Opinião

Bem de família luxuoso tem uso desvirtuado para blindagem patrimonial

Autor

  • Frederico dos Santos Messias

    é juiz de Direito Titular da 4ª Vara Cível de Santos especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura professor universitário e criador do canal do YouTube Professor Fred Messias.

21 de outubro de 2020, 15h12

A Constituição Federal protege a família. Na letra do seu artigo 226, ela é a base da sociedade e, por essa razão, merece a proteção especial do Estado.

O bem de família, com a sua garantia da impenhorabilidade, está inserido nesse contexto de proteção especial do Estado. Possui, pois, essa característica para o resguardo da família, dando-lhe o seguro asilo, evitando a perda do bem.

O Código Civil trata do bem de família em seus artigos 1711 a 1722. A Lei 8.009/90 traz uma segunda modalidade de bem de família.

Passamos, pois, a ter duas espécies: o bem de família voluntário ou convencional, que é esse que continua sendo instituído pela vontade livre do instituidor e decorre do Código Civil, e o bem de família legal ou obrigatório, decorrente da Lei 8.009/90.

Em ambos os casos, com o fito de proteger a família, garantindo-lhe um local de moradia, no sistema de execução patrimonial do Código de Processo Civil, o legislador retirou da incidência da constrição judicial o bem imóvel que, seja por ato voluntário, seja por lei, preencha os requisitos necessários para ser bem de família.

Há, é verdade, algumas exceções à impenhorabilidade, descritas no artigo 3º, da Lei 8.009/90.

O propósito deste artigo é definir como possível a constrição do bem de família para além das exceções legais, quando, de fato, este se apresentar como bem luxuoso, apto a, mesmo após sua alienação judicial, ainda permitir a garantia de reserva do produto para aquisição de outro imóvel destinado à residência da família, sem o luxo do primeiro.

Ao meu sentir, digo-lhes que já é chegada a hora de o Poder Judiciário enfrentar essa questão sob a ótica do credor, que tem sob as suas mãos um título que lhe permite legitimamente buscar a efetividade do seu crédito.

Por oportuno, cabe aqui afirmar que, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, o credor tem direito ao processo efetivo. Além disso, o processo de conhecimento é das partes, mas o processo de execução é do credor, conforme artigo 797 do Código de Processo Civil.

Mas, no cotidiano forense, o que se tem visto, na prática, são inúmeros casos em que o credor fica privado da satisfação do crédito em razão de uma proteção que recai sobre imóveis suntuosos, de alto luxo, com elevado valor de mercado.

Indago-lhes: qual a sociedade que queremos?

Digo isso porque, em uma sociedade evoluída do ponto de vista da cidadania, a simples inércia em cumprir voluntariamente uma obrigação reconhecida em título judicial ou extrajudicial já deveria ser suficiente para admitir-se medida de constrição sobre o patrimônio do devedor, mesmo sob proteção legal, quando essa mesma proteção é utilizada de modo desvirtuado, revelador da violação da cláusula geral da boa-fé.

Imaginar que o devedor pode furtar-se ao regular cumprimento da sua obrigação, escudado pelo uso desvirtuado de proteção legal, coloca-o em posição de soberano no Reino da Má-Fé, impondo a todos os cumpridores da lei a posição de súditos em uma sociedade que prefere o errado ao certo.

Por certo, o intuito da legislação protetiva do bem de família foi reservar à família uma moradia.

A garantia, aqui, está sendo desvirtuada com o objetivo de servir de blindagem patrimonial.

Assim, se for possível a alienação do imóvel e, ao mesmo tempo, a preservação de uma parte do produto da arrematação para a aquisição de outro imóvel de menor valor, essa solução deverá ser prestigiada pelo Poder Judiciário.

Penso ser importante ressaltar que o próprio legislador não considerou a proteção do bem de família de modo absoluto, pois ele próprio, atento à necessidade de superação da restrição em certas situações, admitiu a sua constrição.

A lei garante à família um imóvel, mas não garante um imóvel luxuoso, posto que a proteção objetiva assegurar a dignidade do devedor e sua família com uma residência, mas não uma residência luxuosa.

Assim, "a solução que se encontrou para o problema vai nessa linha: o  imóvel de alto valor, ainda que reconhecido como bem de família, pode ser penhorado e alienado, desde que com a garantia de reserva, ao devedor ou ao terceiro meeiro, de parte suficiente do valor alcançado, para que possa adquirir outro imóvel que propicie à família moradia talvez não tão luxuosa, mas tão digna quando a proporcionada pelo bem constrito.  Se a moradia foi elevada constitucionalmente a direito social, como se verifica do artigo 6º da Carta Magna, isto não significa que se trata de direito absoluto" [1].

A solução é simples.

Admite-se a constrição judicial sobre a totalidade do bem de família quando, pela avaliação técnica, revelar-se elevado valor de mercado capaz de permitir que, alienado em leilão, sirva ao mesmo tempo para garantir a efetividade do direito do credor e a residência da família do devedor, reservando-se parte do valor para pagamento do crédito e parte para aquisição de outro imóvel, técnica que se ajusta com o ideal de Justiça.

Para esse fim e para garantia da proteção legal do bem de família, a justificar seu afastamento temporário, é preciso que, após prova técnica, o juiz, atento aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e proteção da confiança, defina o imóvel como de elevado valor e, no passo seguinte, fixe o percentual que será reservado para aquisição de novo imóvel, bem como faça constar no edital que a arrematação se fará sempre pelo valor da avaliação.

Digo, por derradeiro, que não se está a defender a extinção do bem de família, garantia necessária para preservação do direito constitucional de moradia. Mas apenas e tão somente que, nas hipóteses de uso desvirtuado, como blindagem patrimonial, legal ou convencional, definido o bem como luxuoso a partir do seu elevado valor de mercado, possa se admitir que parte do todo sirva ao pagamento do credor.

 


[1] Apelação Cível nº 1094244-02.2017.8.26.0100, Tribunal de Justiça de São Paulo, 12ª Câmara de Direito Privado, 2 de setembro de 2020, CASTRO FIGLIOLIA RELATOR.

Autores

  • é juiz de Direito, especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura, professor universitário, coordenador regional da Escola Paulista da Magistratura (Núcleo Santos) e criador do canal do YouTube Messias Direito.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!