Escritos de mulher

Injúria racial e a institucionalização do racismo no sistema de Justiça

Autores

  • Juliana Souza

    é advogada ativista antirracista pós graduada em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (IBCCRIM/Universidade de Coimbra); mestranda do Diversitas/USP e pesquisadora do NAPPLAC da FAU/USP; vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB/SP.

  • Silvia Souza

    é advogada conselheira federal pela OAB-SP e presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB.

21 de outubro de 2020, 9h25

Spacca
"O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir"
Djamila Ribeiro

O racismo é elemento estrutural e estruturante da sociedade brasileira e há séculos relega a população negra às piores posições nos indicadores socioeconômicos. Segundo o jurista Sílvio de Almeida1 "…o racismo é sempre estrutural, … ele é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade". Almeida afirma que é uma tecnologia de manutenção de poder e fornece as bases e o sentido lógico para as diversas configurações das desigualdades e violências sociais.

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DivulgaçãoSilvia Souza, advogada e assessora jurídica/legislativa na Câmara do DF

Na legislação brasileira, o racismo foi tipificado como crime através da chamada “Lei Caó”, n. 7.716 de 5 de janeiro de 19892, entre os crimes resultantes de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional também estão previstas as seguintes condutas: impedir ou obstar o acesso de pessoa devidamente habilitada a exercer cargos na Administração Pública direta ou indireta; negar ou obstar emprego em empresa privada; recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial; recusar ou impedir ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau.

Na Constituição Federal de 1988, através do inciso XLII do artigo 5º a prática de racismo tornou-se crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, promulgada um ano antes da edição da lei, importa lembrar que essa conquista foi fruto da luta de deputados(as) negros(as) que fizeram parte da Assembléia Constituinte como Carlos Alberto Caó, Benedita da Silva, Paulo Paim entre outros.

Já o crime de injúria racial surge no ano de 2003 através da lei n. 10.741/2003 que alterou o Código Penal para inserir o parágrafo 3º, no art. 140 com a seguinte tipificação “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.” com pena de reclusão de um a três anos.

No entanto, para se fazer uma análise crítica sobre as decisões emanadas pelo judiciário brasileiro sobre os crimes de racismo e injúria racial no Brasil importa, primeiro, trazer à baila os conceitos teóricos que geralmente norteiam os magistrados em suas decisões dentro das teorias das discriminação, quais sejam, discriminação direta e discriminação indireta.

Segundo o jurista Adilson José Moreira, entende-se por discriminação direta aquela que implica em violação do príncipio do dever de tratamento simétrico entre indivíduos, envolvendo, geralmente, tratamento desvantajoso de grupos que possuem caracteristicas que são socialmente salientes, frequentemente categorizados como minorias raciais e sexuais, culturalmente construídos como pessoas de menos valor. Possui também caráter interpessoal, implicando em tratamento favoravel ou desfavoravel de uma pessoa em relação a outra, baseado em estereótipos sociais de membros de determinado grupos. O conceito pressupõe que as pessoas são discriminadas a partir de um único vetor e requer a intenção deliberada de discriminar.3

Enquanto que por dicriminação indireta, Adilson J. Moreira, define:

…a exclusão pode ocorrer mesmo na ausência objetiva da intenção de discriminar um indivíduos e também em situações nas quais não há a utilização de formas de diferenciação legalmente vedadas. Uma norma jurídica, política pública ou decisão institucional podem obedecer ao princípio da generalidade, não sendo dirigidas a nenhum grupo específico. Porém, sua aplicação pode ter efeito desproporcional sobre uma determinada classe de indivíduos, o que carateriza a discriminação indireta.”4

Igualmente a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância5, conceitua no Art. 1. Item 2: “Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos.”

Segundo CNJ6 em matéria publicada em seu portal online, as diferenças entre racismo e injúria racial estão situadas nos seguintes moldes “…enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça.”

Logo, para o sistema de justiça o crime de injúria está associado ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima, isto é, o emprego de expressões como “macaco(a)” a título de xingamento ofensivo dirigido a uma pessoa negra. Observa-se que aqui a interpretação comumente aplicada está na chave da discriminação indireta acompanhada pela intencionalidade dolosa do ofensor.

