Opinião

Advocacia criminal e a arte da negociação

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21 de outubro de 2020, 8h05

Hodiernamente, viceja processo de expansão do modelo negocial de Justiça criminal no Brasil.

Spacca
Regulamentando o artigo 98, I, do texto magno, a Lei nº 9.099/95 introduziu os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo para as infrações penais de menor e médio potencial ofensivo, respectivamente.

Após a Medida Provisória nº 2.055/00, acrescentou à Lei nº 8.884/94 o acordo de leniência no âmbito de infrações administrativas e penais à Ordem Econômica. Hoje tal instituto está regulamentado pelos artigos 86 e seguintes da Lei nº 12.529/11.

O instituto da colaboração premiada, embora nominado por diversos dispositivos legais esparsos (v.g. artigos 7º e 8º, parágrafo único, da Lei nº 8.072/90; artigo 1º, §5º, da Lei nº 9.613/98; artigos 13 e 14 da Lei nº 9.807/99 etc.), só veio a ter seu procedimento probatório regulado pela Lei nº 12.850/13.

Nesse mesmo ano, os artigos 16 e seguintes da Lei nº 12.846/13 disciplinaram o acordo de leniência para ilícitos administrativos e civis contra a Administração Pública.

Recentemente, a Lei nº 13.964/19 introduziu o acordo de não persecução penal no artigo 28-A do Código de Processo Penal.

Também são encontrados mecanismos dessa natureza nos dois principais projetos de codificações penais: a barganha do artigo 105 do Projeto de Lei do Senado nº 236/12 e o procedimento sumário dos artigos 297 e seguintes do Substitutivo ao Projeto de Lei nº 8.045/10.

Tal ampliação do modelo negocial de Justiça criminal provavelmente decorre da expansão do Direito Penal, por sua vez resultante de fenômenos característicos da pós-modernidade: globalização econômica e integração supranacional [1].

Uma das principais consequências dessa expansão é o aumento quantitativo de casos submetidos aos sistemas de administração da Justiça criminal, havendo insuficiência de recursos humanos e materiais para solucionar esses casos em prazo razoável. Tal conjuntura gera grande pressão política para a adoção de mecanismos aptos a desafogar esses sistemas, notadamente os princípios da oportunidade e disponibilidade da ação penal condenatória e ritos sumários/simplificados.

Nessa toada, soa a Recomendação nº R(87)18, do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, que cuida da simplificação da Justiça criminal. O item III.a.7 desse documento recomenda a adoção de mecanismos de aplicação consensual da pena, desde que eles sejam compatíveis com "as tradições constitucionais e legais" de cada Estado-membro.

Já o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ao julgar o caso "Natsvlishvili e Togonidze vs. Geórgia", em 2014, entendeu que mecanismos de aplicação consensual da pena, baseados em confissão de culpa (plea bargaining) ou renúncia ao direito de contestar a acusação (nolo contendere), constituem um "traço comum dos sistemas europeus de administração da Justiça criminal", não havendo "nada de impróprio" neles (§90) [2].

Assim, a expansão contemporânea do modelo negocial de Justiça criminal no Brasil é indiscutível, quiçá inexorável.

Do ponto de vista acadêmico, tal expansão deve ser vista com reservas, pois os mecanismos negociais de aplicação da pena: 1) não fazem parte da tradição cultural e sistêmica do processo penal brasileiro, baseada nos princípios da obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal condenatória etc.; 2) hipertrofiam os poderes do acusador no sistema de administração da Justiça criminal; e 3) implicam consideráveis restrições a diversas garantias processuais penais do acusado [3].

Logo, a estratégia de resistência democrática deve estar baseada em política de redução de danos, consistente no aperfeiçoamento do atual marco deontológico e normativo dos mecanismos negociais de aplicação da pena, de sorte a minimizar riscos de abusos e excessos do poder punitivo [4].

Por limitações de espaço e tempo, nosso objetivo é apresentar modesta proposta de estratégias para o defensor atuar nesse novo modelo negocial de Justiça criminal, com base em adaptação à realidade nacional da doutrina norte-americana [5].

1) Conheça o cliente: faça, com a maior brevidade possível, entrevista reservada com o cliente, para conhecer detalhadamente seu perfil social e profissional, objetivos e versão sobre os fatos naturalísticos imputados. Clientes podem ter objetivos prioritários diversos no contexto da negociação. Por exemplo: 1) não cumprir pena corporal; 2) não pagar quantia elevada a título de multa; 3) preservar o emprego, a empresa ou o patrimônio; 4) manter a guarda compartilhada dos filhos; 5) evitar a expulsão do país; 6) evitar a publicidade negativa etc. Assim, tais informações são imprescindíveis para nortear a estratégia defensiva de negociação das cláusulas e condições do acordo;

2 ) Conheça o caso penal: acesse e estude, com a maior brevidade possível, a íntegra dos autos da investigação preliminar. Sem conhecer bem os pontos fortes e fracos da teoria do caso do acusador, o defensor não tem como fazer prognóstico informado e realista de êxito durante eventual julgamento, nem avaliar se as cláusulas e condições da proposta são aceitáveis etc.;

