Opinião

Candidaturas coletivas e a atuação do Ministério Público Eleitoral

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27 de outubro de 2020, 14h01

O eleitor não é parte legítima para propor ações perante a Justiça Eleitoral. Somente candidatos, partidos políticos, coligações e o Ministério Público Eleitoral podem, de ordinário, fazê-lo. Organizações da sociedade civil tampouco são legitimadas. É fácil perceber, nesse rol, que apenas o Ministério Público Eleitoral não tem conexões partidárias. Essa constatação, mais o papel que a instituição deve exercer para assegurar a ordem democrática — artigo 127 da Constituição —, fazem do parquet o porta-voz dos interesses do cidadão comum perante a Justiça Eleitoral. Isso lhe dá uma série de prerrogativas: ele pode propor e é ouvido em todas as ações eleitorais e, até, assumir a titularidade de ações se houver desinteresse da parte autora (o que pode acontecer ao sabor dos arranjos políticos).

Entretanto, há também ônus e exigências ao parquet. Uma delas é o estrito apartidarismo: o órgão ministerial que atua nas eleições não pode ter filiação ou atividades partidárias e deve oferecer atenção isonômica a todas as demandas, independentemente dos personagens políticos envolvidos. Outra é a incumbência de interlocução, com os eleitores, os agentes políticos e a sociedade civil organizada, sempre no sentido de buscar a promoção de eleições com lisura, liberdade e justiça. Interlocução significa conhecer demandas da comunidade, examiná-las diante do quadro constitucional e legislativo eleitoral, ouvir proposições, compreender os esforços que são feitos pelos mais diferentes setores — inclusive partidos políticos — para aprimoramento da democracia brasileira.

Vive-se a chamada "crise de representatividade", na qual as estruturas políticas tradicionais são desafiadas a abrir espaços para novas demandas e possibilidades de atuação política. O grau de confiança social nos partidos políticos como instrumentos de representação autêntica é significativamente baixo, as casas legislativas tantas vezes mostram-se indiferentes às preocupações sociais, o Poder Executivo não raro se perde em escolhas controvertidas sobre o emprego dos recursos públicos. As regras do sistema proporcional de listas abertas, nas quais o êxito eleitoral depende principalmente do conjunto dos votos dados aos partidos e aos seus candidatos, levam a um distanciamento entre eleitos e eleitores. Quem não se surpreende ao ver, depois das campanhas eleitorais, a lista dos vencedores? Quem não se pergunta a razão pela qual mal ouviu as propostas de tantos parlamentares eleitos? Quem não se surpreende com votos dados por políticos que, quando candidatos, pareciam pensar diferente?

É nesse contexto que movimentos políticos e sociais têm defendido a possibilidade de candidaturas coletivas, nas quais as decisões do futuro parlamentar serão submetidas ao escrutínio das pessoas que, com ele, se lançaram na campanha. Candidaturas que, em muitos lugares, foram impugnadas, inclusive pelo Ministério Público Eleitoral.

A candidatura coletiva busca se apresentar como uma resposta ao atual sistema eleitoral permeado de exclusões, que resulta em sub-representação política para grupos da sociedade como mulheres, negros, pessoas com deficiência, população LGBTQIA+. É também um caminho para a eleição de pessoas que não detém cargos públicos ou não gozam dos favores da visibilidade social em razão de atuação midiática, esportiva, artística ou outra.

Essas iniciativas podem ser interpretadas de várias maneiras. Por um lado, é certo que a legislação eleitoral não prevê a possibilidade da candidatura coletiva, o que significa que apenas um nome individual será objeto do registro e apenas um nome será diplomado, se lograr vitória. Esse mesmo nome tomará posse e terá assento na casa legislativa, onde somente ele votará em projetos, poderá discursar na tribuna e ainda, participar de comissões. Se ele renunciar, o mandato não irá para os demais integrantes da chapa coletiva, mas para o primeiro suplente diplomado.

