Direito Civil Atual

Princípio do prestígio aos familiares privilegiados e o dano moral reflexo

Autor

  • Carlos E. Elias de Oliveira

    é advogado parecerista professor de Direito Civil Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília (UnB) e em outras instituições consultor legislativo do Senado Federal em Direito Civil ex-advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.

26 de outubro de 2020, 10h00

1) Introdução
Começamos por saudar este notável espaço de difusão do Direito Civil: esta riquíssima coluna, coordenada pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, sob a batuta do livre-docente Otávio Luiz Rodriguez Junior.

ConJur
Neste artigo, tratamos do princípio do prestígio aos familiares privilegiados e, com base nele, apontamos quem pode reivindicar indenização no caso de dano moral reflexo ou por ricochete.

Identificar princípios ou subprincípios que guiam o legislador é útil não apenas para a compreensão do ordenamento, mas também para orientar a jurisprudência, a doutrina e o próprio legislador a preservarem uma coerência lógica ao darem soluções a situações novas.

2) Princípio do prestígio aos familiares privilegiados (cônjuge, descendente e ascendente)
Há inegável privilégio dado pelo ordenamento jurídico ao cônjuge, ao descendente e ao ascendente em relação aos demais familiares. Há uma presunção de que aqueles familiares privilegiados são os mais próximos e que, presumidamente, não mediriam esforços para o bem-estar da pessoa. O apreço afetivo de um cônjuge, de um pai ou de um filho é, em regra, muito maior do que o dos demais parentes. É evidente que há exceções, mas o ordenamento se ampara no padrão do homem médio ("the man on the Clapham bus" [1]).

A consequência desse privilégio é que o ordenamento costuma separar esses familiares privilegiados dos demais em várias situações, a exemplo das seguintes posições jurídicas outorgadas àqueles:

1) A condição de herdeiro necessário — que dá prerrogativas sucessórias, como o direito à legítima — abrange apenas os familiares privilegiados, conforme artigos 1.789 e 1.845, CC;

2) Os familiares privilegiados são dispensados de dar garantia na imissão na posse de bens do ausente e de reter metade dos frutos desses bens, conforme artigos 30 e 33, CC;

3) Os familiares privilegiados possuem legitimidade para a proteção dos direitos da personalidade do falecido nas hipóteses do artigo 20 do CC, conforme o seu parágrafo único;

4) A revogação da doação por ingratidão pode decorrer de alguma das ofensas previstas no artigo 557 do CC a algum dos familiares privilegiados do doador, conforme artigo 558, CC;

5) Não há sub-rogação para a seguradora no seguro de dano se o causador do sinistro tiver sido algum dos familiares privilegiados, salvo dolo, consoante artigo 786, § 1º, CC;

6) Familiares privilegiados são dispensados de declarar interesse na vida do segurado, salvo prova em contrário, à luz do artigo 790, parágrafo único, CC;

7) Os familiares privilegiados devem ser prioritariamente os curadores, nos termos do artigo 25 do CC e do artigo 1.731, CC;

8) No caso de herança jacente, os familiares privilegiados podem reivindicar a herança até cinco anos após a declaração de vacância, ao contrário do que sucede com os parentes colaterais, tudo na dicção do artigo 1.822 do CC.

O companheiro, embora seja mencionado em poucas situações das hipóteses acima, deve também ser considerado como abrangido juntamente com o cônjuge, salvo situações em que a informalidade da união estável e a proteção do terceiro de boa-fé justifique a distinção. O motivo é que, no sistema brasileiro, a união estável deve ser equiparada, no que couber, ao casamento. Por exemplo, a anulabilidade do negócio jurídico por falta de consentimento do companheiro não pode acontecer se a união estável era desconhecida direta ou indiretamente do terceiro contratante, conforme leitura extensiva do artigo 1.647 do CC, que só menciona o cônjuge. A própria condição de herdeiro necessário para o companheiro é objeto de controvérsias.

Entendemos que o privilégio dado pelo ordenamento aos familiares privilegiados é um princípio, porque é uma linha normativa adotada pelo legislador que deve orientar as atividades de interpretação e de integração normativas.

Como todo princípio, é claro que ele pode ser excepcionado.

De um lado, entre os familiares não privilegiados (os parentes colaterais), não se pode negar que os irmãos recebem, em algumas situações, um tratamento especial ao lado dos familiares privilegiados, como: 1) na presunção de serem interpostas pessoas na disposição testamentária que simuladamente beneficia pessoa não legitimada a suceder, conforme artigo 1.802, parágrafo único, CC; 2) na falta de vocação sucessória por ser irmão de quem redigiu, a rogo o testamento, de acordo com o artigo 1.801, I, CC; 3) na delimitação dos obrigados à prestação de alimentos, à luz do artigo 1.697, CC; 4) na formação de vínculo de parentesco por afinidade, consoante artigo 1.595, CC; e 5) na legitimidade de propor a ação de divórcio em nome de incapacidade da pessoa, conforme parágrafo único do artigo 1.582, CC.

