Processo Familiar

As famílias raras e os seus itinerários resilientes

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

25 de outubro de 2020, 11h37

Famílias de pessoas afetadas por doenças raras percorrem itinerários de resiliências. Itinerários que começam pela (i) busca de obtenção do diagnóstico correto e que prosseguem pelos (ii) da compreensão ativa da enfermidade e como trata-la; (iii) do acesso a medicamentos pouco disponíveis ("medicamentos órfãos") ou muito caros; (iv) da rigorosa manutenção terapêutica e, ainda, (v) o da maior mitigação de danos possíveis aos enfermos (1).

São famílias raras porque raras são as enfermidades que afetam os seus familiares. Urge, portanto, para além de a medicina e o direito possam melhor enfrentá-las, que o Estado e a sociedade ofereçam políticas públicas e sociais ao tratamento das doenças raras, estimadas entre seis e oito mil tipos no mundo inteiro. Um suporte vital necessário.

Cerca de 16 milhões de famílias em nosso país são famílias raras, diante da singularidade de casos de doenças crônicas, progressivas, degenerativas ou de elevada letalidade, que afetam seus portadores, reclamando todos eles a garantia dos direitos fundamentais que estão a merecer como destinatários. Embora de baixíssima incidência, atingindo até sessenta e cinco pessoas, para cada cem mil na população, segundo dados da OMS. (Organização Mundial da Saúde); os pacientes raros não podem ficar à margem da proteção constitucional de saúde.

Quando em torno de 75% das doenças raras atingem, predominantemente, as crianças, induvidoso se apresenta que as famílias raras, convivendo com os seus filhos necessitam propiciar-lhes, desde logo na primeira infância, uma melhor qualidade de vida. Em uma busca contínua e incessante de cura (provável ou não), a dignidade das famílias raras tem sido colocada à prova de providencias públicas adequadas.

Antes de mais, assinale-se que crianças e adultos como pessoas raras, assumem status constitucional, com sua devida inclusão no processo ampliativo do Sistema Único de Saúde (SUS), mas não podem ser, imediata ou objetivamente, equipadas às pessoas com deficiência, sob o arrimo da Lei nº 13.146, de 06.07.2015. Isto porque nem todas serão tratadas sob o mesmo âmbito legal ou sob uma mesma visibilidade como se equiparadas fossem, quando, destarte, muitos pacientes raros não são deficientes. Nada obstante, umas e outras, equipotentes, necessitam de atendimentos especiais/prioritários, cuidados diferenciados e proteções qualificadas às suas vulnerabilidades.

Dezenove projetos de lei, desde o primeiro deles, o de nº 3167/2008, tramitam no Congresso, estabelecendo ações de atenção integral às pessoas com doenças raras. Destacadamente, dispondo sobre aplicação mínima de recursos para a pesquisa e o desenvolvimento de diagnósticos, medicamentos e outros produtos para a saúde destinados ao tratamento das doenças.

Um dos mais importantes, o Projeto de Lei do Senado nº 231, de 2012 (nº 6.566, de 2013, na Câmara dos Deputados), alterando a Lei nº 10.332, de 19.12.2001, tornou-se a Lei nº 13.930, de 10.12.2019, garantindo a aplicação no percentual mínimo de 30% dos recursos do Programa de Fomento à Pesquisa em Saúde em atividades relacionadas ao desenvolvimento tecnológico de medicamentos, imunobiológicos, produtos para a saúde e outras modalidades terapêuticas destinados ao tratamento de doenças raras ou negligenciadas, assim definidas em regulamento. O veto total presidencial considerando que o projeto poderia comprometer a exequibilidade do Fundo Setorial da Saúde (CT-Saúde), foi rejeitado. Pode-se, diante da novel Lei, entender existente, doravante, um Fundo Nacional de Pesquisas para Doenças Raras e Negligenciadas (FNPDRN), como fomentou o projeto.

Pois bem. É de se observar que a intervenção estatal nas famílias em situação determinada de configurar famílias raras se apresenta imperativa e impostergável, tendo os seus fundamentos (i) no dever de cuidados básicos para com aqueles que demandam necessidades especiais, em considerando a proteção integral destinada à criança e ao adolescente (CF/1988); (ii) na especial circunstância de o dever de prover proteção à prole dirigido aos pais ser insuficiente, diante de os filhos raros exigirem proteção superior àquela que o poder familiar (autoridade parental) lhes outorga e (iii) no dever de controle e de proteção médica-assistencial que o Estado tem perante a sociedade, assegurando a todos a devida vigilância para providencias  e resultados eficazes à proteção da saúde, como um direito fundamental de todos.

Para atingir os fins a que se propõe, essa intervenção e proteção do Estado para as pessoas raras, dotadas de enfermidades congênitas ou não, dependerá, a nosso sentir, de um Estatuto Jurídico próprio, definidor não somente dos seus níveis de capacidade e/ou vulnerabilidades, de suas autonomias e autogoverno, mas sobretudo, de politicas de inclusão social e de reconhecimento do valor e dignidade humana a que o Estado é chamado a intervir para o tratamento de saúde adequado.

