Opinião

A espetacularização do Processo Penal e os embates sobre imparcialidade judicial

Autores

  • Romulo de Aguiar Araújo

    é mestre em Direito (UniCesumar) especialista em Direito Penal e Processo Penal (UEL) bacharel em Direito (UniFil) coordenador da pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal e do Grupo de pesquisa em "Direitos Fundamentais e Ciências Criminais" do IDCC Londrina presidente da Comissão de Eventos da Anacrim-PR membro da Comissão da Advocacia Criminal e da Comissão de Defesa de Direitos Humanos da OAB Londrina (PR) professor de graduação e pós-graduação e advogado criminalista.

  • Lucas Mikaly Gal

    é graduando em Direito pela Faculdade Pitágoras de Londrina (PR) e pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC).

27 de outubro de 2020, 7h13

Muito se fala acerca da imparcialidade no processo penal, porém, pouco se esmiúça sobre como a mídia tem relevância na imparcialidade que se espera de um juiz em sua atuação frente à um processo penal democrático, já que a imparcialidade do julgador é a principal garantia de uma jurisdição [1], não havendo o que se falar em jurisdição se ela não for imparcial [2]. Entretanto, inicialmente, antes mesmo de tratarmos acerca das modalidades de imparcialidade, cumpre-nos diferenciá-la de neutralidade, já que o que se espera aqui não é ignorar que o magistrado é um ser humano (aliás, muito pelo contrário) gozando, por essa razão, de convicções pessoais, não sendo ingênuos a ponto de acreditar que este não possui valores próprios, bem como por eles, inclusive, é orientado [3]. Pois bem. São dois os tipos de imparcialidade no processo penal, a imparcialidade subjetiva e a objetiva.

Entende-se por imparcialidade subjetiva as hipóteses presentes no rol taxativo dos artigos 252 ao 254 do Código de Processo Penal. Trata-se, pois, de situações em que o julgador se verá contaminado, desde logo, pela pessoa do ou de um dos réus no Processo Penal. Com isso, o julgador será considerado suspeito, obrigando-se a ser substituído por outro a fim de resguardar a imparcialidade no julgamento da ação.

Já a imparcialidade objetiva "não deriva da relação do juiz com as partes, mas muito pelo contrário, deriva da relação do juiz com o objeto do processo" [4], ou seja, ocorrerá quando o julgador estiver contaminado por pré-julgamentos do objeto debatido na ação penal, motivo pelo qual terá convicção sobre qual será a decisão a se tomar em seu fim, independentemente das provas produzidas nos autos.

A doutrina especializada, a exemplo de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa, assim discorre acerca do tema:

"Não há neutralidade porque se trata de um juiz no mundo. Mas deve haver imparcialidade, um afastamento estrutural, um estranhamento em relação ao caso penal em julgamento, aquilo que os italianos chamam de terzietà (alheamento, ser um terceiro desinteressado). A imparcialidade é um princípio supremo do processo, como ensina Wernet Goldschmdit, fundante da própria estrutura dialética (actum trium personarum — Búlgaro). A garantia da jurisdição é ilusória e meramente formal quanto não se tem um juiz imparcial. Mais honesto seria reconhecer que nesse caso não se tem a garantia da jurisdição, pois juiz contaminado é juiz parcial, logo, um não juiz" [5].

Acerca dos malefícios provocados ao processo penal quando o magistrado se encontra munido de pré-juízos sobre o investigado ou a pessoa do réu, Gustavo Henrique Badaró ensina que quando o magistrado "assume um juízo positivo sobre a participação do investigado nos fatos criminosos, estará produzindo em seu espírito determinados pré-juízos sobre a culpabilidade que lhe impedirão de decidir, posteriormente, com total isenção e imparcialidade" [6]. Isto é, com base nesses pré-juízos, pode-se concluir que, independentemente da prova produzida nos autos, o resultado do processo já está pré-determinado na psique do magistrado.

Por falar em psique, entendemos que tratar de imparcialidade sem trazer à baila estudos realizados pela Psicologia é, com o devido respeito a quem o faz, ineficaz, haja vista que juízes são seres humanos, e não robôs programados para julgar, motivo pelo qual é necessário que haja um estudo interdisciplinar entre o Direito e a Psicologia para tratar acerca do assunto. Com isso é que se faz necessário discorrer acerca da teoria da dissonância cognitiva que, desenvolvida por Leon Festinger [7], através de estudos realizados em face da Psicologia Social, ensina que todo ser humano tem uma tendência natural por equilíbrio, em suas crenças, convicções, atitudes e etc. e, quando ele se vir em desequilíbrio dessas, encontrar-se-á enfrentando uma dissonância cognitiva.

Explica essa teoria que se um ser humano acredita que fumar é bom, ele estará convicto dessa informação. Contudo, se ele recebe uma nova informação no sentido que fumar causa malefícios à saúde, estará, assim, enfrentando uma dissonância em seu conhecimento (cognição), pois a informação que recebera é conflitante com a sua informação/convicção inicial.