De outro lado, os colaterais de terceiro grau (tios e sobrinhos) são reconhecidos como detentores de uma proximidade afetiva e biológica mais suave, de maneira que, em algumas hipóteses, o legislador estabelece restrições à sua atuação em determinadas situações jurídicas que exigem neutralidade ou em que haja risco genéticos à prole. É o caso, por exemplo, da inaptidão desses parentes colaterais de terceiro grau em: 1) ser testemunhas (artigo 228, III, CC); 2) casar se não tiver havido exame médico atestando falta de riscos genéticos à prole (artigo 1.521, IV, do CC e artigos 1º ao 3º do Decreto-Lei nº 3.200/1941 [2]).

Além disso, por causa dessa proximidade suave, o legislador, por vezes, ainda que com contenção, deposita certa confiança nos colaterais de terceiro grau ao, por exemplo, incluí-los como os últimos a serem nomeados tutores legítimos (artigo 1.731, II, CC).

Os colaterais de quarto grau (primos e sobrinhos-netos) são os parentes mais distantes afetiva e biologicamente, de maneira que, em relação a eles, o legislador praticamente os trata como um desconhecido. Apesar de reconhecê-los no último lugar da ordem de vocação hereditária (artigo 1.839, CC) e de lhes conferir legitimidade para proteção de direitos da personalidade do falecido [3] (artigo 12, parágrafo único, CC), o legislador demonstra indiferença em relação a esses colaterais de quarto grau. Eles sequer são considerados como inaptos a serem testemunhas, pois o legislador não enxerga neles qualquer presunção de suspeição (artigo 228, III, CC). Não lhes proíbe de casar nem lhes impõe o dever de ser tutor ou curador.

Por fim, é preciso realçar que, a depender do caso concreto, é evidente que o juiz pode flexibilizar essa linha de presunções de proximidade afetiva adotado pelo legislador. Há hipóteses de primos mais próximos mais afetivamente do que irmãos ou de que pais. Em casos como esse, o legislador, a doutrina ou o profissional do Direito poderão eventualmente estender a esses parentes alguns dos privilégios ou das restrições relativos aos familiares privilegiados.

3) Legitimados a pleitear dano moral reflexo e o problema do valor
O direito à indenização é da vítima, que pode ser direta ou indireta.

Vítima direta é quem sofreu diretamente a conduta lesiva e sofreu o dano.

Já vítima indireta é aquela que, embora não tenha sido diretamente atingida pela conduta, sofre, por reflexo (por ricochete), um dano causado à vítima direta. O dano reflexo, indireto ou por ricochete é o dano causado a uma vítima indireta.

Todas as espécies de danos indenizáveis (material, moral, estético etc.) podem ser danos reflexos, a depender do caso concreto.

Os casos mais comuns são os de dano moral reflexo sofridos por familiares em razão da morte da vítima direta. Exemplo: o filho sofre dano moral em razão do assassinato do seu pai.

Outro caso comum é o dano material reflexo (na modalidade de lucros cessantes) sofrido pelo dependente econômico de alguém que faleceu por conduta culposa de outro. Exemplo: filho menor pode pedir pensão alimentícia indenizativa para suprir a perda do sustento financeiro que o pai assassinado lhe provia de forma direta ou indireta (como no caso da morte de um genitor que, com base no Direito de Família, pagava alimentos mensais ao filho que havia ficado com a guarda do outro genitor).

Um grande problema que vem sendo enfrentado pela jurisprudência ao lidar com o dano moral reflexo é a delimitação dos legitimados a pleitear indenização. Não nos ocupamos aqui tanto do dano material reflexo, porque, neste, há um rastro patrimonial que, por si só, já restringe as vítimas indiretas. A imprecisão concentra-se no dano moral reflexo, pois inúmeras pessoas podem alegar que indiretamente teriam sofrido lesão moral por terem um vínculo de amizade ou de admiração com a vítima direta.

Para enfrentar essa questão, temos que o princípio do prestígio aos familiares privilegiados é um norte para impedir extravagâncias nessa lista de vítimas indiretas. O STJ tem caminhado nesse sentido.

Explicamos.

A cadeia de vítimas indiretas pode chegar ao infinito. Por exemplo, com a morte de alguém, poderiam reivindicar dano moral reflexo não apenas os parentes mais próximos do falecido (filhos, ascendentes, cônjuge), mas também parentes distantes, amigos e até mesmo conhecidos.

Diante da omissão da lei, o STJ aplica, por analogia, a ordem de vocação hereditária prevista no artigo 1.829 do CC, com flexibilizações a serem identificadas no caso concreto, para limitar essa rede infinita de vítimas indiretas. Essa solução coaduna com o princípio do prestígio aos familiares privilegiados.

