Opinião

Como ficam ou como devem ficar os atuais contratos de saneamento básico

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

29 de outubro de 2020, 20h14

Historicamente, o saneamento básico no Brasil era prestado por múltiplas formas de contratação. Havia de tudo: contratos de programa (cf. o revogado artigo 13 da Lei nº 11.107/05), convênios de cooperação, contratos de concessão, prestação por outorga, negócios jurídicos que sequer se conseguiria adaptar a um modelo legalmente vigente ou, no limite, não havia nenhum negócio jurídico — sim, isso existia: a prestação do serviço se dava sem qualquer contrato.

Com a edição da Lei nº 14.026/2020, que instituiu um novo marco legal no setor, esse panorama deverá ser alterado, porque a tal legislação impõe que o dito serviço público seja prestado por meio de contratos de concessão — na forma do artigo 175 da Constituição Federal. Em termos simples, a execução do serviço de saneamento básico deverá ser delegada mediante prévia licitação, momento em que se estabelece uma disputa pelo contrato de concessão, nos termos definidos pela regulação incidente e pelo edital publicado.

Contudo, existe uma série de ajustes em curso que, mal ou bem, são atos jurídicos perfeitos e protegidos pelo artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88). De outro lado, pesa a urgência em se regularizar e padronizar o setor, a fim de que as metas de universalização e de integralidade sejam alcançadas, as quais estão fixadas no artigo 10-B (para os contratos atuais) e no artigo 11-B (para os contratos futuros) — ambas as regras estão inseridas na mencionada Lei nº 14.026/2020.

Sendo assim, como ficam ou como devem ficar os atuais e vigentes contratos na área de saneamento básico? O tema é muito relevante neste período de transição para o atual modelo legalmente definido, e impacta mais fortemente no âmbito das empresas estatais que atualmente prestam o serviço em grande parte do país — falo aqui de empresas como Sabesp (São Paulo), Sanepar (Paraná), Casan (Santa Catarina), Corsan (Rio Grande do Sul), Copasa (Minas Gerais), entre outras tantas.

Nesse tema, a lei tentou ponderar ambos os direitos e interesses antes mencionados. Primeiro, o artigo 17 da Lei nº 14.026/2020 garantiu que os contratos de concessão e os contratos de programa para prestação dos serviços públicos de saneamento básico existentes na data de publicação da citada legislação permanecerão em vigor até o advento do seu termo contratual — aliás, esse dispositivo contou com longo e intenso debate no Congresso Nacional, durante a votação do mencionado "novo marco legal do saneamento básico". De outro lado, para tutelar o atingimento das metas de universalização, ficou determinado que os contratos atuais devem ser mantidos, mas com adaptações.

Assim, a própria Lei nº 14.026/2020 determinou que os ajustes atuais devam: 1) "definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, assim como metas quantitativas de não intermitência do abastecimento, de redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento." (cf. artigo 11-B, caput); e 2) "estar condicionados à comprovação da capacidade econômico-financeira da contratada, por recursos próprios ou por contratação de dívida, com vistas a viabilizar a universalização dos serviços na área licitada até 31 de dezembro de 2033 (…)" (cf. artigo 10-B). Caso não sejam feitas essas adaptações determinadas legalmente até 31 de março de 2022, os negócios jurídicos em vigor consideram-se nulos de pleno direito — artigo 11-B, §1º, combinado o artigo 10-A, caput.

Portanto, é curioso notar que o legislador tentou ponderar e compor dois interesses: 1) a preservação dos contratos em vigor; e 2) a necessidade de que as metas de universalização sejam alcançadas. Para tanto, a providência mencionada no artigo 10-B é muito relevante (v.g. os atuais prestadores deverão provar que possuem capacidade financeira para atingir as metas de universalização). Veja que o alcance das metas reclama altos investimentos falamos disso em outros textos publicados na ConJur (aqui e aqui). Logo, a mera previsão da obrigação do atingimento das metas de universalização nos contratos de prestação do serviço de saneamento não possui efetividade se desacompanhada de outras providências. A Lei nº 14.026/2020 procurou dar essa robustez e a segurança na implementação das referidas metas ao determinar que o prestador, atual e futuro, faça prova suficiente da sua capacidade de investimentos. E isso, é claro, passa pela prova da sua capacidade econômico-financeira.

