Opinião

A responsabilidade civil do influenciador digital pela sua comunidade

Autor

  • José Eduardo Figueiredo de Andrade Martins

    é advogado professor dos cursos de graduação e pós graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo doutor e mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e pós-doutorando pelo Ius Gentium Conimbrigae da Universidade de Coimbra.

20 de outubro de 2020, 21h29

Fenômeno relativamente recente da era digital é o intenso surgimento daqueles denominados influenciadores digitais (digital influencers). Trata-se daquele que desenvolve um perfil em plataformas digitais, prioritariamente redes sociais, para produzir conteúdo sobre determinados temas, influenciando no seu modo de vida, consumo de produtos e serviços, opiniões, entre outros aspectos do cotidiano. Como remuneração, esses influenciadores digitais auferem ganhos através de acessos, inscrições, likes, visualizações, patrocínios etc.

Não há influência se não há público. Logo, é de suma importância para o crescimento de sua atividade que o influenciador digital crie uma comunidade, composta por aqueles que acompanham e apoiam o conteúdo desenvolvido. A denominação muda conforme a plataforma digital: seguidores, inscritos, fãs, apoiadores, pessoas que curtiram, dentre outras. É a comunidade que consumirá o conteúdo produzido e ajudará na expansão e relevância do influenciador digital, chegando ao ponto de criar uma forma de cultura própria, com jargões, memes e comportamentos que atiçam a curiosidade dos que estão por fora. Consequentemente, com a necessidade de pertencimento criada pela nova tendência, o influenciador digital expande seu público, a sua relevância e seus ganhos.

Ainda há bastante polêmica acerca da responsabilidade daqueles que se utilizam da sua imagem para a publicidade de um produto ou serviço. O Superior Tribunal de Justiça decidiu no REsp nº 1.157.228/RS que a "publicidade de palco" não atrai a corresponsabilidade da empresa de televisão nem do apresentador, que atua como garoto-propaganda, pela publicidade enganosa. Em 2011, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo não considerou Pelé, que atuou como garoto-propaganda, responsável pelos prejuízos sofridos por aqueles que aderiram a um consórcio acusado de inúmeros desvios de valores.

Diversamente, na doutrina [1] há quem defenda a responsabilidade da celebridade que aparece no informe publicitário danoso ao consumidor, tendo por base a cadeia de fornecimento existente, a responsabilidade civil objetiva na relação de consumo e o artigo 45 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária [2], formulado pelo Conar, que, embora não seja lei, nem tenha força de lei, é uma diretriz interessante para orientar a publicidade no Brasil. Recentemente, uma influenciadora digital foi condenada a restituir uma consumidora pelo valor pago a uma loja anunciada que não entregou o produto comprado [3].

Ainda que a perplexidade acerca da responsabilidade nessas situações persista, é preciso já avançar no tema e questionar se o influenciador digital tem responsabilidade sobre a sua comunidade. Em outras palavras, se atos danosos produzidos por membros dessa comunidade atraem a responsabilidade do próprio influenciador digital.

O problema ultrapassa as barreiras do mundo jurídico. Afinal, para grandes influenciadores digitais, com milhões de participantes em sua comunidade, parece uma tarefa impossível de administrar e controlar as atitudes de todos, ainda que sejam impostas previamente regras. Não há possibilidade de verificar tudo o que é produzido por todos em um ambiente digital, até porque isto poderia afetar o direito fundamental de liberdade, em variadas ramificações. Além disso, nem sequer o influenciador digital teria acesso a todos os meios digitais em que o membro da comunidade pode se portar de maneira prejudicial.

Todavia, não se pode negar que o "selo" de participante de uma comunidade pode potencializar um ataque, tornando-o, inclusive, organizado. O apoio da comunidade encoraja a prática delituosa, tendo em vista que pode ter o efeito de anonimizar os autores, o que dificulta qualquer meio de defesa da vítima contra o bullying virtual sofrido. Logo, o ataque somente ocorre porque há o estado de pertencimento a uma comunidade, o que pode fazer atrair para si a desqualificação conhecida nas plataformas digitais como "tóxica".

Nesse sentido, ainda que sejam comportamentos tidos como negativos, o influenciador digital ainda pode se aproveitar dessa toxicidade para ampliar seus ganhos, já que pode atrair ainda mais apoiadores desta conduta danosa. Ganha também em divulgação, pois a curiosidade sobre o ocorrido pode trazer mais visualizações para seu perfil na plataforma digital. Vira notícia e mais conteúdo a ser produzido. Mesmo a publicidade negativa, portanto, torna-se dinheiro.

