Opinião

A equação da reincidência e o 'milagre' da ressocialização

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22 de outubro de 2020, 13h11

A maior parte da sociedade brasileira demonstra um afã enorme pela punição e um odioso descaso com os direitos e as garantias individuais dos detentos, como exemplo disso basta analisar as últimas declarações do presidente, os últimos atos do Legislativo e outros fatos que refletem bem os anseios sociais imediatos.

Aliás, os brasileiros não conhecem as funções da pena, nem mesmo a dogmática penal. Na verdade, essa ignorância abrange boa parte da comunidade jurídica, inclusive professores universitários que fazem da docência um "bico" e ignoram os pesquisadores que levam a ciência a sério. Não são raros os discursos que enfatizam o maximalismo da punição e medidas que não são comportadas no atual estágio do nosso Estado de Direito, como a tortura e a pena de morte. Esquecem-se que os direitos fundamentais atingiram no Brasil, a partir da Constituição de 88, patamares que vedam qualquer resquício ditatorial sobre a pena.

Nessa toada, em combate ao posicionamento equivocado da maior parte da população, a comunidade científica estabelece que a punição deve ser justa, humana, estratégica, visando à reincorporação do infrator à sociedade. Entretanto, ignorando as lições acadêmicas, a punição continua a liderar as eleições e a cegar as autoridades, que buscam propostas de criminalização e enfrentamento violento da "própria violência".

A prisão, eleita como solução da criminalidade, transformou-se em uma máquina de marginalização, incentivando o crime, contribuindo com o fortalecimento das facções.

Verifica-se, inicialmente, que a causa do problema também é a própria análise da origem da população carcerária brasileira e sua preferência por pessoas de baixa escolaridade, baixos níveis culturais, negros, dependentes químicos, entre outros grupos sociais vulneráveis — que sempre estiveram longe dos chamados "estereótipos sociais perfeitos".

Se não bastasse tamanho direcionamento, coloca-se sobre as prisões o "dever" da ressocialização, esquecendo-se da complexidade subjetiva dessa finalidade, das condições de cada um e dos motivos que levaram o sujeito ao cárcere que, na grande maioria dos casos, reflete a dificuldade para associar valores sociais positivos ainda quando em liberdade.

Portanto, a primeira missão seria fazer com que os sujeitos da norma, em sua maioria, fruto de um intenso processo de marginalização social permanente, em razão da crescente desigualdade no país, assimilem valores positivos dentro do cárcere, convivendo com outros indivíduos que também desrespeitaram os valores preestabelecidos e nunca foram socialmente aceitos.

A problemática consiste em recuperar o indivíduo, ao lado de outros infratores da norma, dentro de um sistema carcerário desumano. Isso significa sedimentar valores positivos em um ambiente negativo, violento e degradante.

Não é preciso ser um hábil cientista para perceber que essa equação humana nunca será resolvida. É evidente a impossibilidade de recuperação nessas condições, percebemos, então, que a pena privativa de liberdade no Brasil assume outra finalidade, que é manter os infratores da norma o mais próximo do cárcere, ocupando o lugar do "não humano", mantendo-os no poço da exclusão, que aqui chamamos de prisão. Para isso o Estado parece incentivar a reincidência.

Logo, ao analisarmos as condições dos presídios e os indivíduos que habitam esse universo paralelo, verificamos que a reincidência é o resultado racional e a ressocialização, o "milagre" da sistemática.

Para os que sustentam um maior rigor das leis penais como solução de toda a problemática apresentada, apregoando o que, por si só, causa a chamada superinflação de leis, volto a alertar que, ao proferirem esse discurso, estão contribuindo com o problema, vez que o aumento da população carcerária dificulta ainda mais a classificação, a individualização da sanção, a garantia de direitos, o tratamento humano dos condenados.  

Ao aumentarem a criminalização e o contingente, estaremos apenas aumentado o número de reclusos e os inserindo nesse universo paralelo, servindo a polícia e a acusação como órgãos de recrutamento, ou seja, o Ministério Público e os órgãos de segurança pública contribuindo com a criminalidade. A prevenção está na política adotada.

Leis mais rigorosas contribuem para tornar o sistema penitenciário ainda mais degradante, pois o maior tempo de detenção gera um incremento populacional, que tem impactos nas condições de encarceramento, "você aumenta a densidade populacional, cresce a ociosidade, o número de presos por funcionários aumenta e há problemas de gerenciamento do espaço" (BARBOSA, 2006).

Além de uma situação desumana, a superlotação ocasiona um aumento da periculosidade na prisão e, conforme as palavras de Alvino Augusto de Sá, "o indivíduo vai se espelhar também nos acontecimentos desse espaço, ou seja, no tempo, nos acontecimentos, nas forças, nas direções ele vai encontrar equivalentes para os referenciais internos de suas próprias necessidades, impulsos e conflitos" (2014, p. 125).