3) Faça investigação defensiva: não raro a narrativa construída pelo acusador é errônea, reducionista ou artificialmente inflada, para servir como moeda de troca durante a negociação (overcharging). Cabe ao defensor envidar esforços para exaurir todos os meios de investigação dos fatos naturalísticos imputados, caso possível com o auxílio de assistente técnico (artigo 159, §3º, do Código de Processo Penal) ou investigador particular (Lei nº 13.432/17). Se essa investigação revelar que a teoria do caso do acusador é fraca, o acordo é contraindicado. Por outro flanco, se a teoria do caso da acusação é forte, tem suporte probatório lícito e robusto, e inexistem causas legais justificantes ou exculpantes, defesas processuais etc., a negociação é recomendável. Nessa hipótese, a investigação defensiva proporciona maior domínio sobre as questões factuais e jurídicas relevantes do caso penal. Nada é mais danoso à credibilidade do defensor do que fazer, durante a negociação, afirmações inverídicas;

4) Conheça o Direito: estude não só a regulamentação legal do mecanismo negocial aplicável ao caso concreto e a jurisprudência a respeito dele, mas também atos normativos relevantes, tais como o código de ética e de conduta do Ministério Público da União (Portaria nº 98/17 da Procuradoria-Geral da República), as diretrizes sobre procedimentos a serem observados no tocante à cadeia de custódia de vestígios (Portaria nº 82/14 da Secretaria Nacional de Segurança Pública) etc. Fatores que enfraquecem a teoria do caso do acusador (v.g. ilicitude da principal prova incriminadora, em razão da quebra da cadeia de custódia da prova) podem ser usados como estratégia competitiva durante a negociação;

5) Conheça o acusador: há fatores heterogêneos que toram cada negociação única: a estratégia negocial preferida do acusador, a força da sua teoria do caso, as personalidades do acusador e defensor, a relação entre eles, a gravidade e natureza do crime, os antecedentes criminais do acusado, a pressão exercida pela vítima ou mídia sobre o acusador etc. Assim, quanto mais informações você tiver sobre o perfil, estratégia favorita, histórico de atuação em negociações passadas e objetivos prioritários do acusador, melhores condições você terá de fazer escolhas estratégicas e táticas informadas;

6) Seja ágil: o provérbio popular "quem chega cedo, bebe água limpa" em regra também se aplica à Justiça negocial. A tendência é que, quanto mais embrionário for o estágio da investigação preliminar, mais favoráveis ao acusado serão as cláusulas e condições do acordo (e vice-versa). No acordo de leniência, ser o primeiro defensor a procurar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) é uma exigência legal para a própria viabilidade do acordo (artigo 86, §1º, I, da Lei nº 12.259/11);

7) Seja confiante: jamais deixe transparecer receio de eventual julgamento. Se o defensor for visto como um profissional que sempre orienta seu cliente a fazer acordo, dificilmente ele receberá do acusador propostas vantajosas. Melhor ser visto como um profissional capaz de exercer defesa técnica de excelência em juízo, e com histórico de vitórias processuais;

8) Seja ético: jamais faça acordo de aplicação da pena por conveniência pessoal (v.g. economia de tempo, receio de participar de megaprocesso, carga excessiva de casos etc.). A opção pela via negocial deve levar em conta exclusivamente o melhor interesse do cliente, e não interesses de terceiros, interesse do defensor em cultivar boas relações com servidores públicos etc. A aceitação de proposta de aplicação da pena é a mais importante decisão tática a ser tomada, devendo ser objeto de cuidadosa reflexão conjunta do acusado e seu defensor. Para tanto, o cliente deve ser informado sobre os fatos naturalísticos imputados, as provas incriminadoras, o prognóstico de êxito durante eventual julgamento e as consequências jurídicas (penais, administrativas, civis, migratórias etc.) e extrajurídicas (empresariais, familiares, pessoais, profissionais etc.) do acordo. Jamais minta durante as negociações, malgrado por vezes seja recomendável a omissão estratégica de certas informações, ou contraprovas defensivas. Cumpra o dever ético de manter o sigilo sobre o acordo;

9) Negocie: o seu papel não é limitado a transmitir a proposta de acordo ao cliente, e reportar a decisão do cliente ao acusador. Ao contrário, você deve buscar o acordo mais vantajoso possível para o acusado. Caso possível, tome a iniciativa de fazer proposta de acordo, pela vantagem proporcionada pela heurística da ancoragem. Caso não seja possível, faça contraproposta ao acusador. Tal contraproposta deve ser a mais benéfica possível ao cliente, desde que racionalmente defensável. Para tanto, devem ser apresentados todos os argumentos fáticos e jurídicos capazes de humanizar o cliente, mitigar sua responsabilidade penal ou reduzir as chances de êxito processual do acusador (v.g. ilicitudes probatórias, testemunhos contraditáveis, contraditórios, não corroborados etc.). Em regra, seja cordial e cooperativo no trato interpessoal com o acusador. Porém, dependendo da dinâmica da negociação pode ser necessária postura mais assertiva e competitiva, sem demonstrar qualquer sinal de ansiedade, fraqueza ou medo de ir a julgamento [6];

10) Blinde o cliente: proponha cláusulas e condições que reduzam o risco de o cliente ser alvo de coações estatais, decorrentes do próprio acordo. Por exemplo: é possível incluir cláusula proibindo o compartilhamento de elementos informativos apresentados pelo acusado com a Administração Fazendária, ou outros órgãos de execução do Ministério Público (o que pode mitigar os riscos de autuação fiscal bem sucedida, responsabilização por ato de improbidade administrativa) etc.