Lado outro, a conceituação das pessoas raras frente a uma nova teoria das incapacidades e a regulação necessária para que elas exercitem, de forma mais ampla e eficaz os seus direitos, no contexto da integração social, tornam-se elementos para fundamentar o Estatuto que se pretende como um marco legal a ser observado pelo Estado.

No caso, como determinadas doenças raras não conduzem à moldura legal de pessoa com deficiência, tenha-se, antes de mais, para esse enquadramento, o que dita o artigo 2º da Lei nº 13.146/2015:

"Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas."

Nesse contexto, a merecer a proteção especial do Estado, reflexão importante invoca, dentre muitas pessoas raras, como as portadoras de fibrose cística e da mucopolissacaridoses, a pessoa com microcefalia; havida, portanto, como pessoa com deficiência.

No trato do tema, José Luiz Gavião de Almeida, Marcelo Rodrigues da Silva e Jordana Maria Mathias dos Reis, assinalam, em seus estudos, que diante das variadas causas da microcefalia, como as decorrentes de infecções de útero, as ligadas à exposição a substancias químicas ou às anomalias genéticas, tem-se que a doença provocada pelo vírus zika apresenta malformações e complicações neurológicas com características mais complexas (2). De logo, aqui se compreende pela responsabilidade do Estado diante do surto do vírus "que já deveria ter sido erradicado de forma permanente", objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5581-DF.

Em situações que tais, a necessidade continuada de cuidados especiais de pessoas com funções neurológicas comprometidas ou debilitadas, tem significação de urgência a reclamar um sistema jurídico aberto de melhor assistência social do Estado, em rede de apoio familiar, mais eficiente e prestativo; tudo a inibir uma violação manifesta dos seus bens jurídicos.

O acesso aos sistemas de saúde e aos medicamentos sob a exata medida das necessidades dos pacientes raros, em suas singularidades, é um dever do Estado (ou de quem o suplementa). De fato, retenha-se esse tema, coadjuvando-se a afirmativa feita por Gabriel Schulman, como um "tema essencial no debate cotidiano de efetivação dos direitos humanos, sendo vital a adoção de uma perspectiva de solidariedade, de inclusão que harmonize alteridade e igualdade substancial". (3)

Nessa linha de pensar, a vedação da discriminação às pessoas raras, extraída do viés constitucional de proteção integral à saúde, irradia-se à própria Lei nº 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde), que nos seus artigos 14 e 20, v.g., assegura-lhes o acesso e a garantia de serviços e produtos, de modo uniforme. Mais: uma eventual omissão ou falhas do Estado no enfrentamento à qualidade de vida (e/ou de sobrevida) de pacientes raros, implica, a rigor, em atos que por seus sentidos deficitários se tornam discriminatórios ante a desvalia ao socorro reclamado.

Fica clara a insuficiência de respostas às demandas de um direito de família e o das crianças colocados sob o impacto dos problemas de saúde; problemas que afetam os núcleos familiares e que neles incrementam as suas devidas repercussões. Tais demandas são aquelas que formam as famílias raras na busca de resolução dos problemas, dentre eles os da obtenção de medicamentos.

Ora. Impõe-se uma Agenda de Investigação, diante do reclamo de todos os direitos concernentes aos pacientes raros integrados nas suas respectivas famílias e como estas deverão lidar para desenvolver os seus itinerários resilientes em torno dos seus estimados entes.

Uma agenda comprometida com o plano assistencial, aperfeiçoando a Lei 8.742/93, de 07 de dezembro — Lei Orgânica de Ajuda Social (Loas) — a instituir maiores benefícios sociais para as mães que precisam deixar o trabalho para cuidar exclusivamente dos filhos doentes. Marcantemente, diante do drama familiar das pessoas raras que mais se agudiza ao tempo em que "70% dos pais abandonam a família quando acontece um nascimento de uma criança com doença rara" (4).

Essa agenda investigativa deverá ser o instrumento de constatações dos problemas a permitir uma dinâmica mais potencializada de intervenção da ação do Estado, do Ministério Público, de todos os meios de informações médico-jurídicas e da própria sociedade organizada.

Na esfera dessa última formulação de parcerias, é dignificante anotar a existência de organizações não governamentais destinadas a promover o acolhimento de mães e de cuidadores de pessoas com doenças raras para dar-lhes o suporte de apoio a administrar as necessidades especificas daqueles. Exemplificam-se as organizações: (i) "Aliança de Mães e Famílias Raras" (Amar), com sede em Recife que, desde 2013, reúne famílias raras para ações de inclusão social e de garantia à visibilidade das pessoas portadores de doenças raras (5); (ii) Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves (Afag), com sede em Campinas, São Paulo, (iii) Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM) e (iv) associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica (Abrela), dentre muitas outras.

