Opinião

Liberdade de expressão no esporte: o 'caso Carol Solberg'

Autor

21 de outubro de 2020, 17h22

A atleta de vôlei de praia Carol Solberg foi denunciada [1] pela procuradoria que atua junto ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) porque, segundo a peça acusatória, a atleta "ao término da partida (…), ainda na quadra de jogo e na presença do público e mídia presente (sic), pegou o microfone da estrutura do evento que estava até então sendo utilizado por sua parceira de dupla, a atleta Talita, para se manifestar politicamente gritando as palavras 'só para não esquecer: fora Bolsonaro'".

A denúncia aponta que Carol Solberg teria violado item do regulamento da competição que prevê o compromisso do jogador(a) em "não divulgar, através dos meios de comunicações, sua opinião pessoal ou informação que reflita críticas ou possa, direta ou indiretamente, prejudicar ou denegrir a imagem da CBV [2] e/ou patrocinadores e parceiros comerciais das competições".

O subscritor da denúncia entende que a declaração da atleta pode ocasionar um "eventual e possível prejuízo coletivo (…) no ciclo produtivo do desporto, já que o supracitado campeonato onde se deu a malfadada manifestação é financeiramente patrocinado (…) onde basta uma declaração inapropriada para lançar descrédito à competição, os patrocínios não serem renovados, ou mesmo, seus valores serem depreciados".

Em razão disso, entende que a atleta teria violado o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, em seus artigos 191, III, e 258, que preveem a conduta indisciplinar de deixar de cumprir o regulamento da competição e de assumir qualquer conduta contrária à disciplina ou à ética desportiva.

A denúncia junto aos órgãos da organização esportiva traz uma discussão no âmbito dos direitos fundamentais: há alguma especificidade acerca do direito à livre manifestação do pensamento no âmbito esportivo?

O esporte, ao longo do tempo, sempre foi um instrumento de manifestações políticas marcantes, que muito contribuiu para o debate de temas fundamentais, como nazismo [3], racismo [4], participação popular [5] e, contemporaneamente, reformas sociais e políticas [6].

O desporto é previsto no título VIII da Constituição Federal, que trata da ordem social e traça como um dos seus objetivos a justiça social, ao tempo em que o artigo 220, ao tratar da comunicação social, estabelece que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição.

Já a liberdade de expressão é tema que conta com inúmeras previsões constitucionais, como a que assegura a livre manifestação do pensamento e a liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (artigo 5, IV e IX), o direito de resposta (artigo 5, V), a liberdade de consciência e de crença (artigo 5, VI), o acesso à informação (artigo 5, XIV e XXXIII), o respeito ao pluralismo de ideias no ensino (artigo 206, III) e a vedação a qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística (artigo 5, IX e 220, §2).

Em razão de sua posição destacada no texto constitucional, é possível afirmar que a liberdade de expressão é um direito substantivo (ou um direito em perspectiva subjetiva) e, ao mesmo tempo, instrumental (ou um direito em perspectiva objetiva).

Sob a perspectiva substantiva, a liberdade de expressão é um valor em si, que se relaciona com o próprio desenvolvimento da personalidade do indivíduo, sendo uma "emanação do princípio da dignidade da pessoa humana, que reconhece que a realização individual de cada um depende, em grande medida, do intercâmbio de impressões e experiências para o que a liberdade é fundamental. (…). A partir de uma visão substantiva, toda e qualquer forma de censura com base no conteúdo é incompatível com a responsabilidade dos cidadãos enquanto agentes morais autônomos. Não cabe ao Estado ou aos agentes públicos definir quais ideias devem circular no meio social (…) [7]".

Sob a perspectiva instrumental, a liberdade de expressão é meio para a promoção de outros valores constitucionalmente tutelados, como a democracia. Por isso, "o regime democrático pressupõe a existência de um 'livre mercado de ideias', apto a influenciar, efetivamente, a condução de políticas públicas. A noção de autogoverno popular se baseia num processo dialético, de troca de impressões e confronto de visões, informado pelo pluralismo e pela isonomia, em que os cidadãos possam se influenciar reciprocamente. Nesse sistema, os indivíduos devem ter acesso às diversas manifestações de pensamento que circulam no meio político" [8].

A visão utilitarista da liberdade de expressão enxerga seu exercício como algo produtivo para a sociedade (adotando-se o modelo de liberdade de manifestação, é mais provável que se alcance a verdade ou que os erros sejam corrigidos), motivo pelo qual assumem especial proteção constitucional a liberdade dos veículos de comunicação e o direito à informação.

Sob tal aspecto, é curiosa a especial preocupação do denunciante com a opinião da atleta, porque ela a exprime "na presença da mídia", o que, ao seu sentir, caracterizaria (ou agravaria) o suposto ilícito (de emitir sua opinião sobre uma figura pública).

A imprensa, contudo, age consoante proteção constitucional de sua liberdade, sendo-lhe vedado censurá-la (artigo 5º, IV, IX e XIV, bem como artigo 220, §§ 1º e 2º da Constituição), o que restou reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, ao declarar não recepcionada a Lei de Imprensa, por ocasião do julgamento da ADPF 130 [9]. Não faria sentido, portanto, conferir-lhe liberdade de atuação para relatar manifestações de pessoas sujeitas ao controle estatal de seu discurso.

A Suprema Corte reconheceu, portanto, que a liberdade de expressão (em sentido amplo) contempla uma posição preferencial em relação aos demais direitos, sendo excepcional seu afastamento, o que deve ser devidamente justificado.

Há, no âmbito de eventual colisão de direitos fundamentais, reconhecimento de limites à liberdade de expressão em situações específicas, como a do discurso de incitação ao ódio, pornografia e financiamento de campanhas eleitorais, porque tais casos "(…) esgarçam, na verdade rompem, o consenso liberal porque os contravalores oferecidos pelo Estado têm incomum e imperativa qualidade" [10].

No entanto, os contravalores devem ser demonstrados por dados objetivos e não, paradoxalmente, por outra opinião pessoal, ainda que revestida de suposta imparcialidade e institucionalidade.

Em concreto, a denúncia exprime uma preocupação financeira, na medida em que os patrocinadores poderiam discordar das palavras da atleta, o que parece rebaixar um direito de elevado status constitucional a questões apenas mercadológicas e, o que é pior, sem qualquer fundamentação empírica sobre a causa e efeito que supõe que haverá (ou haveria), caso a atleta não seja condenada.

O esporte já demonstrou ser historicamente um instrumento catalisador de discussões políticas, sem prejuízo da competição em si. As suas dimensões política e social convivem e dão cores ao seu caráter competitivo, a exemplo da origem dos Jogos Olímpicos da era moderna. O esporte é uma manifestação cultural e a proteção constitucional a que faz jus não se mede pelas cifras que movimenta, mas por seus ideais de valorização humana.

Uma opinião se confronta com outra opinião, mais bem fundamentada, baseada em dados, pesquisa, estudos. Não se confronta com a punição pela sua própria expressão.

 


[2] Confederação Brasileira de Voleibol.

[7] KOATZ, Rafael Lorenzo-Fernandez. As liberdades de expressão e de imprensa na Jurisprudência do STF. In Direitos fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica/ Daniel Sarmento, Ingo Wolfgang Sarlet, coordenadores — Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.391-448

[8] Idem. p. 395

[9] http://redir.stf.jus.br/ Acesso em 14/10/2020

[10] FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão: estado regulação e diversidade na esfera pública. Tradução e prefácio de Gustavo Binebojm e Caio Mario da Silva Pereira Neto — Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.37

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!