Pensando em Habeas

Eles passarão, eu passarinho: a liberdade é o poema da vida

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22 de outubro de 2020, 8h00

Spacca
Escrever uma coluna sobre o papel do Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal é perseguir sempre as travas à liberdade. Basta uma rápida consulta às escolas penais para notar que o veio de evolução da teoria da pena está na direção de um caminho civilizatório que indica ser o fim da privação da liberdade a chegada distante. Procura-se, com a evolução das ciências penais, a busca pela mais bem acabada justificação para a imposição da pena, com argumentos cada vez mais sofisticados. Se toda chegada é também uma partida, devemos ter o start da jurisdição na consideração de que a negativa da liberdade é, em si, uma violência — ou, no mínimo, a confirmação de uma. Não se olvida que também essa violência possa ser legítima, de um Estado que busca, por algum meio, garantir a estabilidade do meio social, mas essa questão precisa ser elucidada sob o ponto de vista do sentir humano num país que escolheu como núcleo axiológico de sua Constituição a dignidade da pessoa humana.

Recentemente, a Primeira Turma, no Habeas Corpus 178.777 (relator o ministro Marco Aurélio, decisão por maioria, j. 29.09.2020) assentou, nos termos do voto do relator, ser soberano o pronunciamento do Conselho de Sentença que absolve o réu com fundamento no quesito genérico do parágrafo 2º do artigo 483 do Código de Processo Penal ainda que a resposta à pergunta (“o jurado absolve o réu?), esteja completamente dissociada da prova produzida no processo-crime. O colegiado concluiu ser incompatível com a absolvição a apelação da acusação por alegada (pelo Ministério Público ou por assistente de acusação) "decisão manifestamente contrária à prova dos autos".

O caso revela exatamente o sentido humanista que deve pautar a evolução do Direito Penal: ainda que presente a materialidade e comprovada a autoria, o Júri, composto de magistrados pares do acusado, pode reconhecer que a situação em jogo merece clemência. Não há nada mais humano que a expressão desse sentimento diante de um crime.

 No voto condutor, Sua Excelência o ministro Marco Aurélio fez ver que "o quesito versado no dispositivo tem natureza genérica, não estando vinculado à prova. Decorre da essência do Júri, segundo a qual o jurado pode absolver o réu com base na livre convicção e independente das teses veiculadas, considerados elementos jurídicos e extraprocessuais". Esses elementos extraprocessuais são justamente a razão de existir o julgamento pelo Tribunal popular. Pode o jurado reconhecer-se no réu, aventando a possibilidade de que, diante de semelhante situação, poderia reagir de maneira próxima. Adotar isso como possibilidade jurídica a impedir novo julgamento é uma notável evolução para o implemento das relações sociais desejáveis. Telles Jr., do ponto de vista da filosofia do direito, já havia ressaltado que:

"Cada ser humano possui seu próprio universo cognitivo, isto é, possui um conjunto ordenado de conhecimentos, uma estrutura cultural, que é seu próprio sistema de referência, em razão do qual atribui a sua significação às realidades do mundo. Toda realidade pode ser objeto de conhecimento. Mas o conhecimento de uma realidade está sempre condicionado pelo sistema de referência do sujeito conhecedor."[1]

Ora, não há nada mais justo do que ser julgado por jurados que vivem próximos da realidade do contexto criminoso alvo do julgamento e saberão, com um sistema de referências mais bem calibrado para aquela situação, estabelecer a melhor significação àquele delito. Inexiste campo para sobrepor a isso o julgamento de um Tribunal, em apelação, desqualificando a visão adotada pelo Conselho de Sentença. A pergunta contida no dispositivo é de natureza obrigatória e a resposta afirmativa não implica e nem poderia nulidade automática do júri.

A resposta "sim" expressa, portanto, a percepção inequívoca do jurado, concedendo a clemência. Como bem assentou o ministro Gilmar Mendes em outra ocasião, "A clemência compõe juízo possível dentro da soberania do Júri, ainda que dissociada das teses da defesa" (RE 982.162, relator o ministro Gilmar Mendes, j. 31.8.2018), e, ante o preceito versado no artigo 5º, inciso XXXVIII, alínea “c”, da Carta Política  "é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: […] a soberania dos veredictos" , não há margem para dúvida quanto a essa soberania.

O máximo que a dicção "manifestamente contrária a prova dos autos", prevista no artigo 593, inciso III, alínea "d", comporta é a anulação da decisão do Conselho de Sentença ante vício no procedimento. O ministro Marco Aurélio, no Habeas Corpus 80.115 (relator o ministro Néri da Silveira, j.24.04.2001), observou que "manifestamente" é advérbio de modo, reservado a situações extravagantes, "quando se percebe, até mesmo, que o veredicto restou formalizado num quadro de perplexidade maior e, quem sabe, até mesmo mediante certa pressão existente no local". Ou seja, à acusação estão preservados tanto o direito ao recurso quanto a dialética processual, contanto que seja o caso dessa estrita hipótese procedimental.

Aliás, o direito ao recurso garantia precípua do condenado não pode se voltar contra ele, sob pena de fazermos da regra penal pura sofisma, estabelecendo que, ao assumir um direito fundamental assume-se também um ônus (fundamental?). O raciocínio acusatório não fecha: produz uma ilusão de verdade, que, embora simule regra lógica, é inconsistente e enganoso. Quanto a isso, Vasconcellos ensina que:

"(…) o direito ao recurso se concretiza ao imputado no processo penal, impondo o cabimento de ampla revisão sobre a condenação. Por outro lado, não há a referida consagração à parte acusadora, o que autoriza a diminuição do seu poder impugnativo. E, nesse sentido, coloca-se tendência de fragilização da concepção bilateral dos recursos, introduzindo-se hipóteses exclusivas e distintas amplitudes de reexame".[2]

Em breve, o Supremo terá a chance de se pronunciar em sede de repercussão geral sobre o tema, no julgamento do ARE 1.225.185. Votaram em ambiente virtual os ministros Gilmar Mendes (relator), Celso de Mello e Marco Aurélio. O processo teve pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes.

O Júri é instrumento fundamental numa sociedade que busque se compreender. Defender a soberania do veredicto absolutório neste caso é, ao mesmo tempo, defender não apenas o réu, mas também o jurado que, exposto a um crime contra a vida alheia, se compadeceu. No final da reta que enfrentamos rumo ao humanismo das penas, estará sempre a liberdade, como o olhar de Quintana sobre a sociedade, a predizer: "Todos esses que aí estão /Atravancando meu caminho, /Eles passarão… / Eu passarinho!".

[1] TELLES JUNIOR, Goffredo. Direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 9. Edição. São Paulo: Saraiva, 2014. P. 227.

[2] VASCONCELLOS, Vinicius G. Direito ao recurso no processo penal. 2ed. RT, 2020. p. 94

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  • Brave

    é advogado, autor de AP 470: análise da intervenção da mídia no julgamento do mensalão a partir de entrevistas com a defesa. Entre 2013 e 2014 foi pesquisador do Programa de Direito Penal da Utrecht University, na Holanda sob orientação do Professor Titular J.A.E. Vervaele.

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