Opinião

O transporte público, a crise da Covid-19 e o Poder Judiciário

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23 de outubro de 2020, 7h11

A pandemia da Covid-19 (Sars-CoV-2) impactou a economia e a vida social, com efeitos deletérios (que devem perdurar para além da crise sanitária). A necessidade de isolamento social e distanciamento, uso de máscaras e higienização constante de ambientes são práticas que foram recentemente introjetadas no cotidiano.

A sociedade, como um todo, teve de se adaptar aos novos "protocolos" sanitários e o segmento do transporte público, dadas as suas complexas necessidades logísticas e operacionais (além da essencialidade), seguramente foi um dos serviços mais impactados pela pandemia, com a adoção de políticas públicas de combate à Covid-19.

Em sua maioria, o serviço público de transporte de pessoas é prestado sob a forma de concessão ou permissão dos municípios ou Estados. Assim, não apenas Constituição Federal, Constituições estaduais, leis orgânicas dos municípios, leis estaduais e municipais pertinentes, mas também a Lei de Licitações, a Lei de Concessões, o Estatuto da Cidade, o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Pessoa com Deficiência e a Lei da Mobilidade Urbana regulam o serviço público de transporte de pessoas. A quantidade de normas incidentes sobre a prestação dos serviços de transportes públicos já seria suficiente para evidenciar a sua complexidade operacional, que foi severamente acentuada com o advento da pandemia.

As concessionárias foram privadas do recebimento da remuneração contratual, mediante tarifa paga pelo usuário, e tiveram de manter níveis de frota em circulação (compatível com os protocolos de distanciamento social e não aglomeração emitidos pelos poderes concedentes), arcando com todos os custos operacionais regulares e com os novos custos oriundos de protocolos de higienização.

Nesse contexto é que diversas ações judiciais foram interpostas.

De um lado, diversas ações civis públicas foram propostas por Ministério Público e defensorias, objetivando fiscalização/imposição de medidas sanitárias, monitoramento da prestação dos serviços ou intervenção no mecanismo de remuneração contratual.  Destaquem-se duas ações civis públicas: 1) a que se voltou contra a concessão de auxílio-emergencial que seria pago para cobrir os custos essenciais de operação do sistema de transporte público; e 2) a que se voltou à fiscalização das medidas de higienização dos veículos, ambas promovidas no Tribunal de Justiça do Distrito Federal.

Com relação à primeira ação, foi concedida liminar para obstar o subsídio emergencial, mas acabou por deflagrar procedimento administrativo de revisão extraordinária. Quanto à segunda ação civil pública mencionada, foi pactuado negócio jurídico processual entre as concessionárias do sistema de transporte público do DF e o Ministério Público do DF, através de pioneiro processo de mediação que se desenrolou no Cejusc do Tribunal do DF, tendo as partes chegado à composição com a apresentação de planos de sanitização dos veículos.

Por outro lado, a judicialização dos conflitos decorrentes dos impactos da Covid-19 também foi provocada pelas concessionárias e permissionárias, em face dos graves problemas causados pela queda da demanda, considerando que os contratos são remunerados, quase que exclusivamente, por tarifa paga pelo usuário.

Destaque à situação emblemática do município de Blumenau (SC), com a proibição de circulação do transporte público por diversas semanas. A concessionária promoveu ação judicial para a obtenção do custeio imediato de despesas operacionais (folha de salários e manutenção de frota). Foi concedida tutela de urgência instando o município a adotar medidas tendentes a sanar o impasse, resultando dessa demanda a aprovação de lei municipal autorizativa do custeio imediato.

Inegável a ocorrência de graves prejuízos causados ao desempenho técnico e econômico dos contratos de concessão, circunstância que já foi objeto de pareceres tanto da Advocacia-Geral da União (AGU) como da Agência Intermunicipal de Regulação do Médio Itajaí e Artesp.

O desequilíbrio econômico-financeiro decorrente do evento Covid-19 não foi requerido nas ações judiciais acima citadas, mas os efeitos deletérios perdurarão para além da crise sanitária e a judicialização do reequilíbrio econômico-financeiro somente será inevitável se não houver o almejado consensualismo no âmbito contratual da Administração Pública.

Autores

  • é advogada. Foi Secretária Adjunta da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo. É também professora da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo.

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