Um adendo antes de continuarmos a nossa exposição. Vimos que o artigo 17 da Lei nº 14.026/2020 preservou pactos atualmente em curso, mas firmados antes da edição da referida legislação. Contudo, tal dispositivo se referiu apenas: 1) aos "contratos de concessão", regidos pelo artigo 175 da CF/88 e objeto de prévia licitação; e 2) aos "contratos de programa", formatados na forma da Lei dos Consórcios Públicos, ou seja, sem prévia licitação. De modo que a lei não preserva a manutenção de ajustes em curso fora destas duas hipóteses ou, claro, quando a prestação sequer detenha base em qualquer negócio jurídico. Nesses casos, a prestação poderá ser denunciada (v.g. extinta) pelo poder concedente.

Retomando. Diante do panorama que se impõe à prestação do serviço público de saneamento básico, que deverá ser executado pelo modelo de delegação de serviço, as atuais empresas públicas ou sociedades de economia mista podem não conseguir ser competitivas ou mesmo deter condições de continuar prestando o serviço. Desse modo, a Lei nº 14.026/2020 franqueou algumas, digamos, "saídas honrosas". Uma delas é a possibilidade de serem desestatizadas, ou seja, alienadas ao mercado, sendo que os Estados deixariam de deter o controle acionário das referidas companhias.

Quando isso acontece, ou seja, na hipótese de uma concessionária modificar seu controle societário, é necessário que o poder público concedente autorize. Se isso não acontece, ou seja, a mudança do controle ocorre sem a autorização do titular do serviço público, o contrato de concessão é extinto, porque declarada a sua caducidade. Essa é a lógica estabelecida no artigo 27, caput, da Lei nº 8.987/95 (Lei Geral de Concessões e Permissões de Serviço Público). Em outras palavras, se a empresa A comprasse a empresa B, concessionária, sem a autorização do Estado titular do serviço público, a extinção do contrato seria medida a ser praticada.

Então, se aplicássemos a lógica da lei geral, cada município concedente deveria autorizar a eventual desestatização de uma empresa estatal concessionária de serviço público de saneamento, sob pena de se ter a caducidade dos contratos. Contudo, a tal lógica foi um pouco alterada pela Lei nº 14.026/2020, até para dar vasão à teleologia do novo marco legal, que é a privatização de toda a prestação do serviço — cuide que, aqui, não estamos a entrar no mérito se isso é bom ou ruim. Estamos simplesmente a detalhar o que a lei previu.

Nos casos de alienação de controle acionário de empresa pública ou sociedade de economia mista prestadora de serviços públicos de saneamento básico, os contratos de programa ou de concessão em execução poderão ser substituídos por novos contratos de concessão, observando-se, quando aplicável, o Programa Estadual de Desestatização (artigo 14, caput):

a) Mas a autorização do município, nesse caso, não será necessária, se o controlador da empresa pública ou da sociedade de economia mista, ou seja, o Estado federado não manifeste a necessidade de alteração de prazo, de objeto ou de demais cláusulas do contrato no momento da alienação (artigo 14, §2º). Nessa situação, fica dispensada anuência prévia da alienação pelos entes públicos que formalizaram o contrato de programa. Em outras palavras, o município titular do serviço — poder concedente — deverá aceitar o novo prestador que adquiriu a empresa estatal, respeitando o contrato em vigor. Haverá, aqui, uma espécie de "novação compulsória do polo passivo do contrato". Nesta situação, entendemos que duas providências se fazem necessárias:

a-1) As adaptações antes mencionadas para garantir o cumprimento das metas devem constar no contrato e serem impostas ao novo prestador. De modo que continua existindo o dever de adaptar o ajuste na forma do artigo 11-B;

a-2) O novo controlador da empresa estatal deverá demonstrar que possui a mesma capacidade técnica, econômica, operacional etc. da empresa estatal, sob pena de o município concedente ser obrigado a aceitar uma concessionária que, de plano, prestaria um serviço inadequadamente. Então, o adquirente da empresa estatal deverá demonstrar que possui os requisitos operacionais exigidos pelo poder concedente, quando da assinatura do contrato de programa original;

b) O Estado federado que é controlador da empresa pública ou da sociedade de economia mista pode propor a alteração de prazo, de objeto ou de demais cláusulas do contrato de programa ou de concessão em vigor antes de sua alienação. Nessa situação, deverá ser apresentada proposta de substituição dos contratos existentes aos entes públicos que formalizaram o contrato de programa, os quais terão o prazo de 180 dias, contado do recebimento da comunicação da proposta, para se manifestar (artigo 14, §§2º, 3º e 5º, da a Lei nº 14.026/2020). Caso o poder concedente nada diga neste prazo, a situação configurará anuência à proposta. Temos aqui verdadeiro silêncio administrativo com efeitos positivos [1]. De qualquer sorte, os municípios deverão anuir às modificações, seja expressa ou tacitamente.