De boa nota também assinalar que as principais associações de pacientes raros, relacionadas a cada uma das doenças catalogadas no Portal Muitos Somos Raros, estão ali referidas com seus endereços da Web. (6)

Quando se cogita, dentre as metas da Organização das Nações Unidas (ONU), (i) até 2030, findarem as mortes evitáveis de recém-nascidos e de crianças menores de 5 anos e (II), antes disso, ser reduzida, a mortalidade neonatal para pelo menos 12 por 1.000 nascidos vivos e a mortalidade de crianças menores de 5 anos para pelo menos 25 por 1.000 nascidos vivos, cuide-se pensar, urgentemente, no futuro das famílias raras.

Estas famílias raras em nosso país se acham subdiagnosticadas, quando se aponta que as pessoas com doenças raras no pais, "não passam de 55 na maior parte das patologias, não chegando a 1% na maioria delas", implicando dizer que: (i) perdem-se vidas com pessoas raras não diagnosticadas; (ii) doenças sem diagnósticos certos repercutem em gastos públicos perdidos; (iii) as famílias não logram as curas de seus pacientes; (iv) exames e remédios inúteis apenas acarretam às famílias raras maiores sofrimentos.

Mas não é só:

(i) Diante de doenças ou perturbações que afetam menos de um por dois mil habitantes, denominadas pelo padrão europeu, de doenças raras, tem-se que o mercado farmacêutico não se coloca disponível a desenvolver e comercializar medicamentos para o tratamento delas, de custo elevado posto que destinado a uma parcela reduzida de doentes. Esses medicamentos são chamados "medicamentos órfãos" (7/8), o que exige que incentivos econômicos estimulem as indústrias farmacêuticas a produzi-los, defendidos por governos e por associações de doentes como a Eurordis.

(ii) Noutro giro, considere-se que o período de gestação exige atenções maiores, certo que a subnutrição grave afeta a vida do feto, com danosas consequências; a tanto que os alimentos gravídicos importam como um direito ao desenvolvimento saudável do nascituro e tornam-se também direito deles e não apenas da geratriz.

(iii) A busca por cuidados e tratamento das pessoas raras que as famílias empreendem em seus itinerários resilientes (9) deve ser apoiada pela sociedade que se comprometa humanitariamente com o próximo.

Não sejamos indiferentes diante das diferenças: as famílias raras integram as famílias do direito das famílias e o direito demanda soluções públicas e sociais. Será puro egoísmo não amar os que precisam ser amados.

Referências:
(1) Importante estudo nessa linha de abordagem foi desenvolvido a respeito. Conferir: LUZ, Geisa Dos Santos. SILVA, Maria Regina Santos da. DeMONTIGNY, Francine. Doenças raras: itinerário diagnóstico e terapêutico das famílias de pessoas afetadas. Acta paul. enferm. [online]. 2015, vol.28, n.5, pp.395-400. ISSN 1982-0194. Web: https://acta-ape.org/wp-content/uploads/articles_xml/1982-0194-ape-28-05-0395/1982-0194-ape-28-05-0395.x45416.pdf
(2) ALMEIDA, José Luiz Galvão de. SILVA, Marcelo Rodrigues da. REIS, Jordana Maria Mathias. A (im)possibilidade da responsabilidade civil do profissional de saúde em razão do wrongful birth/wrongful life/wrongful conception frente à microencafalia decorrentes do vírus zica e anencefalia. In: SILVA, Marcelo Rodrigues da. OLIVEIRA FILHO, Roberto Alves (coord.). Temas relevantes sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Reflexos no ordenamento jurídico brasileiro. Salvador: Editora JusPovivm, 2018, 608 p.; pp. 415-451.
(3) SCHULMAN, Gabriel. Impactos do Estatuto da Inclusão da Pessoa com deficiência na saúde: “acessibilidade” aos planos de saúde e autodeterminação sobre tratamentos. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de Menezes (Org.) Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2016, 923 p., pp. 763-794.
(4) Fonte: Instituto Baresi. Web: https://institutobaresi.wordpress.com/
(5) Web: https://transformabrasil.com.br/perfil-ong/amar-alianca-de-maes-e-familias-raras.
(6) Web https://muitossomosraros.com.br/associacoes-de-pacientes/pelo-brasil/
(7) Web: https://www.eurordis.org/sites/default/files/publications/Fact_Sheet_OD.pdf
(8) Web: https://www.eurordis.org/pt-pt/content/o-que-e-um-medicamento-orfao
(9) CAMPOS, Daniel de Souza. MOREIRA, Martha Cristina Nunes Moreira. NASCIMENTO, Marcos Antonio Ferreira do. Navegando em águas raras: notas de uma pesquisa com famílias de crianças e adolescentes vivendo com doenças raras. Web: https://www.scielo.br/pdf/csc/v25n2/1413-8123-csc-25-02-0421.pdf

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    é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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