Diário de Classe

A crise da democracia e a crise do Direito, de mãos dadas

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24 de outubro de 2020, 8h00

Comecemos pelas mais recentes imagens da democracia no século 21: na Espanha, o Podemos, projetado por pares acadêmicos, é taxado de populista. Num passado não tão distante, a Grécia buscou saída de sua grave crise financeira polarizando-se na extrema-esquerda de Syriza Alexis Tsipras, enquanto o Reino Unido, com outro norte, viu crescer o Ukip, sigla de extrema-direita, em ascensão semelhante à da Frente Nacional na França. Nos EUA, Trump e sua tentativa de reeleição figuram como grave risco ao futuro da democracia em recentíssimo editorial do The New York Times. Por aqui, entre as infinitas possibilidades de radicalização política oferecidas pelas redes sociais, nossas instituições democráticas, tíbias, (des)equilibram-se sobre pontos de interrogação cada vez mais difíceis de enfrentar.

Como se vê, os abalos são gerais, e nossos problemas assentam-se diante de um pano de fundo comum e globalizado. Não estamos sozinhos nem na grave crise econômica — via de regra associada a uma espécie de mal-estar democrático —, nem na descrença de nossas instituições. Menos ainda nas apostas extremadas, em que se vê o poder não como um sempre ocupado espaço de indeterminação — como é de se supor nas democracias —, mas como um lugar de exercício permanente do poder acima da impessoalidade que caracteriza o regime. A democracia vai mal, e suas "vantagens" são constantemente questionadas. E de todos os lados.

Talvez por isso, significativa parcela da população acha que não deveríamos eleger governantes, mas delegar o Executivo a especialistas. O "não me representa", mote das manifestações de junho de 2013 e extensivo ao Legislativo, parece, enfim, conformar-se: fatia ainda maior de brasileiros "acha" que a democracia funcionaria "sem" o Congresso.

É triste. Mas o paradoxal imaginário da desesperança faz sentido. É fruto de um silencioso diálogo com o presidencialismo de coalizão, em boa medida, raiz do descrédito institucional e das razões para tanto pessimismo. É a hipótese. Nossa condição de governabilidade — "inventada" na Segunda República e "reinventada" na redemocratização — não é exatamente um mal em si, mas parece carregar no seu "modo de usar" um vício incorrigível, que traz à tona não apenas uma certa sensação de que "não nos representam", mas, de fato, uma "não representação". Não é somente uma impressão. A "não representação" é real. Como diria Giacomo Marramao, a crise da democracia moderna é a crise da representatividade. Por aqui, a taxativa afirmação do filósofo político italiano cai como uma luva.

Por que é assim?

Vejamos, a partir de uma muito resumida descrição do processo político neste modelo:

Com tantos partidos políticos, após as eleições, a governabilidade depende de alianças. São mais de 30 siglas. E embora seja difícil, claro, imaginar mais de trinta projetos diferentes para o Brasil, justificando tantos partidos, é fácil perceber que o elo entre representante e representado é quebrado após os pleitos eleitorais em nome das alianças que facultam um ambiente voltado à condição de possibilidade de governo. A política no Brasil vira um beco sem saída: ou o país trava, ou o "falar em nome de" é não mais que um simulacro. Tributário de um ultimamente questionado traço patrimonial, o país tem — e não de hoje — optado pela segunda possibilidade.

Essa condição não justifica, evidentemente, a descrença de significativa parcela da população em nossas instituições, fazendo eco aos índices que apontam para a esquizofrênica "preferência por uma democracia sem Congresso". Mas explica. Afinal, o modelo que empresta governabilidade limita sensivelmente as chances de renovação política, em que pese, paradoxalmente, não impeça aquilo que poderíamos chamar de "oxigenação formal". Nas últimas eleições, por exemplo, 243 novos representantes foram eleitos para a Câmara dos Deputados, indicando uma renovação de mais de 47%. Mas, sejamos francos: o que mudou?

A crueza de diagnósticos como esse poderia servir, ao menos aqui no Brasil, para desmontar os apaixonados argumentos que não apenas fazem o país rachar em posicionamentos políticos tão díspares, cujo saldo é o deslocamento da tensão das instituições para as pessoas, mas talvez sirva de hipótese ao problema que interroga pela crise do direito — tão marcada por ativismos, decisionismos e outros tantos "ismos".

Quero dizer com isso que, do mesmo modo que a crise política parece fazer deslocar as tensões das instituições às lideranças, há um deslocamento das expectativas políticas ao Judiciário. A politização da Justiça, intuo, é tão evidente e dependente desse cenário que, hoje, esse mesmo espaço da República é alvo de crítica não somente pelo seu manejo institucional, mas pelo endereçamento de suas decisões.

Essa hipótese lança alguma luz sobre o ambiente de discricionariedade, que parece cada vez mais naturalizado em nossa cotidianidade jurídica. Mas, evidente, não dá conta do todo. O problema é complexo. Muitas são as suas raízes. A intenção aqui não é projetar uma imersão nesses alicerces corrosivos. Entretanto, talvez seja responsiva — essa hipótese — à "aceitação pública" e, até mesmo, ao "incentivo" desse comportamento nos tribunais. As discussões em torno das decisões envolvendo a "lava jato" são emblemáticos exemplos — talvez os melhores — dessa crise (ou desse deslocamento de expectativas). O "não me representa" parece jogar a toalha na política para olhar com segundas intensões para o Judiciário (e para muito além da reflexividade observada por Pierre Rosanvallon). Isso é grave.

Em contundente texto publicado na ConJur na última segunda-feira (19/10), Lenio Streck (aqui) citou Chesterton, um conservador, como ele mesmo anotou. Pela discussão até aqui entabulada, vale a pena replicar: "Toda civilização decai quando esquece das coisas mais óbvias". Pois bem. O endereçamento de nossas expectativas políticas ao Judiciário — parece-me — é o produto de um desses imperdoáveis esquecimentos a fomentar a voz das ruas no Judiciário. Melhorar a qualidade de nossa democracia — eis aí outra obviedade esquecida — não pode passar pela predação do Direito e pela sua instrumentalização através do Judiciário. Claro. O enfraquecimento de determinadas instituições não pode significar o fortalecimento de outras. Democracia é, antes de qualquer coisa, respeito às regras do jogo.

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