Há, assim, um reprovável ganho em cima do prejuízo alheio que deve ser devidamente combatido. Só que isso não pode ser feito sem parâmetros claros, antecipadamente definidos para atrair ou exonerar o suposto agente de sua responsabilidade.

Parece que o caminho que deve ser seguido para definir a responsabilidade civil é o de incentivos pelo influenciador digital para o comportamento tóxico. A deliberada ou dissimulada ordem de ataque à vítima, a ausência de exigência ou reforço (enforcement) das regras da comunidade, a falta de punição dentro dos limites da plataforma digital (advertência, suspensão ou banimento, por exemplo) quando da nítida constatação de que há uma movimentação violadora dos direitos de terceiros, entre outras situações que tornem claro que houve uma ação ou omissão do influenciador digital que causou dano a outrem, nos estritos termos do artigo 186 do Código Civil.

Verifica-se nessas hipóteses, portanto, que é imprescindível que seja aferida a culpa do influenciador digital. Não se pode considerar que a criação de uma comunidade seja uma atividade de risco a fim de atrair a responsabilidade objetiva do artigo 927 do Código Civil. Tampouco parece existir previsão legal para tanto e nem ao menos se trata de relação de consumo.

O que pode ocorrer particularmente é o influenciador digital deter dados pessoais da vítima, fornecendo-os para a comunidade realizar os ataques. Não é o objeto desse estudo refletir sobre a polêmica, mas há tanto aqueles que defendem que os artigos 42 a 44 da LGPD tratam de responsabilidade civil subjetiva quanto aqueles que defendem ser objetiva [4]. O fato é que essa hipótese pode ser uma exceção à regra da responsabilidade subjetiva defendida alhures, se consolidada a ideia de os dispositivos da LGPD tratarem de responsabilidade objetiva.

A matéria é extremamente recente e ainda há muito a ser desenvolvido. Questões cruciais sobre a responsabilidade civil daqueles que se utilizam da própria imagem ainda trazem perplexidade na doutrina e jurisprudência e, além do mais, não contam com o novo fator da expansão das plataformas digitais como uma extensão da própria personalidade humana. É preciso avançar, com atenção às novidades que não aguardarão respostas do Direito para dar um passo além, como ocorre no relacionamento dos influenciadores digitais com a suas comunidades.

 


[1] Cf. GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. A publicidade ilícita e a responsabilidade civil das celebridades que dela participam. 2º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

[2] "Artigo 45 — A responsabilidade pela observância das normas de conduta estabelecidas neste código cabe ao anunciante e a sua agência, bem como ao veículo, ressalvadas no caso deste último as circunstâncias específicas que serão abordadas mais adiante, neste artigo:
a) o anunciante assumirá responsabilidade total por sua publicidade;
b) a agência deve ter o máximo cuidado na elaboração do anúncio, de modo a habilitar o cliente anunciante a cumprir sua responsabilidade, com ele respondendo solidariamente pela obediência aos preceitos deste código;
c) este código recomenda aos veículos que, como medida preventiva, estabeleçam um sistema de controle na recepção de anúncios.
Poderá o veículo:
c.1) recusar o anúncio, independentemente de decisão do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária — Conar, quando entender que o seu conteúdo fere, flagrantemente, princípios deste código, devendo, nesta hipótese, comunicar sua decisão ao Conselho Superior do Conar que, se for o caso, determinará a instauração de processo ético;
c.2) recusar anúncio que fira a sua linha editorial, jornalística ou de programação;
c.3) recusar anúncio sem identificação do patrocinador, salvo o caso de campanha que se enquadre no parágrafo único do artigo 9º ("
teaser");
c.4) recusar anúncio de polêmica ou denúncia sem expressa autorização de fonte conhecida que responda pela autoria da peça;
d) o controle na recepção de anúncios, preconizado na letra 'c' deste artigo, deverá adotar maiores precauções em relação à peça apresentada sem a intermediação de agência, que por ignorância ou má-fé do anunciante, poderá transgredir princípios deste código;
e) a responsabilidade do veículo será equiparada à do anunciante sempre que a veiculação do anúncio contrariar os termos de recomendação que lhe tenha sido comunicada oficialmente pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária — Conar"
.

[3] CONSULTOR JURÍDICO. Influenciadora digital responde por golpe dado por loja que indicou. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-ago-21/influenciadora-digital-responde-golpe-loja-indicou.

[4] A favor da responsabilidade civil subjetiva: GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz; MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Término do tratamento de dados. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, Editora RT: São Paulo, 2019, p. 231. Favorável à responsabilidade objetiva: MENDES, Laura Schertel; DONEDA, D. Comentário à nova Lei de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), o novo paradigma da proteção de dados no Brasil. Revista de Direito do Consumidor, v. 120, p. 555, 2018.

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