Por outro lado, não há expressa vedação na legislação eleitoral para que o candidato indique, desde a campanha, que exercerá seu mandato em um espaço pessoal de deliberação coletiva, ouvindo os demais integrantes de sua chapa, acatando as orientações que eles formarem. É prática que em nada se distingue do direito de parlamentar de contratar assessores e exercer seu mandato em comum acordo com eles. A iniciativa prima pela transparência, pois as pessoas serão antecipadamente apresentadas aos eleitores. É uma tentativa de manter reforçado o vínculo pessoal de legitimidade entre o eleito e seus eleitores.

Pode-se ou não concordar com essa prática: para muitos, ela oferece uma solução vã; para outros, é algo a ser tentado.

Trata-se da eleição de um candidato, que dividirá o poder de decidir com outros, horizontalmente, por deliberação da maioria. Cabe ao eleitor julgar se quer ter um representante que fará assim ou não. Ao se votar num candidato "individual" também se dá azo à formação de uma equipe de deliberação, talvez com financiadores, apoiadores que desejam algo em troca e outras pessoas que, por exemplo, o partido indicará. Na candidatura coletiva se sabe exatamente quem ingressará no gabinete do parlamentar e quais as ações políticas a serem priorizadas, já defendidas no meio social.

Não vislumbramos risco de "distorção" da representatividade popular. O candidato da chapa coletiva será eleito pelo mesmo sistema proporcional de listas abertas que vale para todos os demais. O voto será, igualmente, considerado para formação do quociente eleitoral e partidário. No sistema atual a maioria da sociedade não se faz representada. Onde estão as pessoas negras, os indígenas e as mulheres?

Pode uma chapa coletiva ser registrada? Não. A legislação restringe o registro ao nome singular de um candidato. Todavia, desde que se apresente esse nome — sobre o qual recairão a exigência das condições de elegibilidade e eventuais inelegibilidades —, não vemos razão para a impugnação. Não cabe à Justiça Eleitoral recusar registro por razões de plataforma de atuação política. É verificação dada ao eleitor, ao escolher em quem vai votar.

Idealmente, a propaganda política das candidaturas coletivas deveria esclarecer os eleitores sobre as limitações legais que enfrentam, mas não há fundamento legal para censurar aquelas que não o fizerem. Quantos candidatos sobreviveriam a uma prova da possibilidade jurídica e material daquilo que prometem?

Para quem se propõe a uma candidatura coletiva ou para quem exerce o mandato coletivo, trata-se de um valor, de um ativo para conquistar o voto dos eleitores, por acreditar que esse modelo de decisão coletiva é mais democrático, melhor do que um mandato no qual o detentor do cargo decide tudo isoladamente. Entendem que é uma forma de reforçar perante o eleitorado que os compromissos políticos-ideológicos serão fiscalizados a partir de dentro da estrutura de seu mandato.

E aqui vem nosso entendimento sobre qual é, nesse contexto, o papel do Ministério Público Eleitoral. Para nós, cabe a ele a interlocução, a oitiva das razões trazidas por pessoas e movimentos sociais que apresentam candidaturas coletivas, a ponderação, a eles, dos limites legais da proposição. O MP Eleitoral pode até colaborar para o esclarecimento dos eleitores em relação a tais limitações (desde que não o faça como interferência no debate eleitoral). Respeitada sempre a autonomia funcional dos promotores e procuradores eleitorais, não vemos óbice ao registro de candidato que se apresenta em candidatura coletiva.

Não havendo restrição legal, não convém retirar do processo eleitoral esse experimento social que busca facilitar a participação de setores da sociedade normalmente excluídos. A ideia de ampliação da representatividade da legislatura deve ser prestigiada na interpretação e aplicação da lei eleitoral, pois garante a pluralidade de visões e melhora a qualidade do debate democrático ao dar voz a sujeitos pouco visíveis dentro do atual modelo

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