Opinião

Recebimento de honorários e lavagem de dinheiro

Autor

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

23 de outubro de 2020, 10h35

Recentemente foi instituída pelo presidente da Câmara dos Deputados uma comissão para elaborar o anteprojeto de lei para reformar a Lei de Lavagem de Capitais, existente no Brasil desde 1998. É certo que, desde a sua promulgação, a lei já sofreu alterações pontuais e questões polêmicas ainda são alvo de debates nas cortes brasileiras.

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Entre as questões que surgiram desde a edição da lei está a dos sujeitos obrigados a prestar informações sobre operações suspeitas, que provavelmente serão revisitadas agora pela comissão instituída para revisar a Lei de Lavagem de Dinheiro.

A questão polêmica que deverá ser discutida diz respeito à participação do advogado no delito de lavagem de dinheiro, como se o advogado necessariamente fosse um partícipe pelo recebimento de honorários no exercício da defesa de seu cliente. A questão pode ser resolvida de maneira simples já no plano constitucional, onde se assegura o livre exercício da advocacia, sendo que esta é indispensável à administração da Justiça (CF artigo 133). Tal hipótese não impede a participação do advogado quando ficar demonstrado que este atua como organizador do esquema ou fiduciário do lavador, porém, nesses casos, já não se trata mais de exercício da advocacia.

Importante deixar registrado que a livre escolha a um profissional de sua confiança é um direito do acusado que não lhe pode ser retirado e, de outro lado, o exercício profissional é um direito do advogado assegurado constitucionalmente.

O Tribunal de Hamburgo, analisando a matéria, menciona que o castigo do advogado que recebe honorários com dinheiro procedente de um delito prévio em nada contribui para o sustento da criminalidade que se pretende combater, mas, ao contrário, ter de retribuir economicamente à defesa, sempre que não se trate de um negócio simulado, supõe mais uma carga para o imputado que um incentivo que possa movê-lo a cometer o delito: "Normalmente se cometem delitos lucrativos porque o autor quer obter algum tipo de rendimento com os ganhos de sua conduta, não para se ver implicado num processo penal e poder pagar um advogado" [1].

Assim, como regra geral, o recebimento de honorários por parte dos advogados num processo penal não pode ficar objetivamente abarcado pelo tipo de lavagem de dinheiro [2]. Tampouco o advogado está obrigado a identificar previamente a proveniência dos valores que recebe, pois o advogado não é garante do Estado, ou seja, não tem o dever de fiscalização.

É claro que nem sempre a conduta do advogado será excluída, excepcionando a regra do regular exercício profissional quando o advogado não se limita a defender processualmente o seu cliente, mas intervém no objeto do procedimento pretendendo alterá-lo de forma favorável a seu cliente e participa na transmissão dos bens procedentes do delito prévio. Tais casos não ficam abarcados pelo livre exercício da profissão de advogado e, em consequência, devem ser constitutivos de um delito de lavagem de dinheiro.

A outra hipótese referida pelo tribunal é aquela em que o pagamento de honorários se constitui numa fraude à proibição de lavagem, como ocorre, por exemplo, quando o advogado atua como fiduciário do lavador [3]. Portanto, as condutas do advogado que se restrinjam as atividades quotidianas de exercício da advocacia não podem ser vistas em qualquer hipótese como participação no delito de lavagem de dinheiro, ainda quando o profissional receba como pagamento de honorários os valores de que não saiba a procedência. No mesmo sentido, não há como imputar qualquer conduta criminosa ao advogado quando ele deixa de informar o recebimento de valores de procedência duvidosa.

A doutrina já trabalhou esse tema. Em sendo as atividades neutras, normais ou socialmente adequadas, em que se insere justamente o trabalho do advogado (assessor fiscal, empregados de bancos, notários etc.), devendo-se invocar os princípios da imputação objetiva para exclusão da responsabilidade penal, abandonando-se os critérios de simples relação de causalidade que podem conduzir a condenações insólitas. Assim, para a atipicidade do comportamento os critérios devem ser os do risco permitido, princípio da confiança e o da proibição de regresso [4].

A situação se modifica nos casos em que o trabalho do advogado consiste em assessorar seu cliente sobre como obter uma maior rentabilidade dos bens obtidos ou como ocultá-los de maneira eficaz à ação das autoridades. Nesses casos, o advogado contribui diretamente com sua conduta para a manutenção da capacidade econômica do autor do delito prévio e, portanto, sua conduta deve ser castigada atendendo os fins da punição do delito de lavagem.

Uma última consideração sobre o tema que pode ser o ponto fundamental desta discussão é o caso dos honorários de boa-fé (bona fide fes). Nesse contexto, considera-se que a questão fundamental radica em se os honorários foram pagos de boa fé sem qualquer engano para a representação concernente à responsabilidade pessoal do acusado. Assim, afirma-se que não existe o abono de honorários bona fides quando se tratar de um plano pré-concebido para manter os interesses do acusado ou de um terceiro sobre certos ativos ou utilizá-los de forma que suponha um interesse para aquele. Por exemplo, se os honorários superam de forma vultosa o valor dos serviços prestados e existe um acordo entre o advogado e o cliente para transferir ditos ativos ao cliente ou ao terceiro, então, não se consideram que são bona fides, mas que constituem um delito de lavagem de dinheiro [5].

Feitas essas considerações e aproveitando a possível reforma legislativa que está por vir, é um bom momento de reflexão para que o advogado não figure no rol dos sujeitos obrigados a prestar informações quando recebe valores de seu cliente para a devida e correta contraprestação da defesa deste. A conduta, como se expôs, encontra-se dentro de suas atividades quotidianas e não se insere na esfera da tipicidade penal.

 


[1] RAGUÉS I VALLÉS, Ramon. Blanqueo de capitales y negócios standard. Revista Ibero-americana de Ciencias Penais, Porto Alegre: CEIP, 2002, p. 169.

[2] ARÁNGUÉZ SÁNCHEZ, Carlos. El delito de blanqueo de capitales. Madrid: Marcial Pons, 2000, p. 258.

[3] PALMA HERERRA, José Manuel. Los delitos de blanqueo de capitales. Madrid: Edersa, 1999, p. 534.

[4] BAJO FENANDEZ, ob. Cit., p. 19; CALLEGARI, André Luís, Participação criminal de agentes financeiros e garantias de imputação no delito de lavagem de dinheiro, 341 e ss.

[5] GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. El critério de los honrarios profisionales bona fides como barrera del abogado defensor frente al delito blanqueo de capitales: un apunte introductório, em Política Criminal y Blanqueo de Capitales. Madrid: Marcial Pons, 2009, p. 221/222.

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