Outro fator é que em razão do crescente aumento do número de presos, aumenta também a dificuldade de os agentes conhecerem a população carcerária, sendo os presos identificados apenas pela sua numeração. Por consequência, reduzidos a objetos, crescem os abusos e as agressões cometidas pelos diretores, agentes penitenciários e pelos policiais que atuam no setor, criando-se, portanto, dois universos não individualizados: presos e guardas. 

O ser humano, retomando a antropologia neokantiana (KANT, 1993), jamais poderia ser elencado desta maneira, como "meio", vez que é o "fim" de toda relação humana, de modo que devemos individualizá-lo sempre. A consequência dessa instrumentalização, representada por um número de matrícula, faz com que os reclusos dispostos adequar-se ao projeto ressocializador sejam injustiçados e renuncie a seus valores e suas características pessoais.  

Aqui é necessário aclarar um ponto: todos os aspectos da vida do recluso se desenvolvem no mesmo local, as atividades diárias são realizadas na companhia de outros detentos, gerando o estereótipo da separação entre delinquentes e funcionários, sendo dois mundos sociais que não possuem penetração mútua, o que é também obstáculo para a mente do detento.

Dessa forma, verificamos que o indivíduo, por questões óbvias, em vez de buscar sua ressocialização, diante da ausência de reconhecimento pelos agentes do Estado, do descaso do poder público, vai aproximar-se da realidade mais próxima, ou seja, dos demais presos, dos seus semelhantes, também marginalizados, que enfrentam diariamente os mesmos problemas, sofrem a mesma violência.

Assim criam-se, durante a cumprimento da pena privativa de liberdade, dois universos: o metafísico (social — "humano") e o real (carcerário — "não humano"). O primeiro habitado pelas "pessoas do bem", incluindo nesse universo os governantes, os guardar agressores, o diretor autoritário e a polícia racista. O segundo, composto por indivíduos ligados ou não à criminalidade, mas que ali dentro do cárcere estabeleceram entre eles uma fraternidade para enfrentar a fome, a violência, o tédio, a ausência de privacidade, a falta de assistência médica, as condições mínimas de higiene, o constante desrespeito com os familiares, entre outras dificuldade.

Acontece que, pelo convívio diário com outros detentos, alguns realmente perigosos, como os que integram facções e organizações criminosas, cria-se uma famigerada "escola do crime" dentro das penitenciárias — tão mencionada em discursos rasos, mas pouco estudada pelos pesquisadores. Falta diálogo, falta contato, falta empirismo.

Na realidade, podemos afirmar que existe no cárcere um processo sociológico não estudado, que por assimilação e de forma gradual interfere na cultura da unidade prisional, aumentando a periculosidade de alguns e incentivando os demais, atuando na contramão do objetivo central do Estado de Direito: o combate à criminalidade.

Aliás, bem alerta João Farias Júnior que "a prisionização é o processo pelo qual o indivíduo vai assimilando dia a dia os influxos deletérios da prisão e, por via de consequência, vai potencializando-o para o crime, acomodando-o a vida carcerária e distanciando-o destes dos valores sociais" (1996, p. 310).

Sobre esse ponto é necessário considerar que tal processo de assimilação não é uniforme, visto que a absorção dos efeitos negativos do cárcere será evoluída com mais ou menos absorção para cada preso.

Relembro, ainda, as palavras de Evandro Lins e Silva ao afirmar que "a cadeia perverte, deforma, avilta e embrutece. É uma fábrica de reincidência, é uma universidade às avessas, onde se diploma o profissional do crime. A prisão, essa monstruosa opção, perpetua-se ante a insensibilidade da maioria, como uma forma ancestral de castigo. Positivamente, jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que quando entrou" (1991, p. 38).

Por fim, aos que sempre exigem uma proposta, uma solução mágica, uma medida capaz de resolver todos os problemas do cárcere, proponho a primeira, que, na verdade, constitui premissa básica para as demais: entendermos o problema e dialogarmos com ele.

 

Referências bibliográficas
— DE SÁ, Alvino Augusto. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. São Paulo: RT, 2014.
— JUNIOR, João Farias. Manual de Criminologia. Curitiba: Juruá, 1996.— KANT, Emmanuel. Doutrina do direito. Trad. Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993

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    é advogado criminalista, especializado em Ciências Criminais pela PUC/Minas, membro do Grupo de Pesquisa de Jurisprudência de Direitos Fundamentais UniToledo e do Laboratório de Direitos Humanos da FDRP-USP.

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