Embargos Culturais

Roberto Drummond e Hilda Furacão: entre o realismo e a desilusão

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

25 de outubro de 2020, 8h01

"Hilda Furacão", do mineiríssimo Roberto Drummond (1933-2002), é um livro de 1991. Passados quase 30 anos de seu lançamento, e do grande sucesso que alcançou (sustentou uma minissérie global), o benefício do retrospecto e o apego da coluna para com a literatura brasileira sugerem que tratemos desse importante livro. Tem-se um pouco de crônica da vida de Belo Horizonte, no início dos anos 1960. Lê-se sobre o caol (cachaça-couve, arroz, ovo e linguiça) do Café Palhares. Dá água na boca. Passeia-se pelas ruas centrais da cidade, hoje tomada por automóveis. É um livro de algum modo saudosista. Pedro Nava, mineiro também, memorialista, o Proust brasileiro, certamente o celebraria.

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Em "Hilda Furacão" o leitor percebe várias figuras importantes da vida mineira, e que tiveram ampla expressão nacional: Fernando Sabino, Ivo Pitanguy, Paulo Mendes Campos, Benedito Valadares (será o Benedito?), Magalhães Pinto, Drummond de Andrade, Hélio Pelegrino, Fernando Gabeira, Jonas Bloch (pai de Debora Bloch). Drummond fala-nos inclusive de Francisco Campos (o Chico Ciência), registrando a passagem de Rubem Braga (que era do Espírito Santo), para quem, quando Francisco Campos acendia a luz, ocorria um curto-circuito nas instalações democráticas nacionais. Elio Gaspari também cita essa reminiscência em sua obra sobre a era militar.

"Hilda Furacão" permanece como uma crônica substancialmente política. Há uma data emblemática em todo o enredo. Hilda deixou sua casa em 1º de abril de 1959, quando começou sua meteórica carreira no meretrício, deixando os afazeres de meretriz em 1º de abril de 1964. Goulart, Brizola, Magalhães Pinto, Seixas Dória, Arraes e Francisco Julião de algum modo aparecem no livro. "Hilda Furacão" é um dos principais romances políticos com referência aos anos de 1970 e 1980, ao lado de "Quarup" (Antonio Callado), de "Não verá país nenhum" (Loyola Brandão), "O pardal é um pássaro azul" (Heloneida Stuart), "A hora dos ruminantes" (J. J. Veiga), "Em câmara lenta" (Renato Tapajós) e "As surpresas da paixão" (Esdras do Nascimento), entre tantos outros. O tema foi sistematizado no estudo de Alcmeno Bastos ("A história foi assim").

"Hilda Furacão" é também um atrevido e bem sucedido estudo sobre a prostituição. Um libelo em defesa de pessoas massacradas. Lembra-nos, em algum momento, a passagem de Jorge Amado em "Teresa Batista cansada de guerra" quando, no meio de uma greve de prostitutas, o poeta Castro Alves saiu do túmulo e desceu da estátua na praça para destemidamente defende-las. Castro Alves fora a única voz em favor daquelas mulheres. Hilda lembra-nos também um pouquinho a história de Dona Beja, Ana Jacinta de São José, uma influente personalidade, também de muitos lençóis, nascida em Formiga (terra de meu amigo, o cientista Rinaldo Wellerson Pereira) e falecida em Araxá, logo ali, no Triângulo Mineiro e no Alto Paranaíba.

Parte do enredo se passa em região boêmia de Belo Horizonte dos anos 1960. Um movimento liderado por Dona Loló Ventura (patrona do controle da moralidade e dos bons costumes) e por um padre militante do Partido Democrata Cristão pretendia afastar as prostitutas da região. Seriam encaminhadas para uma nova área, a "Cidade das Camélias". Temiam que a capital mineira se tornasse uma "Sodoma e Gomorra". Eram aliados do Clube da Lanterna, a facção política barulhenta da UDN de Carlos Lacerda, de que Rubem Fonseca trata também em "Agosto". Drummond menciona ainda Cintura Fina (um travesti), bem como Maria Tomba Homem (que o leitor tem que ler o livro para entender, eu não consigo explicar aqui).

O texto conta com narrador onisciente, que o leitor percebe ser o próprio Roberto Drummond. Há muito de registro pessoal: o nascimento em Santana dos Ferros, os tios e as tias, a atividade como jornalista, os jornais pelos quais passou. Há quem veja no personagem Santo (o padre) alguma referência a um conhecido religioso ativista: acalmava-se com colheres de geleia de jaboticaba, que a mãe fazia.

