A ocupação sustentável da zona costeira
28 de outubro de 2020, 12h12
Outro dia escrevi sobre a revogação da Resolução 303/2002 pelo Conama e o impacto na restrição de ocupação da zona costeira no país. Defendi que a proibição de ocupação deve se limitar aos locais onde a legislação em vigor estabeleceu como de preservação permanente (APP) e que a expectativa de que o ser humano se estabeleça a 300 metros do mar não é realista [1].
Menciono, então, a forma como os Estados Unidos tratam o tema, por se tratar de país desenvolvido economicamente e, assim como o Brasil, com extenso litoral [2].
Diferentemente da Constituição brasileira, a Constituição dos EUA não prevê direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Quando tal discussão alcança a Suprema Corte, em geral, a questão resvala para a afetação da propriedade privada (takings doctrine) [3]. Por outro lado, quase metade das Constituições dos Estados norte-americanos possui algum tipo de previsão na esfera ambiental [4].
A competência do congresso norte-americano para legislar sobre Direito Ambiental, mesmo sobre recursos e propriedades não pertencentes ao governo federal, advém principalmente da interpretação extensiva que a Suprema Corte atribuiu à cláusula de comércio (commerce clause) [5]. Exercendo essa atribuição, o Congresso aprovou, em 1972, a Lei de Gestão da Zona Costeira (Coastal Zone Management Act — CZMA), que trata de regras gerais sobre o desenvolvimento da zona costeira no país. O detalhamento da ocupação ficou a cargo dos planos estaduais de gerenciamento costeiro, que dispõem, em regra, de um sistema de licenças para controlar o desenvolvimento dessas áreas.
O Estado de Delaware, localizado na costa leste dos Estados Unidos, foi o primeiro a criar, em 1971, uma lei regulamentando o uso da terra em zona costeira (Coastal Zone Act — CZA), visando a conter o rápido desenvolvimento industrial nessas áreas. A lei proibiu a instalação de atividades de "indústria pesada" que não estivessem em operação em 28 de junho de 1971, porém permitiu outras atividades industriais mediante licença.
Em 1972, o Estado promulgou a Lei de Preservação da Praia (Beach Preservation Act), com o objetivo de aprimorar, preservar e proteger as praias públicas e privadas do Estado. As praias foram declaradas recursos naturais importantes para o lazer e proteção das pessoas e propriedades contra tempestades, assim como um recurso econômico importante para a população.
Para o desenvolvimento e a ocupação da área definida como "praia" [6], a lei estabeleceu uma linha de construção (building line), isto é, um traçado paralelo à costa onde é proibido qualquer tipo de construção sem prévia licença do poder público. A linha varia conforme a região e as características locais, e está prevista em mapas elaborados pelo Departamento de Recursos Naturais e Controle Ambiental, respeitando-se as estruturas já existentes no local na época da edição da lei.
Para conceder a autorização, o Estado exige que a obra esteja em conformidade com regulamentos de proteção e uso dessas áreas, os quais visam à preservação das praias e das dunas e à proteção das construções contra intempéries.
O Estado também fornece guias de boas práticas de construção, que levam em consideração as características desses locais. Disponibiliza, por exemplo, um "manual de construção costeira", que descreve princípios e práticas de planejamento, localização, projeto, construção e manutenção de residências na orla marítima.
Percebe-se, assim, uma preocupação de, juntamente com a preservação dos ecossistemas de praias e dunas, não retirar completamente a possibilidade de ocupação dessas áreas, desde que as construções sejam acompanhadas de propósitos sustentáveis (greenbuilding) e seguras contra desastres naturais, condições a serem previamente analisadas pelo poder público.
Nesse contexto, a ideia de se proibirem empreendimentos altamente poluidores, como indústrias pesadas, porém autorizar, mediante condicionantes e compensações, o uso residencial e a instalação de pequenos comércios em zona costeira parece caminhar em um sentido de proteção ambiental mais efetiva. Em outras palavras, concluindo-se inevitável a ocupação da orla nos locais não caracterizados como APP, preferível que ocorra de modo transparente, com construções sustentáveis e em traçados (building lines) variáveis conforme as características locais.
[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-22/daniel-raupp-revogacao-resolucao-30302-Conama.
[2] Pesquisa desenvolvida com maior profundidade em curso de Mestrado, que resultou na publicação do livro "O Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado e a Possibilidade de Ocupação da Zona Costeira Mediante Desenvolvimento Sustentável", publicado pela Editora Habitus.
[3] Decisão da Suprema Corte dos EUA no caso Lucas v. South Carolina Coastal Council (1992) estabeleceu que uma norma que retire todo o valor econômico da propriedade, mesmo que objetivando um bem comum de proteção ao meio ambiente em exercício válido do poder de polícia estatal, é considerada desapropriação, e, portanto, o proprietário deve ser indenizado.
[4] MAY, James R. Principles of Constitutional Environmental Law. Chicago: American Bar Association Publishing, 2011. p. 306.
[5] O artigo I, seção 8, da Constituição dos EUA, prevê que o "Congresso terá o poder de regular o comércio entre os diversos Estados". Com base neste dispositivo, a Suprema Corte entendeu que o Congresso poderia legislar sobre assuntos internos que pudessem afetar os Estados em geral, mas não aqueles que dissessem respeito a um Estado em particular, sem afetar outros estados (Gibbons v. Ogden, 22 U.S. (9 Wheat.) 1, 195 (1824).
[6] A lei definiu o termo "praia" como a área de mil pés (304,8 metros) em direção à terra e de 2.500 pés (762 metros) em direção ao mar, contados a partir da linha de preamar média (7 Del. C. § 6802(1)).
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!