Já o crime de racismo, ainda segundo CNJ7, caracteriza-se de forma mais ampla, vez que a conduta discriminatória deve ser dirigida a um determinado grupo ou coletividade, a título exemplificativo, cita-se o caso do Habeas Corpus 82.4248, impetrado em favor de Siegfried Ellwanger, escritor e editor que fora condenado em instância recursal pelo crime de anti-semitismo e por publicar, vender e distribuir material anti-semita contra a comunidade judaica, afirmando, por exemplo, que o holocausto não teria existido. O caso teve início em 1986 e se estendeu por 18 anos até que o Supremo manteve a condenação por considerar que o crime de racismo imprescritível.

Vale ressaltar ainda que no crime de racismo a titularidade da ação penal é do Ministério Público. Além disso, diferentemente da injúria, o racismo é crime inafiançável.

Nos parece que a tipificação do crime de injúria surge no ordenamento jurídico brasileiro como um “tratamento paliativo” ao racismo, pois em verdade se presta a dissimular a ofensa racial com bases na pessoa do ofendido, se for contra um indivíduo trataria-se de injúria e se for contra a coletividade, então é racismo.

Ora! Não seria o agente em qualquer uma das circunstância racista?

A discussão acerca da aplicação do tipo penal injúria racial ou racismo é complexa e revela divergentes interpretações.

Embora os dados recentemente publicados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública 9 demonstrem uma crescente no número de registros de denúncias de racismo e injúria racial, notadamente em razão do letramento racial fruto das lutas seculares dos movimentos negros, a valoração subjetiva sobre qual aplicação do tipo ainda caberá ao julgador – que deve ser imparcial, agir com isonomia, garantindo o contraditório e a ampla defesa e os demais princípios processuais.

Nada obstante, o Perfil Sociodemográfico dos Magistrados Brasileiros de 201810 realizado pelo Conselho Nacional de Justiça aponta que o Poder Judiciário é majoritariamente branco (80,34%), predominantemente masculino (62%) e advindo das regiões sul e sudeste (64%). Ademais, se analisados os parâmetros étnicos-raciais dos magistrados verificaremos que 80,34% se autodeclararam branco, 18,09% negros, sendo que destes, apenas 1,56% são pretos. Já os indígenas correspondem a menos de 0,1% da classe. Caminha no mesmo sentido a pesquisa11 da intelectual Dina Alves, que indica a população carcerária é massivamente composto por pessoas negras (64%), julgadas por juízes branco.

Contudo, constata-se da análise dos julgados e das pesquisas que quando a vítima é negra as sofisticações das entranhas racializadas de nosso Sistema de Justiça operam para que haja ou prescrição (em razão da morosidade entre o oferecimento da denúncia e a decisão de primeira instância) ou desclassificação (decorrente da interpretação subjetiva do julgador nos casos antes classificados como racismo que passem a ser interpretados como injúria racial).

Há, portanto, que se rever em que bases se fundam nosso Poder Judiciário e as decisões que dele emanam.


1 ALMEIDA, Silvio; O que é racismo estrutural?; São Paulo, 2018, Ed. Letramento, p.15-19

2 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7716.htm Acessado em 20.102020

3 MOREIRA. Adilson J. O que é discriminação?; Belo Horizonte-MG: Ed. Letramento, 2017, p. 98-102

4 Idem 3, p.102

5 Disponível em: https://www.oas.org/en/sla/dil/docs/inter_american_treaties_A-68_Convencao_Interamericana_racismo_POR.pdf Acessado em 20.10.2020

6 Disponível em: https://cnj.jusbrasil.com.br/noticias/195819339/conheca-a-diferenca-entre-racismo-e-injuria-racial Acessado em: 20.10.2020

7 Idem 6

8 Disponível em: http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfJurisprudencia_pt_br&idConteudo=185077&modo=cms Acessado em 20.10.2020

9 https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-final.pdf

10 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/5d6083ecf7b311a56eb12a6d9b79c625.pdf

11 https://tede2.pucsp.br/handle/handle/3640

Autores

  • é advogada, ativista antirracista, pós graduada em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (IBCCRIM/Universidade de Coimbra); mestranda do Diversitas/USP e pesquisadora do NAPPLAC da FAU/USP; vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB/SP.

  • é advogada especialista em Direito e Processo do Trabalho e pós-graduada em Direitos Humanos, Diversidades e Violências pela UFABC; assessora jurídica/legislativa na Câmara Legislativa do Distrito Federal e coordenadora adjunta do Departamento de Assuntos Antidiscriminatórios do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); especialista em advocacy no Congresso Nacional.

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