Dessa forma, esse indivíduo, ainda que involuntariamente, poderá tomar quatro atitudes, a saber: a) mudança de elementos cognitivos dissonantes, isto é, aceitará a nova informação, entendendo, de fato, que fumar é algo prejudicial à saúde; ou b) desvalorização de elementos cognitivos dissonantes, ou seja, dará pouca credibilidade a nova informação recebida; ou c) adição de novos elementos cognitivos consonantes com a cognição preexistente, que nada mais é a atitude do indivíduo de buscar por informações que sejam consonantes à sua ideia inicial, fortalecendo que fumar é sim algo bom, como acredita; e/ou d) evitação ativa do aumento desses elementos dissonantes, momento em que ele repudiará veementemente a nova informação recebida, só aceitando informações que sejam compatíveis com sua ideia inicial, e não conflitantes, como a que recebera.

Superados tais conceitos, necessário que sejam aplicados no Processo Penal, em consonância com a influência negativa que a mídia lhe causa. É bem verdade que a liberdade de imprensa é um direito constitucional, motivo pelo qual não deve ser rechaçado, pois, assim, agiríamos em desfavor do próprio Estado democrático de Direito, o qual defendemos. Todavia, defendemos também que à mídia seja estipulado um limite em sua atuação, principalmente no que tange às questões criminais, pois ela tem uma grande influência nos julgados pelo país, podendo levar o próprio Judiciário a erro, com fulcro nos ensinamentos já trabalhados pela teoria da dissonância cognitiva.

Ora, pois, veja-se a título de exemplo o caso popularmente conhecido como "Escola Base", em que donos de uma escola localizada na cidade de São Paulo foram rechaçados pela imprensa, inclusive presos, ainda na fase de investigação, mesmo que a posteriori o próprio delegado de polícia responsável pela investigação tenha decidido por arquivá-la entendendo que não havia indícios de autoria que levassem aos donos da referida escola. Há de convirmos que, independentemente do arquivamento do inquérito, os donos da Escola Base já haviam sido condenados, pela imprensa e pela sociedade em geral, ante a atuação fervorosa e sensacionalista da própria mídia, concluindo-se que ainda que a investigação tivesse levado a uma ação penal, muito provavelmente o magistrado iniciaria sua atuação munido de pré-juízos, como os que já tratamos.

Outro claro exemplo, embora, infelizmente, não raro advindo deste programa já que "a falta de problematização e o endosso à brutalidade no tratamento do crime ainda encontram respaldo entre os próprios apresentadores dessas atrações" [8], foi da edição do "Cidade Alerta" (SP) do último dia 13/7, em que o apresentador expôs um indivíduo suspeito da prática de um crime de forma irresponsável, ainda que tenha o feito com seu rosto borrado. Tal prática fez com que populares reconhecessem o indivíduo e se deslocassem à sua residência, momento em que, segundo entrevista concedida pelo seu próprio filho, o chamaram e o levaram para local desconhecido, assassinando-o logo após [9].

Tal influência da mídia é tão clara que nos Estados Unidos a emissora Paramount Network tirou de sua programação o programa "Cops" [10] entendendo que, como aquele país já está traumatizado pelos eternos e recentes casos de violência policial, tal programa policialesco não teria mais espaço para tanto, principalmente após o movimento #BlackLivesMatter.

O que se enxerga em ambos os exemplos é sobre como a mídia cria pré-julgamentos na sociedade sem que saiba, de fato, se um indivíduo é culpado ou não, pois somente através de um processo penal é possível obter tal conclusão.

Infelizmente, é costumeiro que esse "nicho jornalístico", que separa a sociedade entre o bem e o mal, publique matérias ou reportagens ao vivo com um cunho totalmente sensacionalista, sempre em prol do chamado "mercado da mídia", sendo "dominada por grandes conglomerados empresariais que visam à obtenção de lucro a qualquer custo, ainda que este seja a dignidade do ser humano" [11], trazendo o indivíduo que ora encontra-se sob os holofotes desses programas como culpado, independentemente do deslinde da investigação policial e das provas produzidas em uma eventual ação penal.

Tal atitude midiática provoca nos telespectadores um "senso de justiça" equivocado, já que trazem a imagem do indivíduo sob os holofotes como demônio, já que a "coletividade não questiona, não indaga, apenas consente" [12]. O que se vê é que a mídia cria uma criminalidade a partir da ignorância da sociedade, criando culpados sem a eles reservar o contraditório e ampla defesa de uma instrução criminal [13].

Ante o exposto, é que se indaga: teria o magistrado uma capacidade superior aos demais telespectadores no sentido de ignorar totalmente as reportagens midiáticas, as quais trazem desde sempre um indivíduo como culpado? Não teria ele, em seu íntimo, também uma convicção, ainda que preestabelecida, sobre a culpa do suposto indivíduo?

Ora, considerando as conclusões chegadas através da teoria da dissonância cognitiva, vê-se que a primeira informação que o magistrado terá sobre o processo será aquela que a mídia veicular. Mídia esta que, como vimos, é totalmente sensacionalista e parcial, vendendo a imagem do indivíduo como bem entende ser conveniente.

