Opinião

Terceirização, isonomia salarial e o STF desconstruindo o pensamento alheio

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

26 de outubro de 2020, 17h17

No início dos anos 80, eu era estagiária de Direito e li uma petição da parte contrária. Fui ler na íntegra um acórdão que o advogado mencionava. Na época, as coisas eram mais difíceis. Não tinha um computador para dar um clique e ler o julgado. Fui à biblioteca, tirei xerox e comecei a me dedicar à leitura. Qual não foi o meu choque ao constatar que o advogado tinha enganado o juiz ao indicar o trecho de um acórdão que concluía de forma oposta ao que ele dizia. Fiquei verdadeiramente inconformada com a falta de ética, mais ainda por vir de uma pessoa mais experiente, com número da OAB, que indicava anos e anos de advocacia.

Spacca
Passaram-se mais de duas décadas e fato semelhante se repetiu, não em um processo verdadeiro, mas num júri simulado/aula, cujo tema era a justiciabilidade dos direitos humanos, e tinha como mote o direito à educação. Às tantas, o grupo adverso menciona o paradigmático acórdão do STF, de lavra do ministro Celso de Mello, referente ao RE 436.996, que eu conhecia muito bem, e que determinou que o município deveria garantir acesso à creche e ao ensino fundamental. Mas o aluno deu sentido inverso ao que constava do acórdão. Confesso que o sangue me subiu à cabeça. Inaceitável distorcer o pensamento de um magistrado! Não tenho a verve de advogada de júri, mas a indignação fez com que eu fizesse a defesa mais contundente que poderia fazer!

Pois bem, a história se repete, agora de forma mais gravosa, porque é a vez de um ministro do STF desvirtuar o pensamento de um professor em um julgamento!

O Supremo Tribunal Federal julgou a equiparação de direitos trabalhistas entre terceirizados e empregados de empresa pública tomadora de serviços, com repercussão geral, no processo RE 635.546, nos seguintes termos:

"Decisão: O tribunal, por maioria, apreciando o tema 383 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, vencidos os ministros Marco Aurélio (relator), Edson Fachin e Ricardo Lewandowski, que negavam provimento ao recurso. A ministra Rosa Weber acompanhou o relator com ressalvas quanto à tese. Os ministros Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Luiz Fux (presidente) davam provimento ao recurso com fixação de tese. Os ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar Mendes também davam provimento ao recurso, mas com tese diversa. Nesse sentido, o julgamento foi suspenso para deliberação da tese de repercussão geral em assentada posterior. Não participou deste julgamento, por motivo de licença médica, o ministro Celso de Mello. Plenário, Sessão Virtual de 11/9/2020 a 21/9/2020".

A questão fundamental era saber se, à luz da Constituição Federal, seria legítimo utilizar a terceirização como ferramenta para a precarização do trabalho e para a redução dos salários. Noutras palavras, a terceirização é técnica da gestão empresarial, com focalização e especialização, ou mero mecanismo de incremento da mais-valia absoluta?

O julgamento, que foi suspenso para deliberação da tese, choca por dois motivos.

Primeiro, por verificar que a Suprema Corte negou o direito à isonomia salarial assegurado na normativa internacional, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 23) até os artigos 5º e 7º, XXXII, da Constituição brasileira, passando por diversos tratados e convenções internacionais.

É o típico julgamento que desconstitucionaliza os direitos fundamentais, na medida em que retira o conteúdo material da Constituição Cidadã.

Como se isso não bastasse, constato que o voto-minuta do ministro Alexandre de Moraes desvirtua o pensamento alheio e traz saudades das referências do ministro Celso de Mello, com seus negritos e sublinhados, sempre tão precisos, material e formalmente, com perfeita indicação da fonte.

Consta do voto que foi publicada como minuta a transcrição de trecho de trabalho científico do juiz Reginaldo Melhado, invocado pelo ministro para sustentar que "terceirizada pela empresa determinada atividade laboral, não pode haver direito à equiparação entre trabalhadores das empresas tomadora e prestadora de serviços, pois cada uma é, em si mesma, um empregador distinto" (Reginaldo Melhado, "Globalização, Terceirização e Princípio de Isonomia Salarial", RDT 95/10, Jul/1996).

Surpreendi-me por conhecer algumas das reflexões do autor do trecho transcrito, o que se mostrava incompatível com o que sublinhava o ministro Alexandre de Moraes.

Reli o voto como quem não crê no que leu e fui à busca do artigo citado.

E, como imaginei que fosse, a tese sustentada pelo professor Melhado no artigo parcialmente transcrito no voto é exatamente oposta à acolhida pelo ministro, que recortou o trecho em que o autor explicava qual era a posição então adotada na doutrina e na jurisprudência justamente para, em seguida, criticá-la.

O ministro Alexandre de Moraes usou esse recorte e atribuiu ser aquela a opinião do autor.

Mas era justamente o contrário!

Isso é grave!

O artigo do professor Reginaldo Melhado, de 1996, é uma das primeiras publicações da tese da isonomia salarial quando os empregados da empresa terceirizada e os da tomadora de serviços realizam igual teletrabalho, mesmo se a terceirização é considerada lícita, na forma da Súmula 331 do TST (que ele critica).

No artigo, com análise socioeconômica e de Direito Comparado da terceirização, Melhado constrói sua argumentação baseado em analogia e simetria entre os empregados terceirizados e os temporários da Lei 6.019/74, que assegura a estes "remuneração equivalente à percebida pelos empregados da mesma categoria da empresa tomadora ou cliente" (artigo 12, alínea "a"). Também funda a argumentação no artigo 7º, XXXII, que proíbe a "distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos". Acrescenta em sua argumentação referências à teoria do abuso de direito, albergada pelo Código Civil, sustentando que a terceirização não poderia ser empregada para subverter os fins sociais da propriedade privada e da empresa, configurando-se ilícita quando seu objetivo é a restrição aos salários pela via da intermediação da mão de obra.

Em seu artigo, portanto, o juiz Reginaldo Melhado sustenta de maneira consistente e, naquele momento, também de modo original e inovador exatamente o direito à isonomia negado agora aos trabalhadores terceirizados pelo ministro Alexandre de Moraes e por nossa Suprema Corte.

O lamentável episódio revela não apenas como o Supremo Tribunal Federal vem negando vigência aos direitos constitucionais dos trabalhadores, em favor do capital, como também a desconsideração da longa construção teórica e jurisprudencial sobre os direitos fundamentais e, não raro, à própria literalidade da norma constitucional,

Foi assim na decisão recente referente ao artigo 316, parágrafo único, do CPP; na aplicação deturpada da teoria do domínio do fato; na coarctação do direito de greve dos servidores públicos; na derrubada da atividade-fim como limite à terceirização; na redução do prazo prescricional do FTGS; na sistemática limitação da competência da Justiça do Trabalho; no legislado sobre o negociado; no derruimento da proteção à relação de trabalho e num longo et cetera.

Espero que o ministro Alexandre de Moraes retire de seu voto a referência ao pensamento de Reginaldo Melhado ou a use de forma correta e justa, para que não se perpetue uma fake news no processo.

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