Consultor tributário

Plenário Virtual em tempos de pandemia massacra o contribuinte (e o Estado de Direito)

Autor

  • Hugo de Brito Machado Segundo

    é mestre e doutor em Direito professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (de cujo programa de pós-graduação — mestrado/doutorado — foi coordenador) professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado) membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA) advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität em Viena (Áustria).

28 de outubro de 2020, 8h27

Spacca
Tem sido noticiado na imprensa, com alguma ênfase, o fato de que o Supremo Tribunal Federal, nas sessões que realizou durante a pandemia da Covid-19 neste ano de 2020, julgou quase quarenta “teses” em matéria tributária. Aproximadamente o dobro do que se julgou, relativamente a esse ramo do Direito, nos últimos quatro anos somados. E, ao fazê-lo, teria permitido à União “economizar” entre 500 e 600 bilhões de reais, pois das quase quarenta, trinta e uma foram julgadas favoravelmente à Fazenda Pública (clique aqui).

O fato é preocupante, principalmente se examinadas as suas causas, e suas possíveis consequências.

Não se devem interpretar julgamentos favoráveis à Fazenda Pública, na solução de lides tributárias, como fatores de “economia” de recursos públicos. Até porque, se o julgamento fosse desfavorável, não haveria “gasto”, “prejuízo” ou “perda”, mas tão somente a recomposição do patrimônio dos cidadãos, indevidamente desfalcado por uma exigência ilegal.

Que a mídia faça isso, partindo de uma compreensão não especializada do que se discutia em tais julgamentos, compreende-se. Que a Advocacia Pública assim proceda, na tentativa de valorizar a própria atuação, também. Mas que o próprio Conselho Nacional de Justiça aja desta maneira, é no mínimo lamentável. E, sim, o CNJ procura justificar as despesas do Poder Judiciário com o fato de que ele seria “superavitário” porquanto “arrecada” quantia superior aos seus gastos, ao julgar questões tributárias1.

A função do Poder Judiciário não é arrecadar, sendo muito preocupante que se procurem justificar os gastos nos quais ele incorre com o fato de que ele “gera” para a Fazenda receita a tanto suficiente. Que parcialidade pode ter o órgão que julga uma questão envolvendo a Fazenda Pública, se um resultado a ela favorável será visto como motivo para que dela se recebam vantagens, sob a forma de recursos a serem aplicados em seu favor? Nenhuma.

Pode estar, porém, a leitora a perguntar: e o que isso tem a ver com a sistemática de Plenário Virtual do STF, e com a pandemia, referidas no título deste artigo?

A relação com a pandemia talvez seja de mais fácil percepção: o Judiciário, se se sente no dever de “arrecadar” e assim financiar os cofres públicos, vê essa sua responsabilidade redobrada diante da pandemia, que leva a uma contração das receitas públicas, decorrente da própria diminuição na atividade econômica, e a um aumento das despesas ligadas ao enfrentamento da doença e de seus efeitos. Mas, se é indevida a assunção da responsabilidade de “arrecadar” por parte do Judiciário, igualmente descabido é considerar que maiores gastos aumentariam essa responsabilidade. Principalmente se se considerarem os motivos pelos quais as receitas públicas diminuíram e as despesas aumentaram, os quais por igual assolam os que integram o setor privado, prejudicado por tal papel “arrecadatório” assumido pelo Judiciário.

Já o Plenário Virtual guarda relação menos evidente, embora igualmente preocupante, por somar-se aos apontados fatores e assim conduzir a verdadeiro massacre ao princípio do devido processo legal, e, com ele, à própria ideia de Estado de Direito.

Não se deve confundir Plenário Virtual com julgamentos feitos com o auxílio de meios eletrônicos de comunicação. Não se está referindo, com efeito, a julgamentos ocorridos nos vários tribunais do país, com o uso de plataformas como o zoom, nos quais julgadores relatam casos, advogados realizam sustentações orais e em seguida se estabelece um debate real, ainda que à distância. Não. O Plenário Virtual é outra coisa.