Isto é, o magistrado terá a pré-convicção de que o indivíduo é culpado e, quando este for atuar no processo penal como um terceiro imparcial — assim, ao menos, é o que se espera — involuntariamente, quando receber informações conflitantes com a sua convicção inicial — ou seja, de que o indivíduo é culpado, agirá de modo a repudiar as provas produzidas nos autos capazes de provar a inocência daquele indivíduo que esteve sob o holofote da mídia. Pior, poderá agir de modo a buscar elementos que sejam consonantes (harmoniosos) com sua informação inicial, o que afronta em muito o Estado democrático de Direito e o processo penal acusatório [14], pois um juiz deve ser alheio às partes, não podendo produzir provas.

Também, inconscientemente, poderá tratar as provas produzidas pela defesa do indivíduo com demérito, justamente por se encontrar em uma dissonância cognitiva, desvalorizando as informações que receber que, porventura, forem conflitantes com sua informação inicial, isto é, aquela adquirida através da mídia, que o réu é culpado e merece uma punição a todo custo, já que dela "não raramente surgem anseios punitivos" [15].

Por todo o exposto até aqui, é que se propõe, ainda que brevemente, uma maior responsabilidade da imprensa em suas reportagens, porquanto ter grande influência nas questões criminais do país. Longe de qualquer pretensão, entretanto, de calar a imprensa, pois, como já dito, a liberdade de imprensa é um direito fundamental que deve ser mantido, respeitado e defendido. Contudo, de igual forma que a liberdade de imprensa é um direito, as garantias constitucionais que um investigado/réu tem também são direitos, inclusive o da presunção de inocência, direito este lhe garantido constitucionalmente.

Por isso, argumenta-se que a liberdade de imprensa não pode cessar do réu direitos constitucionais, tais como os de a) ser considerado inocente até o transito em julgado da sentença penal condenatória; e b) de ter um julgamento minimamente justo, com um juiz não contaminado por qualquer elemento externo ao caderno processual, sendo este último lhe tirado em razão da grande influência tida pela mídia com relação à população e também ao magistrado, por ser humano que ele é, contaminando suas atitudes.

 


[1] LOPES JR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 7 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 73.

[2] ZAFFARONI, Eugênio Raul. Poder judiciário: Crises, acertos e desacertos. Tradução: Juarez Tavares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 86.

[3] PINHO, Ana Claudia Bastos de; ALBUQUERQUE, Fernando da Silva. Precisamos falar sobre garantismo: Limites e resistências ao poder de punir. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 98.

[4] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 17ª Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 73.

[5] LOPES JR, Aury; ROSA, Alexandre Morais da. Quando o juiz já sabia: A importância da originalidade cognitiva no processo penal. 2016, disponível: <https://www.conjur.com.br/2016-abr-29/limite-penal-quando-juiz-sabia-importancia-originalidade-cognitiva-processo-penal> Acesso em 11 out. 2020.

[6] BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito a um julgamento por juiz imparcial: como assegurar a imparcialidade objetiva do juiz nos sistemas em que não há a função do juiz de garantias, 2018. Disponível: <http://badaroadvogados.com.br/ano-2011-direito-ao-julgamento-por-juiz-imparcial-como-assegurar-a-imparcialidade-objetiva-no-juiz-nos-sistemas-em-que-nao-ha-a-funcao-do-juiz-de-garantias.html> Acesso em 11 out. 2020.

[7] FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Trad. Eduardo Almeida. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1975

[8] SANCHES, Leonardo. Entenda como nova onda de violência manchou de sangue a imagem da polícia na TV. Folha de S.Paulo. São Paulo, 16 de ago. 2020. Disponível: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/08/entenda-como-nova-onda-de-violencia-manchou-de-sangue-a-imagem-da-policia-na-tv.shtml> Acesso em 16 out. 2020.

[10] SANCHES, Op. cit.

[11] VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo penal e mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 44.

[12] GOMES, Marcus Alan de Melo. Mídia e sistema penal: As distorções da criminalização nos meios de comunicação. 1 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 44.

[13] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo: e outros ensaios. 2 ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 12-13.

[14] "Artigo 3º-A — O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação". BRASIL. Pacote Anticrime. Diário Oficial [da] União, Brasília, 24 dez. 2019. Disponível: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm>. Acesso em: 16 out. 2020.

[15] MENDES, Caio Cesar Tamioto. A restauração da infâmia. 1 ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p. 117.

Autores

  • Brave

    é advogado criminalista, professor de Direito Penal da Unicesumar Londrina (PR) e da Faculdades Integradas do Vale do Ivaí, presidente da Comissão de Eventos da Anacrim Paraná, Mestre em Direito pela Unicesumar e coordenador do curso de pós-graduação em Direito Penal e Processual Penal e do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais e as Ciências Criminais no Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC).

  • Brave

    é graduando em Direito pela Faculdade Pitágoras de Londrina (PR) e pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC).

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