Em resumo, então, a desestatização do atual prestador sem a mudança do contrato em vigor não precisa da anuência dos municípios concedentes do serviço de saneamento básico. E, de outro lado, os contratos em vigor poderão ser renegociados nos itens listados pelo citado artigo 14, sendo que os municípios, nesse caso, podem aceitar ou não as condições propostas pelas empresas estatais.

Claro que, nesta última hipótese, compreendemos que a mudança do contrato, pactuada entre o município e o controlador da empresa estatal, deverá ser condicionada à alienação desta última. A lei permitiu que se fizessem de comum acordo modificações no ajuste atual para facilitar a melhor venda e a boa prestação por quem vir a adquirir a sociedade de economia mista ou a empresa estatal prestadora. Por isso que, repito, a modificação consensual do contrato atual deve estar atrelada a um plano de alienação da empresa estatal.

A partir deste cenário, trago ao leitor alguns pontos à reflexão, seguidos das nossas conclusões:

1) Pergunta: a renegociação dos contratos em vigor reclama a edição lei municipal autorizativa? Em outras palavras, para que se possa alterar os contratos, seja naquilo que a Lei nº 14.026/2020 obriga, seja naquilo que ela permite, é necessária a edição de lei municipal neste sentido? Entendemos que não, por conta de que há uma imposição de renegociação nos pontos relativos ao atingimento das metas de universalização e à prova de capacidade econômica para tal (cf. artigos 10-B e 11-B), bem como um permissivo para renegociar no artigo 14 da Lei Nacional do Saneamento Básico. Assim como a lei nacional em questão definiu que o município é o titular de tal serviço público — poderia não ter assim o feito —, é ela também quem define a forma e as condições desta prestação em última instância. Logo, as renegociações permitidas ou impostas possuirão base na lei nacional, dispensando-se lei municipal específica em todas estas situações:

1-1) De um lado, os prefeitos deverão renegociar os contratos atuais que devem ser mantidos (cf. ­artigo 17) nos temas relativos à capacidade financeira das empresas e ao cumprimento das metas de universalização — e isso, como dito, não depende de autorização em lei local, porque a legalidade da atuação tem lastro na Lei nº 14.026/2020. Aliás, a adaptação dos contratos é atuação administrativa vinculada;

1-2) De outro lado, os titulares do serviço deverão aceitar a mudança do controle societário em caso de desestatização sem mudança dos contratos em vigor, tudo com base na lei nacional citada;

1-3) E mais: os municípios poderão concordar com a alteração de prazo, de objeto ou de demais cláusulas do contrato de concessão ou de programa em vigor, antes de alienação da empresa estatal. Nesse caso, poderão até se quedar inertes, anuindo tacitamente com proposta feita pelos controladores das empresas estatais.

2) Outra pergunta: pode ser considerada válida uma cláusula no contrato em vigor que diga que o pacto será extinto de pleno direito com a modificação do controle societário da empresa ou com uma eventual desestatização, ainda que parcial? Explico: há muitos contratos de programa que possuem cláusulas que dizem que, se a empresa pública ou sociedade de economia mista for alienada, o pacto de extingue de plano. Digo já: essas cláusulas perderam efeito.

2-1) Primeiro, porque tinham base e, na maioria dos casos, repetiam literalmente o disposto §6º do artigo 13 da Lei nº 11.107/05, que efetivamente determinava a automática extinção do ajuste no caso de o contratado não mais integrar a administração indireta do ente da federação que autorizou a gestão associada de serviços públicos por meio de consórcio público ou de convênio de cooperação. Contudo, esse dispositivo foi revogado expressamente pela Lei nº 14.026/2020. Logo, há uma verdadeira caducidade da cláusula contratual em vigor e que repetia dispositivo não mais vigente. Nessa situação, a caducidade se opera, porque um permissivo não possui mais previsão legal;

2-2) Como se não bastasse a revogação expressa do §6º do artigo 13 da Lei nº 11.107/05, a Lei nº 14.026/2020 justamente fez uma série de previsões normativas acerca da possibilidade de desestatização, sendo esta justamente e como dito, a finalidade do referido marco legal. Logo, eventual cláusula contratual com o mencionado conteúdo vai de encontro às previsões normativas atuais;

2-3) Por fim, a lei nacional, se de um lado mantém os contratos atualmente em vigor, de outro permite a desestatização. Logo, a cláusula contratual restritiva neste sentido viola a legalidade administrativa atual.

 


[1] Tratamos deste tema na nossa obra: HEINEN, Juliano. Curso de direito administrativo. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 588 e ss.

Autores

  • é procurador do Estado do Rio Grande do Sul, doutor em Direito (UFRGS), professor de Direito Administrativo e autor da obra "Curso de Direito Administrativo" (Ed. Juspodivm).

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