Opinião

A revogação da Resolução 303/02 do Conama e a proteção ambiental da costa

Autor

  • Daniel Raupp

    é sócio na área de direito societário de Silveiro Advogados mestre em Direito Societário pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e MBA em Gestão Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

22 de outubro de 2020, 20h25

Com a revogação da Resolução 303/2002 pelo Conama, o país discute possível retrocesso na proteção ambiental da zona costeira, especialmente nas restingas e nos manguezais. Neste texto me concentrarei nas áreas de restinga e no que mais impacta a revogação da norma: a faixa mínima de 300 metros, medidos a partir da linha de preamar máxima.

Antes de tudo, é equivocado afirmar que foi eliminada a proteção ambiental dessas áreas, uma vez que permanece em vigor o Código Florestal (Lei 12.651/12), norma hierarquicamente superior e posterior à Resolução.

O termo restinga é assim definido pelo Código Florestal:

"Depósito arenoso paralelo à linha da costa, de forma geralmente alongada, produzido por processos de sedimentação, onde se encontram diferentes comunidades que recebem influência marinha, com cobertura vegetal em mosaico, encontrada em praias, cordões arenosos, dunas e depressões, apresentando, de acordo com o estágio sucessional, estrato herbáceo, arbustivo e arbóreo, este último mais interiorizado" (artigo 3º, XVI, do Código Florestal).

O conceito legal de restinga, portanto, exige a presença, em espaço próximo à costa, de depósito arenoso com cobertura vegetal específica.

Porém, para se caracterizar como área de preservação permanente (APP), não basta que o local seja restinga, é necessário que haja função fixadora de dunas ou estabilizadora de mangues (artigo 4º, VI, do Código Florestal).

Mas o que deve ter essa função: a restinga ou a vegetação que a cobre?

Para o Código Florestal revogado, a proteção incidia sobre as florestas e demais formas de vegetação natural situadas nas restingas. O código atual repetiu a redação, porém sem a preposição "em", o que leva a crer que a proteção é sobre a própria restinga, e não sobre a vegetação nela situada. Esta tem sua proteção e utilização regulada pela Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/06) [1].

Em suma, o Código Florestal em vigor utiliza critério geomorfológico para definição de restinga, e somente a restinga com função de fixação de dunas ou estabilizadora de mangues é que pode ser considerada APP.

Assim, ao estabelecer, de forma indiscriminada, faixa mínima de 300 metros, do mar para o continente, como APP, independentemente da função ecológica da restinga, a resolução excedia seu poder regulamentar, portanto já não encontrava amparo na legislação em vigor [2].

E não se trata de mero detalhe técnico. A prática mostra que é nessa norma que os órgãos ambientais se prendem para avaliar a (im)possibilidade de ocupação da orla marítima, já que vedada a supressão da vegetação situada em APP (artigo 7º da Lei 12.651/12).

É verdade que o código revogado previa a possibilidade de o poder público criar APP para proteger vegetação destinada, por exemplo, a fixar dunas. A despeito da controvérsia sobre o alcance dessa autorização, o código atual passou ao chefe do Poder Executivo essa atribuição (artigo 6º), no que não se enquadra o Conama.

De todo modo, o debate sobre a competência do Conama para regular a matéria encontra-se superada com a revogação da resolução. Não cabe ao Poder Judiciário, diante da expressa delegação ao chefe do Poder Executivo, interferir nessa questão, sob pena de ofensa ao princípio da separação de poderes.

Já escrevi que é equivocado partir da premissa de que a presença humana na zona costeira é sempre maléfica ao meio ambiente, por isso deve ser em todo o caso evitada, sem se levar em conta que o processo histórico de ocupação do território brasileiro se iniciou pelo litoral [3].

O próprio Código Florestal excepciona situações em que a intervenção ou a supressão de vegetação nativa em APP nas restingas poderão ser autorizadas, por exemplo, "para execução de obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda" (artigo 8º, §2º) [4].

Além disso, a desocupação total da orla é uma ilusão. A ideia de que o meio ambiente costeiro permanecerá inalterado e permanentemente intocado é utópica. A expectativa de que o ser humano se estabeleça a 300 metros do mar não é realista.

Por todo lado veem-se construções à beira-mar, com ou sem autorização estatal, gerando perplexidade na população. Se a ocupação da orla é, em uma visão pragmática, inevitável, melhor que se dê de modo sustentável, ou seja, contemplando desenvolvimento econômico, bem-estar social e proteção do meio ambiente, com construções adequadas ao meio ambiente local.

Isso não significa descuidar da preservação do meio ambiente costeiro. Deve-se, de fato, preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Porém, a proibição de ocupação deve estar restrita aos locais onde a legislação estabeleceu como de preservação permanente. A extensão da proibição a todo o litoral brasileiro, em faixa mínima de 300 metros, não só é uma tarefa que se antevê malsucedida, como não auxilia a preservação de longo prazo.

 


[1] Nesse sentido: DANTAS, Marcelo Buzaglo; ANDREOLI, Cleverson Vitorio. Código florestal anotado: observações de ordem técnica e jurídica. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 29.

[2] Nesse sentido: MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 11. Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 1660.

[3] RAUPP, Daniel. O Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a possibilidade de ocupação da zona costeira mediante desenvolvimento sustentável. Florianópolis: Habitus, 2020.

[4] O STF, na ADC 42, reconheceu, por unanimidade, a constitucionalidade deste dispositivo. De acordo com a ementa, "[…] ante a previsão legal desses requisitos estritos e plenamente razoáveis, considerados os interesses em jogo, exige-se do Judiciário uma postura de autocontenção, em homenagem à função constitucionalmente garantida ao Legislativo para resolver conflitos de valores na formulação de políticas públicas" .

Autores

  • Brave

    é juiz federal, doutorando e mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali-SC), em regime de dupla titulação com a Widener University — Delaware Law School (EUA).

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