A retroatividade da LGPD é possível?
21 de outubro de 2020, 11h08
A Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados — LGPD) entrou em vigor recentemente. E atualmente a maioria dos olhares volta-se para sua adequação e aplicabilidade.
Com tal fato, vem a grande celeuma acerca da aplicabilidade da lei no tempo. O artigo 6º da LINDB é claro ao afirmar que "a Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada", pregando pela irretroatividade da norma e a ausência de chancela aos fatos pretéritos a sua vigência.
Não posso esquecer também do princípio do tempus regit actum, no sentido de que os atos jurídicos se regem pela lei da época em que ocorreram.
Chamo a atenção quanto a isso pois estão sendo proferidas inúmeras sentenças que refletem fatos articulados em momento anterior à vigência da LGPD.
A título de exemplo, cito os autos nº 1080233-94.2019.8.26.0100 [1] — 13ª Vara do Foro Central Cível de São Paulo, cujo fato gerador do dano refere-se à dispersão dos dados pessoais do autor, realizado pela ré, após pactuação de avença de compra e venda em 10 de novembro de 2018, sendo a ação ajuizada no ano de 2019.
A LGPD entrou em vigência em 18 de setembro de 2020 e a referida sentença do processo foi proferida 11 dias depois.
Ainda que a LGDP seja utilizada em sede de sentença para reforçar a sua fundamentação, vem o questionamento processual por tratar-se de direito exclusivamente material. Ou seja, se seria possível a retroatividade dos seus efeitos.
Ainda nesse sentido, vem também a impossibilidade da chamada "decisão surpresa" [2], haja vista a necessidade de compromisso com a tutela da expectativa.
O artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal prevê: "A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".
Fixada a premissa da irretroatividade (regra), devo ressaltar que ela não é absoluta.
O professor Flávio Tartuce [3] aponta: "Direito adquirido: é o direito material ou imaterial já incorporado ao patrimônio de uma pessoa natural, jurídica ou ente despersonalizado".
Logo, considerando que a LGPD se trata de uma norma de Direito material, somente vigoraria efeitos práticos a partir de sua vigência (incorporando o direito adquirido de quem quer que seja — pessoa física ou jurídica).
Em contrapartida, temos também o argumento da retroatividade dos efeitos da LGPD, chancelados caso se enquadrem em obrigação de trato sucessivo (cujos efeitos se prolongam no tempo) e pela aplicabilidade por analogia ao artigo 2035 [4] do CC/02, notadamente quanto à validade dos negócios jurídicos constituídos antes da entrada da LGPD, contudo, a validação dos efeitos posteriores aos preceitos dela se subordinam.
Vejamos um julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo:
"APELAÇÃO — Preliminar de não conhecimento suscitada em contrarrazões — Afastamento, porquanto o apelo atacou os fundamentos da sentença, nos termos do art. 514 do CPC – Recurso conhecido. LOCAÇÃO DE IMÓVEIS — EMBARGOS À Execução — Locação — Contrato prorrogado por prazo indeterminado — Disposição contratual que afasta a restrição temporal — Fiança — Exoneração — Notificação nos termos do artigo 835 do c.c. de 2002 — Contrato anterior ao novo Código Civil – Efeitos do negócio jurídico, entretanto, que seguem a égide do CC/02, nos termos do seu artigo 2.035 — Aplicabilidade das disposições do CC/02 aos contratos de locação avençados na égide do CC/16, pois os efeitos da fiança se estendem no tempo, após a prorrogação automática do contrato de locação, por tempo indeterminado — Exoneração da garantia, neste caso, que poderia ser realizada por denúncia simples dos fiadores — Recurso improvido"
(TJ-SP 10340610220168260100 SP 1034061-02.2016.8.26.0100, Relator: Carlos Nunes, Data de Julgamento: 16/10/2017, 31ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/10/2017).
Pelo amor ao debate, fica o questionamento processual acerca da aplicabilidade da Lei Geral de Proteção de Dados: retroage ou não?
[1] https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=2S0013T8I0000&processo.foro=100&processo.numero=1080233-94.2019.8.26.0100&uuidCaptcha=sajcaptcha_9482e47225a44b9b8b09957b562d6e1a.
[2] "Artigo 9º – Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Artigo 10 – O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício".
[3] Tartuce, Flávio. "Direito Civil, 1: Lei de introdução e parte geral." 6 ed. — Rio de Janeiro: Forense — São Paulo: METODO, 2010, pag. 68.
[4] "Artigo 2.035 – A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução".
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