Assim, no caso de morte de alguém, poderão pleitear indenização por dano moral reflexo, em primeiro lugar, os herdeiros da primeira classe prevista no inciso I do artigo 1.829 do CC (descendentes e cônjuge) e também os ascendentes e os irmãos.

Em relação ao cônjuge, é irrelevante o regime de bens, pois o foco aí é a reparação de um dano extrapatrimonial.

Quanto aos ascendentes, embora estes não componham a primeira classe da ordem de vocação hereditária, eles, em regra, sofrerão dano moral reflexo pela perda do filho em igual intensidade dos descendentes e do cônjuge, independentemente da idade do filho. Mãe é mãe, pai é pai, diz a sabedoria popular.

É preciso, no entanto, o juiz analisar o caso concreto para identificar quais pessoas realmente teriam sofrido o dano reflexo, de modo que até mesmo um sobrinho poderia reconhecido como titular da indenização por ricochete a depender do caso concreto. Há diferentes arranjos familiares. No STJ, já houve casos em que sobrinhos foram tidos como dignos do receber a indenização (STJ, REsp 239.009/RJ, 4ª Turma, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 04/09/2000).

Igualmente, os irmãos devem presumidamente ser considerados como atingidos por reflexo diante do vínculo afetivo existente com a vítima (STJ, REsp 1734536/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 24/09/2019).

A presunção de vínculo afetivo decorre das máximas da experiência e — é claro — poderiam ser afastadas mediante provas contrárias hábeis a afastar a caracterização de dano moral reflexo. Seria absurdo um irmão comprovadamente distante ou inimigo afetivamente da vítima pleitear indenização por dano moral afetivo.

Ademais, para evitar que o responsável seja exposto a um inferno de severidade [4] com indenizações elevadíssimas diante da multidão de vítimas indiretas, o arbitramento da indenização reflexa deve ser feito em um valor único a ser repartido entre as vítimas indiretas que forem reconhecidas como legítimas a pleitear a indenização.

Essa repartição da indenização pode ser feita a depender do grau de ligação afetiva com a vítima indireta, de modo que não necessariamente as vítimas indiretas receberão valores iguais.

Punir o agente a indenizar ampla e irrestritamente todas as vítimas indiretas seria um ônus muito excessivo e desproporcional, contrariando, por analogia, o parágrafo único do artigo 944 do CC.

Por isso, é razoável o entendimento do STJ em limitar a quantidade de vítimas indiretas indenizáveis com base na ordem de vocação hereditária do artigo 1.829 do CC com flexibilizações dadas pelo caso concreto e em restringir o valor total de indenização a ser repartido entre as vítimas indiretas indenizáveis.

Nesse sentido, incluir não familiares como vítimas indiretas indenizáveis seria, em regra, nocivo, pois iria reduzir a fatia do valor total de indenização que seria outorgado aos familiares próximos da vítima. Foi nesse contexto que o STJ já rejeitou a pretensão de um ex-noivo pedir a indenização por dano moral reflexo em razão da morte da vítima direta, especialmente em razão de os pais já terem obtido essa indenização em uma ação autônoma.

O STJ segue o entendimento acima (STJ, REsp 1734536/RS, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 24/09/2019; REsp 1076160/AM, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 21/06/2012; REsp 1095762/SP, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 11/03/2013; AgRg no Ag 1.413.281/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 19/03/2012).

4) Conclusão
O princípio do prestígio aos familiares privilegiados é uma diretriz do ordenamento jurídico brasileiro e é útil a guiar a doutrina, a jurisprudência e o legislador em oferecer soluções para novas situações, a exemplo do debate acerca da limitação dos legitimados a pleitear indenização por dano moral reflexo.

Conviria que o legislador estabelecesse parâmetros para essa limitação dos legitimados, mas, enquanto isso, o STJ tem suprido bem essa lacuna em consonância com o princípio do prestígio aos familiares privilegiados.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[1] Essa expressão inglesa se reporta ao homem comum, como lembra Ronald Coase (2016, p. 4). Clapham é um bairro muito popular de Londres, de modo que a referência a um homem em um ônibus nesse local reporta-se a uma situação comum.

[2] Enunciado nº 98 das Jornadas de Direito Civil: “O inc. IV do art. 1.521 do novo Código Civil deve ser interpretado à luz do Decreto-lei n. 3.200/41, no que se refere à possibilidade de casamento entre colaterais de 3º grau”.

[3] Recorda-se que, para alguns direitos da personalidade, a legitimidade se restringe aos familiares privilegiados, nos termos do art. 20, parágrafo único, do CC.

[4] Enfer de sévérité, expressão da jurista francesa Geneviève Viney, citada pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (2010, p. 84).

Autores

  • é advogado, professor de Direito Civil e de Direito Notarial e de Registro, consultor legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário e doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Ex-membro da AGU e ex-assessor de ministro STJ.

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