Vale conferir o que consta do site do próprio STF a respeito desta figura:

“Criado em 2007, o Plenário Virtual é um sistema que permite aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) deliberarem se determinada matéria apresenta ou não repercussão geral, pré-requisito introduzido pela Emenda Constitucional (EC) 45/2004 (Reforma do Judiciário) para admissibilidade de Recurso Extraordinário (RE). Um dos objetivos da reforma foi o de reduzir a quantidade de causas remetidas à última instância do Judiciário, permitindo ao STF se dedicar a questões mais relevantes.

A partir do momento que um tema é incluído no sistema, os ministros têm 20 dias para votar. Nos casos em que o relator reconhece a existência de repercussão geral, para sua recusa, de acordo com a Constituição Federal, é necessária a manifestação expressa de pelo menos oito ministros. O Plenário Virtual funciona 24 horas por dia e é possível que os ministros o acessem de forma remota, permitindo a votação mesmo estando fora de seus gabinetes. Entre os principais temas com repercussão geral reconhecida estão as questões eleitorais, criminais e econômicas.

Uma reforma no Regimento Interno do STF em junho de 2016 passou a permitir também o julgamento de alguns recursos internos (Agravo Interno e Embargos de Declaração) por meio do Plenário Virtual da Corte.

Além de dar celeridade à análise de temas relevantes, o Plenário Virtual também oferece transparência no acompanhamento das decisões. Até novembro de 2008, apenas os ministros e os tribunais cadastrados tinham acesso ao sistema, mas os ministros do Supremo decidiram ampliar o acesso, permitindo o acompanhamento pela sociedade dos julgamentos sobre existência de repercussão geral.

A consulta está disponível no link Plenário Virtual na página do STF e permite acompanhar o voto de cada ministro acerca da existência de repercussão geral em determinado tema.”

Quando um processo é incluído nessa sistemática, que não é mais usada apenas para debater se há ou não repercussão geral, sendo em verdade empregada no trato de qualquer matéria pelo STF, não há deliberação efetiva. Não há debate. Não há contraditório. Inserem-se no sistema o relatório; as sustentações orais, que são gravadas previamente pelos advogados e enviadas; e os votos de cada Ministro. E, ao final, se anuncia o resultado.

Como se percebe, o emprego da sistemática permite, primeiro, que os Ministros votem sem sequer abrir o arquivo em que constam as sustentações orais dos advogados, ou mesmo os votos dos colegas. O debate, que já não ocorria de maneira satisfatória mesmo em sessões presenciais tradicionais, é completamente esvaziado.

Poder-se-ia dizer que isso prejudicaria a ambos os lados, advogados públicos e privados, pois a sustentação de todos eles é inserida em arquivo gravado, de maneira assíncrona, sendo por igual passível de desatenção pelos julgadores. Por que, então, o Plenário Virtual levaria a prejuízo aos contribuintes apenas?

Primeiro, pelas razões anteriormente indicadas, de o Judiciário considerar-se portador da missão de arrecadar, até como forma de legitimar ou justificar seus próprios gastos. Só isso já seria suficiente para que a falta do debate prejudicasse fortemente aquele encarregado de tentar convencê-lo a não exercer essa missão diante do que se pretende apontar como sendo uma cobrança feita em violação ao ordenamento jurídico. O outro lado não precisa fazer nada.

Mas não só. Há, ainda, um fato que precisa ser mais amplamente debatido: a circunstância de Ministros de Cortes Superiores terem, entre seus assessores, advogados públicos, notadamente Procuradores de Fazenda. É inegável que tais assessores, por menor que seja a autonomia que eventualmente se lhes conceda na confecção de decisões e votos, poderão de algum modo contribuir, ainda que involuntariamente, para que prevaleça a tese favorável ao ente público ao qual servem, em cargo do qual estão apenas temporariamente licenciados.

