Opinião

Os 'tiros no pé' da criação do novo Estatuto da Pessoa com Deficiência

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21 de outubro de 2020, 19h40

Com a Convenção Internacional Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, assinada em Nova York, em 30 de março de 2007, surge um conceito mais contemporâneo para caracterizar a pessoa com deficiência:

"Artigo 1º — (…) Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas".

Por causa do Tratado de Nova York, foi criado em âmbito nacional a Lei 13.146/2015, que busca efetivar a inclusão social da pessoa com deficiência, pautando-se no princípio da isonomia e no princípio da máxima dignidade da pessoa humana, que tem como metas a proteção física e psíquica, bem como ao patrimônio mínimo.

Essa lei, no seu artigo 3º, traz as quatro hipóteses de deficiência, quais sejam: a física, a mental, a intelectual e, por fim, a sensorial.

Conforme o Decreto nº 5.296/2004, em seu artigo 5º, §1º, I, "a", tem-se que a deficiência física é a:

"Alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções" [1].

Já a deficiência sensorial, compreendida pelas deficiências auditiva e visual, está presente nas alíneas "b" e "c" do referido decreto.

No que tange a essas duas modalidades de deficiência, não há de se duvidar de que tais pessoas são dotadas de plena capacidade civil e que a supressão desse direito civil caracterizaria grave discriminação, o que, naturalmente, não se aplica às pessoas com deficiência mental ou intelectual.

Para melhor compreender a necessidade de dar-se tratamento diferenciado para as pessoas acometidas de deficiências físicas ou sensoriais, é preciso entender como estas se caracterizam e se diferenciam.

As pessoas com deficiências mentais são aquelas que sofrem de doenças psiquiátricas, transtornos e distúrbios específicos que são capazes de produzir danos na performance global do individuo, causando impactos em sua vida social, ocupacional, familiar e pessoal, alterando suas percepções, sensações e sentidos. De acordo com a American Association on Mental Retardation temos que a deficiência mental é a "incapacidade caracterizada por limitações significativas no funcionamento intelectual e no comportamento adaptativo e está expresso nas habilidades práticas, sociais e conceituais, originando-se antes dos dezoito anos de idade" [2].

Já as pessoas com deficiência intelectual são aquelas que possuem limitações no desenvolvimento cognitivo e nas questões adaptativas. Assim, é fundamentada no déficit de inteligência, no qual pessoas apresentam QI com resultados entre 70 e 75 [3].

Evidenciados os conceitos sobre as deficiências intelectual e mental, resta claro que, para proteger os direitos dessa classe da população, é necessário que haja cobertura legal apropriada que garanta um tratamento digno para estas pessoas. Conforme preceitua o princípio da isonomia, em seu âmbito material, "há que tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais".

Todavia, o novo tratamento dado às pessoas com deficiência pela Lei nº 13.146/2015, que possibilita aos deficientes o exercício de sua capacidade civil plena, configura um verdadeiro "tiro no pé" para muitos deficientes.

Há que se destacar que pensadores como Tartuce veem a criação dessa lei como uma verdadeira alforria ao possibilitar liberdade às pessoas com deficiência. Contudo, doutrinadores como Simão destacam que, no caso das pessoas com deficiência do tipo intelectual e mental, há certa vulnerabilidade e, portanto, faz-se indispensável proteção legal mais apropriada.

Com efeito, o artigo 6º da Lei 13.146/2015 preceitua:

"Artigo 6º — A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: 1) casar-se e constituir união estável; 2) exercer direitos sexuais e reprodutivos; 3) exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; 4) conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; 5) exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e 6) exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas" [4].

Pode-se notar, que, nesse artigo, não há qualquer ressalva às pessoas com deficiência mental e intelectual. Inclusive, o artigo 84 da mesma lei reitera, em seu caput, a capacidade plena da pessoa com deficiência ao afirmar que "a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas".

Entretanto, com isso, surgem diversas incompatibilidades dentro da própria lei e, seguindo o critério da temporalidade, também a perda de diversas normas protetivas das pessoas com deficiência presentes no Código Civil de 2002.

Um dos problemas gerados pela Lei 13.146/2015 foi a criação de um instituto antagônico, qual seja, a possibilidade de curatela de pessoas capazes, no longínquo parágrafo 1º do artigo 84, que cria uma verdadeira confusão normativa, uma vez que a lei não estabelece exceção para a capacidade civil em nenhum dos tipos de deficiência que apresenta.

No que diz respeito ao Código Civil de 2002, temos que a aplicação literal do artigo 6º da Lei 13.146/2015 provocará a ineficácia dos artigos 166, I; 171, I; 198, I; 208; 543; 928, todos do CC/2002 [5].

Há que se pontuar que essa lei é indispensável, pois confere maior liberdade a muitas pessoas com deficiência. Entretanto, a norma peca ao não prever exceções, especialmente no tocante às pessoas com deficiência intelectual e mental, que necessitam de uma proteção maior da lei em função da vulnerabilidade mental que caracteriza essas formas de deficiência.

Assim, considerar as pessoas acometidas por deficiência mental ou intelectual como detentoras de capacidade civil plena com fulcro apenas no dispositivo normativo em comento, sem sequer prévia avaliação médica, poderá vir a ocasionar verdadeiras injustiças àqueles a que se buscava proteger.

 

[1] BRASIL. Decreto Nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004. Disponível em: TTP://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5296.htm Acesso em: 30 de agosto de 2020.

[2] AAMR [American Association on Mental Retardation]. LUCKASSON, R. et al. Mental Retardation — definition, classification, and systems of support. Washington, DC, 2002, p. 20.

[3] DIAMENT, Aron. Aprendizagem e deficiência mental. In: ROTTA, Newra Tellecheal, 2006, p. 417.

[4] BRASIL. Lei Nº 13.146 de 6 de julho de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 30 de agosto de 2020.

[5] BRASIL. Lei Nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002 — Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.ht. Acesso em: 30 de agosto de 2020.

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