Opinião

Juízo arbitral pode analisar o mérito do ato administrativo?

Autor

27 de outubro de 2020, 20h22

A partir da reforma administrativa, nos idos de 1995, houve uma progressiva retirada do Estado do cenário econômico, isto é, ocorreu um fortalecimento da sua atuação em caráter subsidiário, inclusive no âmbito das prestações de serviço público, por intermédio das concessões ou parcerias público-privadas e, por consequência, um aumento da contratualização das relações jurídicas entre o Estado e estes últimos. Em suma, o Estado passou a ser o leme na condução das atividades, e não mais o remador.

Com isso, as discussões sobre as cláusulas contratuais advindas dessas relações jurídicas aumentaram, tanto em razão da complexidade de seu conteúdo quanto da constatação de que se faz necessária uma visão mais atenta às suas consequências econômicas porquanto estes concessionários e parceiros exercem relevante atuação na inovação e na empregabilidade de pessoas.

Dessa forma, as cláusulas contratuais demandam uma interpretação e aplicação por intermédio de um sistema dotado de conhecimentos técnicos específicos, com um caráter interativo, célere e dialógico mais aderente à atual realidade.

Atento a isso, o legislador vem permitindo a instauração da arbitragem pela Administração Pública como instrumento de solução de controvérsias, desde que atendidos determinados requisitos que permitam os controles estatal e social, como: 1) a publicidade; 2) a transparência [1]; 3) a arbitragem de direito (e não de equidade); e 4) a contratação da câmara de arbitragem por intermédio de critérios objetivos, tendo em vista a sua natureza de serviço técnico de natureza singular, seja com amparo na Lei nº 8.666/93 ou mediante termo de colaboração a ser celebrado nos moldes da Lei nº 13.019/2014 [2].

E ainda que não houvesse previsão legal expressa acerca de sua utilização, ou previsão expressa no contrato ou no edital, nada impediria a sua instauração mediante compromisso arbitral celebrado a posteriori, uma vez que a indisponibilidade do interesse público não estabelece propriamente um dever ou proibição da prevalência da consensualidade, cujo conteúdo não implica em renúncia de direito, mas, sim, disposição, que por seu conteúdo ampliativo, contempla a transação, permitindo a extinção da titularidade de um direito mas ao mesmo tempo, a aquisição de outro [3].

Hodiernamente, portanto, a discussão não mais se encontra na possibilidade da instauração da arbitragem, mas, sim, nos limites e na eficácia desse instrumento, e daí exsurge a pergunta: juízo arbitral pode analisar o mérito do ato administrativo?

Recentemente, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça [4] decidiu que, após a instauração da arbitragem, o juízo arbitral passa a ser competente para processar a ação que já tenha sido iniciada no Poder Judiciário, cabendo a ele reanalisar todas as medidas eventualmente concedidas em sede de decisão interlocutória ou sentença [5].

Trata-se de importante precedente, na medida em que abre discussão para que a arbitragem no âmbito da Administração Pública adentre até mesmo o mérito dos atos administrativos decorrentes do exercício da competência discricionária, quando, entre outras hipóteses, versem sobre disputas relacionadas a direitos patrimoniais, tais como equilíbrio da equação econômico-financeira, identificação e cumprimento das obrigações contratuais de ambas as partes, além de temas envolvendo a extinção do contrato.

Tendo em vista o reconhecimento por parte da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça de que o Poder Judiciário pode adentrar na análise do mérito administrativo, por uma questão de coerência deve-se permitir o mesmo espaço à jurisdição arbitral, na medida em que a simples menção à insindicabilidade do mérito administrativo se mostra insuficiente aos complexos desafios no âmbito dos processos decisórios da Administração Pública.

Dessa forma, impõe-se como instrumentos ao exercício desta atividade a aplicação de novas técnicas de controle da discricionariedade que na visão de Marcos Augusto Perez [6] visam a apurar a existência de: 1) uma correta apuração dos fatos no decorrer do processo, permitindo constatar provas substanciais aptas a aferir a existência de bases racionais; 2) uma congruência lógica ou racional entre os objetivos para os quais se volta o ato e o seu conteúdo; 3) precedentes e práticas habituais que não podem destoar do ato praticado; e 4) planejamento da medida, como uma análise prévia de custo-benefício, ou ainda se houve ponderação do impacto sobre outras áreas de atuação da própria Administração.

Todos esses mecanismos de controle da discricionariedade, ao fim e ao cabo, darão maior efetividade à arbitragem previamente acordada pelas partes, assim como concretude à presunção de idoneidade desse importante mecanismo, trazendo maior segurança jurídica ao ambiente administrativo-econômico, o que leva a respondermos afirmativamente ao questionamento do título desta reflexão.

 


[1] A transparência é distinta da publicidade, na medida em que esta última desponta, desde a criação do journel officiel na França no ano de 1811, como condição de produção de efeitos externos dos atos administrativos e presunção absoluta da ciência do destinatário, ao exigir a divulgação dos atos oficiais. Já a transparência resultou de uma evolução do modo de atuar da Administração Pública em compasso com a democracia e o direcionamento para o processo administrativo como elemento central do Direito Administrativo, abarcando não somente o resultado das decisões tomadas, mas também o processo até ela, a fim de se permitir o pleno controle.

[2] OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Especificidades do processo arbitral envolvendo a Administração Pública. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/49/edicao-1/especificidades-do-processo-arbitral-envolvendo-a-administracao-publica.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. A indisponibilidade do interesse público e a disponibilidade dos direitos subjetivos da administração pública. In: Acordos administrativos no Brasil: teoria e prática. Coord. Gustavo Justino de Oliveira. São Paulo: Almedina, 2020. p. 35-62.

[4] De acordo com o artigo 9º, §2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, a 2ª Seção é responsável predominantemente por questões de Direito Privado, mesmo quando o Estado participar do contrato, mas isso não retira a relevância da decisão que pode servir de parâmetro para a 1ª Seção, efetivamente responsável pelas matérias de Direito Público em geral.

[5] Lei nº 9.307/96: "Artigo 22-A — Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência. (…) Artigo 22-B — Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário".

[6] Perez, Marcos Augusto. Controle da discricionariedade administrativa. In: Controle da administração pública. Coord. Marcos Augusto Perez e Rodrigo Pagani de Souza. Belo Horizonte: Fórum, 2017.

Autores

  • Brave

    é procurador autárquico, advogado, pós-graduado em Direito Público, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP e membro Fundador do Instituto de Direito Administrativo Sancionador (Idasan).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!