O mais grave, porém, é que a sistemática do Plenário Virtual leva a julgamentos nulos, por vício na fundamentação, porquanto não se pronunciam sobre os fundamentos, empregados no processo, que seriam capazes de infirmar as conclusões a que chegaram (CPC, art. 489, § 1.º, IV). Veja-se que o CPC não se reporta apenas a argumentos usados pelas partes. Refere-se àqueles que constam do processo, o que abrange inclusive razões invocadas por outros votos, divergentes, os quais não podem ser simplesmente ignorados por aquele que abraça tese diversa. Não há obrigação de um Ministro concordar com ninguém, mas existe o dever, constitucional, desdobrado no CPC, de explicar os motivos da discordância.

A questão é mesmo epistemológica. Nenhuma crença, seja ela a que subjaz a uma teoria científica, seja a que ampara uma decisão, administrativa ou judicial, será jamais definitivamente justificada. Todo argumento apresentado como justificativa pode, enfim, ser desafiado por nova cobrança de fundamentos: e por quê? Mas uma crença, seja ela a que subjaz a uma teoria científica, ou a um a decisão judicial, pode ser considerada suficiente e satisfatoriamente fundamentada, quando aquele que a justifica puder encerrar, ainda que provisoriamente, a cadeia de justificativas que é cobrado a apresentar, devolvendo a quem lhe cobra fundamentos a pergunta: e por que não? É essa a razão pela qual o art. 489, § 1.º, IV do CPC, em explicitação do óbvio (dentre tantas outras que constam do mesmo parágrafo), esclarece que a falta de resposta para argumentos surgidos no processo e capazes de infirmar a decisão a fazem não fundamentada.

E o Plenário Virtual, pela sua própria forma de funcionamento, permite aos Ministros proferirem, como dito, votos que ignoram os pronunciamentos dos colegas que os antecederam na votação, e, com mais eloquência ainda, as manifestações dos patronos das partes. Isso faz com que todas as razões apontadas na tentativa de demover o Judiciário de sua função arrecadatória, na peleja de mostrar-lhe que uma invalidade grave impede que a missão seja exercida naquela situação, sejam simplesmente ignoradas. Daí por que dos 37 temas apreciados, 31 foram favoráveis à Fazenda.

Não seria isso, porém, decorrente do fato de a Fazenda ter mesmo razão nesses 31 temas que lhe foram julgados favoravelmente? Improvável, embora não impossível. Sobretudo se se considerar que, na maior parte deles, o STF deu às costas não só ao que os advogados diziam da tribuna — ou dos arquivos eletrônicos armazenados no Plenário Virtual — mas à sua própria jurisprudência, sem sequer apontar os motivos de possíveis superações ou overrullings.

Em verdade, não são os especialistas na matéria, os advogados dos contribuintes ou a jurisprudência do próprio STF construída ao longo de décadas que estão todos errados. Eles simplesmente não foram ouvidos, prevalecendo apenas o clamor do Fisco, incorporado no próprio relatório do CNJ, de que se lhe permita maior arrecadação. Assim, como já se disse na conclusão de outro texto escrito para esta coluna, o Direito Tributário de nada mais servirá, pois a arrecadação será, como o era na Antiguidade, obtida com, contra ou mesmo sem ele.


1 Sou muito grato à minha orientanda, Lislie de Pontes Lima Lopes, pela indicação dessa informação específica, disponível no relatório “Justiça em Números”: "Em razão da própria natureza de sua atividade jurisdicional, a Justiça Federal é a responsável pela maior parte das arrecadações: 53% do total recebido pelo Poder Judiciário (Figura 25), sendo o único ramo que retornou aos cofres públicos valor superior às suas despesas (Figura 26)". https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf

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    é doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e do Centro Universitário Christus (Unichristus). Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA). Visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).

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