Falsas Memórias

Advogada do Innocence Project comemora decisão do STJ

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27 de outubro de 2020, 20h23

O reconhecimento do suspeito de um crime por mera exibição de fotografias há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo. Esse foi o entendimento da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que concedeu a ordem de Habeas Corpus para absolver um homem condenado pelo roubo a uma churrascaria em Tubarão (SC). A condenação se deu exclusivamente com base no reconhecimento por meio de foto feito pelas vítimas.

Alice Vergueiro/IBCCRIM
A advogada Dora Cavalcanti, do Innocence
Alice Vergueiro/IBCCRIM

O relator do caso, ministro Rogerio Schietti, admitiu no último dia 22 a organização Innocence Project Brasil como amicus curiae (amigo da corte), representada pela advogada Dora Cavalcanti.

A ONG defende judicialmente pessoas condenadas injustamente e estuda formas de melhorar o sistema de justiça criminal.

Baseada em estudos mundiais e estatísticas obtidas ao longo dos últimos anos, a advogada argumentou sobre a fragilidade da memória e o risco de reconhecimentos equivocados resultarem na condenação de pessoas inocentes.

De acordo com ela, os avanços científicos das últimas décadas nos obrigam a fazer uma releitura dos dispositivos da lei federal. "O reconhecimento feito à revelia das determinações do artigo 226 do Código de Processo Penal não deve, à míngua de outras provas, servir para lastrear uma sentença condenatória", argumentou a advogada.

Ainda de acordo com Dora, a premissa de que a palavra da vítima deve prevalecer — pois, se não conhecer seu agressor, não teria ela motivos para mentir — não está em linha com as pesquisas no campo da neurociência.

"O grande aprendizado, trazido pela ciência, é que uma falsa memória não é uma mentira. A testemunha, enganada por sua memória, realmente acredita que está reconhecendo o culpado. Mas ela pode nos levar ao erro", diz.

"Por isso, é muito importante que avancemos para uma interpretação em harmonia sobre as descobertas sobre a memória, estabelecendo que um procedimento que viola o artigo 226 não deve ser considerado legítimo", afirma.

A Defensoria Pública também chamou a atenção para a diferença de altura do preso, com 1,95 m, para o verdadeiro autor do crime, que, de acordo com testemunhas, teria cerca de 1,70m. 

No ano passado, o Innocence Project Brasil conseguiu inocentar Antonio Claudio Barbosa também em razão de uma diferença de 25 cm na altura entre o condenado e o agressor que aparecia em imagens gravadas do crime. Por causa exclusivamente de um reconhecimento equivocado, ele passou mais de cinco anos condenado por um crime que não cometeu.

O ministro Rogerio Schietti ressaltou a notoriedade da "falibilidade da memória humana", por vezes motivada inconscientemente por predisposições sociais e culturais. "Nós estamos aqui diante de uma oportunidade de extrair da ciência uma conclusão definitiva para a jurisprudência do tema", disse o ministro. "Quantas pessoas estão presas com base exclusivamente nessa prova? Talvez seja a prova mais vergonhosamente admitida na nossa Jurisprudência."

Peritos Criminais
A Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF) também saudou a decisão do colegiado por afastar interpretações equivocadas sobre a legislação penal e valorizar o Estado de Direito como condutores dos processos criminais.

"É válido sempre salientar que as provas circunstanciais, como reconhecimento visual e depoimentos de delatores e de testemunhas, são instrumentos válidos, mas que devem ser usados junto com outros elementos.  A prova material, por outro lado, produzida pela perícia oficial, com base na ciência, isenta e equidistante das partes, é objetiva e desprovida dos elementos de subjetividade das provas circunstanciais. E, por isso, é priorizada pelo Código de Processo Penal como elemento probatório cuja ausência pode, inclusive, implicar em nulidades", afirmou Marcos Camargo, presidente da APCF.

HC 598.886

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