Apesar da expansão contemporânea do modelo negocial de Justiça criminal, a teoria e prática da negociação não integram a matriz curricular de formação dos bacharéis em Direito, nem os cursos de formação e capacitação de advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, os quais ainda são focados em habilidades relacionadas à prática jurídica contenciosa.

Nada obstante, a formação profissional dos operadores jurídicos deve incorporar tópicos importantes para a atuação bem sucedida na Justiça negocial, tais como: 1) as estratégias competitiva, cooperativa e integrativa; 2) as habilidades comunicativas; 3) a zona de barganha (bargaining zone); 4) a best alternative to a negotiated agreement (BATNA); e 5) as técnicas de preparação para a negociação etc [7].

A defesa técnica do acusado deve ser efetiva no contexto de acordos de aplicação da pena, como já assentou a Suprema Corte norte-americana nos casos Padilla v. Kentucky [8], Missouri v. Frye [9] e Lafler v. Cooper [10].

Essa efetividade deve permear as três fases do procedimento negocial: preparação, negociação e aconselhamento do cliente sobre a aceitação da proposta de acordo [11].

A negociação hábil não é uma ciência, e, sim, uma arte aperfeiçoada ao longo de anos a fio de prática profissional zelosa. Nosso objetivo foi dúplice: louvar essa importante habilidade profissional, e ressaltar a importância de alto padrão de qualidade da negociação para dignificar a advocacia.

 


[1] SILVA SÁNCHEZ, Jesús María. La expansión del derecho penal: Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Montevideo: B de f, 2008.

[2] TEDH, caso Natsvlishvili e Togonidze vs. Geórgia, sentença de 29 de abril de 2014. Sobre esse caso, ver: BACHMAIER, Lorena. The European Court of Human Rights on negotiated justice and coercion, In: European Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice, n. 26, pp. 236-259, 2018.

[3] Na perspectiva crítica, ver: ALSCHULER, Albert. Implementing the criminal defendant’s right to trial: Alternatives to the plea bargaining system, In: University of Chicago Law Review, Chicago, n. 50, pp. 931-1.050, 1983; LANGBEIN, John. Torture and plea bargaining, In: University of Chicago Law Review, Chicago, n. 46, p. 03-22, 1978-1979; PRADO, Geraldo. Elementos para uma análise crítica da transação penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003; REALE JÚNIOR, Miguel. Pena sem processo, In: PITOMBO, Antônio Sérgio de Moraes (Org.). Juizados especiais criminais: Interpretação e crítica, pp. 25-31. São Paulo: Malheiros, 1997; VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e Justiça criminal negocial. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2015.

[4] MALAN, Diogo. Aplicação consensual da pena, In: MIRZA, Flávio (Org.). Direito processual, pp. 331-343. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015.

[5] GLANZER, Seymour; TASKIER, Paul. The fine art of plea bargaining for both the experienced and neophyte criminal lawyer, In: Criminal Justice, n. 02, pp. 07-44, 1987; JOHNSON, Vida. Effective assistance of counsel and guilty pleas: Seven rules to follow, In: Champion, nov. 2013; UPHOFF, Rodney. The criminal defense lawyer as effective negotiator: A systemic approach, In: Clinical Law Review, n. 02, pp. 76-135, 1995.

[6] Há três diferentes estratégias negociais: competitiva, cooperativa e integrativa. Em apertada síntese, a primeira consiste em convencer o adversário de que sua teoria do caso é mais fraca do que ele imaginou, forçando-o a celebrar acordo favorável ao negociador. Já a segunda recomenda que o negociador faça concessões, para incutir confiança no adversário e encorajá-lo à reciprocidade. Por fim, a derradeira implica buscar denominador comum, que satisfaça os interesses das partes. Donald Gifford recomenda que a estratégia ótima para o defensor, no contexto da plea bargaining, é a cooperativa, integrada com o emprego precoce de táticas competitivas, e soluções integrativas quando factíveis (GIFFORD, Donald. A context-based theory of strategy selection in legal negotiation, In: Ohio State Law Journal, v. 46, n. 01, pp. 41-94, 1985).    

[7] ROBERTS, Jenny; WRIGHT, Ronald. Training for bargaining, In: William & Mary Law Review, v. 57, n. 04, pp. 1.445-1.504, 2016.

[8] 559 US 356 (2010).

[9] 566 US _ (2012).

[10] 566 US _ (2012).

[11] ALKON, Cynthia. Plea bargain negotiations: Defining competence after Lafler and Frye, In: American Criminal Law Review, v. 53, n. 02, pp. 377-407, 2016.

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