapor-se às medidas de inclusão. Há no acórdão embargado erro de premissa, uma vez que a configuração mínima expressa no art. 52 não representa as necessidades mais comuns, por ter estabelecido uma espécie de veículo adaptado “universal” que atenderia à grande maioria das PcDs. Não se levou em conta, dessa maneira, a finalidade primeira de promover a mobilidade delas. Ademais, omitiu-se a inexistência, no acórdão embargado, da proporcionalidade entre a quantia de condutores habilitados com deficiência e o percentual de 5% da frota, previsto no art. 52. Não respondeu o acórdão à questão posta no sentido de que o art. 52 estabeleceu obrigação impossível de cumprimento, por ter fixado como requisitos mínimos do veículo adaptado, a presença de câmbio automâtico e comando manual de embreagem, visivelmente auto-excludentes. É vedado à lei exigir mais do que o permitido pela situação jurídica, bem como não pode uma determinação judicial exigir cumprimento de algo irrealisável. Lei que objetiva o impossível não possui eficácia. Já diziam os romanos: “Ad impossibilia, nemo tenetur” (Ninguém é obrigado a fazer o impossível). É forçoso concluir que o art. 52 é norma inaplicável. O próprio acórdão reconhece indiretamente a inviabilidade técnica da aplicação dessa norma, ao afirmar a possibilidade de acrescentar novos elementos de tecnologia necessárias à viabilização da aplicação da norma.

Adaptação aceitável é aquela que atende às necessidades mais comuns dos diversos tipos e graus de deficiência. Os requisites genéricos do art. 52 não representam as necessidades mais comuns das PcDs, nem trazem reais benefícios para elas.

Inobstante as especificidades próprias do único instrumento possível para enfrentar o acórdão unânime do Supremo Tribunal Federal entretanto é também a oportunidade que Corte tem de corrigir

São conhecidas as limitações dos Embargos de Declaração que objetivam efeitos infringentes. Entretanto é no momento, o instrumento possível de enfrentamento ao acórdão unânime do Supremo Tribunal Federal. Que a Corte Suprema brasileira saiba usá-lo, como meio eficiente e célere de evitar impacto econômico substancial nas locadoras de veículos; que redundem: (i) em dificultar, economicamente, o acesso dos PcDs aos veículos adaptados; e (ii) no aumento do custo da utilização de veículo locado, a toda a população.


1 Rodas, João Grandino, “Frota de veículos para pessoas com deficiência: conclusão de pesquisa”, Revista Eletrônica Conjur, de 22 de agosto de 2019.

2 “EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. PARÁGRAFO ÚNICO E CAPUT DO ART. 52 E ART. 127 DA LEI N. 13.146/2015 (LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA). DETERMINAÇÃO A LOCADORAS DE VEÍCULOS DE DISPONIBILIZAÇÃO DE UM VEÍCULO ADAPTADO A CONDUTOR COM DIFICIÊNCIA A CADA CONJUNTO DE VINTE UTOMÓVEIS DA FROTA. ATENDIMENTO AOS PRINCÍPÍOS CONSTITUCIONAIS. DIREITOS FUNDAMENTAIS DE MOBILIDADE PESSOAL E DE ACESSO À TECNOLOGIA ASSISTIVA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.”

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  • é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, da qual foi diretor, mestre em Direito pela Harvard Law School, mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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