Os santos, lembra-nos um crítico, não são acessórios de crenças passadas ou figuras de gesso inexpressivas. Têm vida real. Há também outros personagens, cuja decifração depende de muito conhecimento da vida mineira, ou da trajetória de Roberto Drummond: Aramel (o belo), Gabriela M., a Bela B., o radialista Emecê, o policial Nelson Sarmento, entre tantos outros. Não tenho conhecimento ou competência para decifrá-los. Não sou suficientemente mineiro.

Hilda é explicitada como o "mito sexual de Belo Horizonte". Em algum momento, pode sugerir na memória passiva a figura da "Pantera de Minas", a beldade que caiu em Búzios com os tiros no crime da Praia dos Ossos, de triste memória. Nesse último caso, as atuações de Evandro Lins e Silva e Evaristo Moraes Filho, que duelaram no júri. Há também quem veja muita semelhança com Hilda Maia Valentim. A Hilda supostamente verdadeira era do Recife, mas foi criada em Belo Horizonte. Faleceu em Buenos Aires, em 2014, com 83 anos. Há muita semelhança. Hilda Maia vinha de uma família com recursos. Hilda Maia apaixonou-se e casou-se com o atleta Paulo Valentim, que jogou no Atlético Mineiro e, mais tarde, no Boca Juniors. Em "Hilda Furacão" não há essa referência final: em "Hilda Furacão" a heroína cai de amores por um padre.

Drummond conta-nos a história da "misteriosa garota do maiô dourado". Na ficção é Hilda Gualtiery von Echveger. O pai era alemão e a mãe era italiana. Quando tinha 15 anos, o namorado se suicidou por amor. Os pais lhe davam tudo. Por que largou a família e se prostituiu? É essa a pergunta central que mantém o leitor preso às 298 páginas do livro. Hilda atuava no Maravilhoso Hotel, quarto 304. Seu perfume, o Muguet du Bonheur, que de fato existe, e que foi lançado em 1952; ao que consta, uma balançada mistura de bergamota, lírio-do-vale, flor-de-laranjeira, magnólia, jasmim, almíscar e sândalo. Sente-se a deliciosa olência dessa flagrância nas páginas de Drummond.

Hilda contava filas de interessados, apaixonados, obcecados. O que ela fazia? Provocava o "mal de Hilda", uma forma fulminante de paixão. Milionários tentavam convencê-la ao casamento. Queriam a Vênus no altar. Havia a noite dedicada aos coronéis. Hilda pontificava. Enriqueceu. Possuía uma fazenda no Mato Grosso, 22 lotes na Pampulha, seis apartamentos alugados em Belo Horizonte, um apartamento na Avenida Atlântida (no Rio de Janeiro), no Posto 5, além de seis táxis na praça, uma casa, não se sabia em que rua, mas que ficava na Cidade Jardim. Fabuliza Drummond que a casa era um verdadeiro palacete.

Ao longo do texto, Hilda deixa de se mostrar como uma pecadora, caminho inverso seguido pelo padre. Uma noite, enquanto o padre ainda era da turma dos moralistas do Lacerda, fez-se uma mistura de passeata com procissão, cujo objetivo era exorcizar o demônio que havia em Hilda. Na confusão, o sapato da vedete ficou com o padre. Uma vidente (Madame Jane) anunciou que Hilda se apaixonaria por quem estivesse com o sapato. Uma cinderela mineira.

"Hilda Furacão" é um registro histórico em forma de crônica inteligente e bem humorada. O jovem casal comunista que namorava clandestinamente, violando a moralidade do partido, e a sessão de reprovação que segue são passagens hilariantes. O próprio Drummond revela que buscava sua cordilheira revolucionária nas montanhas de Minas.

Antonio Candido, o nosso grande crítico, ensina que há uma literatura sancionada e uma literatura proscrita. "Hilda Furacão" está em um meio termo imaginário entre esses dois polos. Na leitura atenta o leitor se define: ou proscreve a obra, porque percebe uma militância em face da qual se desiludiu; ou festeja a estória, porque faz parte de sua própria história. Nesse último caso, encontra as premissas a partir das quais construiu uma visão de vida desiludida e realista; mas não há como voltar no tempo. "Hilda Furacão" é uma inteligente crônica de época, de lugar e dilemas que já não existem mais.

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