Opinião

O fenômeno da judicialização no Brasil

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20 de outubro de 2020, 12h31

Um fato conhecido por todos que, direta ou indiretamente, atuam com o Direito, ou seja, com a área jurídica, é o excessivo número de demandas judiciais no Brasil.

Pode-se afirmar que a judicialização no Brasil vem crescendo de maneira exponencial, impondo ao Poder Judiciário uma tarefa hercúlea. E uma indagação é pertinente: o Poder Judiciário tem condições de atender a essas demandas com qualidade e realmente trazer a resposta a elas de forma justa, com fulcro na premissa de que a Justiça é cega?

Relevante recordar que a Justiça é personificada pela deusa Têmis, por isso é representada de olhos vendados e com uma balança na mão, pois ela é a deusa da justiça, da lei e da ordem e, dessa forma, deve ser a protetora dos oprimidos.

Segundo Grimal [1], em uma visão mais moderna, ela "é representada sem as vendas, significando a Justiça Social, para qual o meio em que se insere o indivíduo é tido como agravante ou atenuante de suas responsabilidades. Os pratos iguais da balança de Têmis indicam que não há diferenças entre os homens quando se trata de julgar os erros e acertos… Ela carrega as tábuas da lei, que desempenham o papel de ordem, união, vida e princípios para a sociedade e para o indivíduo, e uma balança que equilibra o mundo segundo leis universais entre o caos e a ordem".

O relatório anual do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [2], publicado em agosto de 2020, intitulado "Justiça em Números 2020", traz informações sobre o fluxo processual no sistema de Justiça brasileiro do ano de 2019.

Nele é informado que o Poder Judiciário terminou o ano de 2019 com 77,1 milhões de processos em tramitação, que aguardavam solução definitiva. Mesmo que o número tenha representado, segundo consta no próprio relatório, uma redução no estoque em relação a 2018, é um número assustador, gigantesco, que não viabiliza a celeridade da resolução dos conflitos, pois com o número de juízes essa realidade exige deles um trabalho obstinado.

Os números levam ao seguinte resultado: em 2019, cada juiz proferiu 2017 sentenças, em média, o que leva ao extraordinário número de 8,4 casos solucionados por dia útil; se forem descontados férias e recessos, o número saltaria para, aproximadamente, 11,7 por dia, o que parece ser um contrassenso.

O citado relatório do CNJ trouxe também a informação de que o Poder Judiciário consumiu mais de R$ 100 bilhões em 2019. Apesar de o relatório afirmar que o Poder Judiciário arrecadou R$ 76,43 bilhões, neste número está incluída a arrecadação com impostos, taxas etc. decorrentes de ações judiciais. A arrecadação proveniente de custas judiciais foi de R$ 13,1 bilhões, parece que este deveria ser o número considerado como real arrecadação do Poder Judiciário.

Considerando-se a cifra bilionária despendida em 2019 com o Poder Judiciário chega-se à conclusão de que este poder custou, neste ano, para cada habitante brasileiro o montante de R$ 480, em número redondo, o que parece ser um valor exagerado para cada cidadão arcar, pois o faz por meio de recurso proveniente da arrecadação tributária. Isso ocorre porque as custas judiciais, no Brasil, em regra, são baixas e o Estado tem de arcar com esse ônus, ao invés do próprio cidadão que busca o Poder Judiciário.

O "Relatório Justiça em Números 2020" apresentou também os gargalos da Justiça brasileira, haja vista que a litigiosidade no Brasil [3] permanece alta e a cultura da conciliação, incentivada mediante política permanente do CNJ desde 2006, ainda apresenta lenta evolução.

Em 2019, apenas 12,5% de processos foram solucionados via conciliação. Em relação a 2018, houve aumento de apenas 6,3% no número de sentenças homologatórias de acordos, em que pese o novo Código de Processo Civil, em vigor desde 2016, ter tornado obrigatória a realização de audiência prévia de conciliação e mediação.

Esses números chamam bastante a atenção, principalmente se comparados com a realidade em países considerados evoluídos. No I Congresso Digital Covid-19: Repercussões Jurídicas e Sociais da Pandemia, promovido pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) um dos painéis foi "O Papel do Advogado na Mediação e Conciliação em Tempos de Pandemia", que teve, entre outros palestrantes, o ministro Marco Aurélio Buzzi, do STJ, grande incentivador dos processos conciliatórios; o professor Kazuo Watanabe, que talvez tenha sido a grande figura brasileira no estímulo à solução amigável nos conflitos; e a advogada brasileira Ana Carolina Riella, que reside em Boston e é membro do Case Manager da Harvard Negotiation and Mediation Clinical Program.

Em sua apresentação, a advogada Ana Riella falou da importância de se buscar a resolução de conflitos por meio do consenso, evitando os meios adversariais. A ilustre palestrante ressaltou que, nos Estados Unidos, o número de casos provenientes de disputas que chegam ao Poder Judiciário é somente de 3%, ou seja, quase a relação inversa do Brasil, e uma das razões, não é a única e talvez não seja a principal, é o custo do processo judicial naquele país.

Outra relevante informação em relação ao Superior Tribunal de Justiça é a de que no 1º semestre de 2019, naquele tribunal superior, que possui 33 ministros, foram proferidas 253 mil decisões [4] em 99 dias úteis. É sabido que muitas decisões são elaboradas pelos assessores, por serem meramente denegando o seguimento do recurso por alguma razão processual ou por haver jurisprudência do tribunal em sentido diverso. Contudo, se for considerado os números médios, apresentados pelo professor doutor Asdrubal Júnior [5], ainda que possa ser considerada uma inferência, demonstra, por si só, a necessidade de se buscar alternativas para diminuir o volume de judicialização de disputas no Brasil.

Deve ser salientado que, nos últimos anos, ocorreram alterações no ordenamento jurídico brasileiro com o objetivo de estimular a utilização de outros caminhos para o enfrentamento de problemas e a resolução de divergências.

As inovações introduzidas oferecem aos cidadãos a possibilidade de chamar para si a responsabilidade de fazer escolhas que definam o método, o caminho, os critérios, o tempo e as pessoas que os auxiliarão no encaminhamento e na solução das controvérsias.

Exemplos como o da Lei de Arbitragem e sua recente reforma, do Novo Código de Processo Civil de 2015, da Lei de Mediação, da reforma trabalhista e do atual Código de Ética dos Advogados, entre diversas outras normas, abrem a oportunidade e oferecem um elemento comum, porém vital e hábil, para transformar a cultura na resolução de disputas: o empoderamento das pessoas, pois estas passaram a ter condições de decidir que caminho seguir, com quem, qual o passo a passo, qual o critério deve orientar a solução, como proceder, e até mesmo ter uma projeção do tempo de duração da disputa.

A partir do momento em que a sociedade, de um modo geral, e os advogados, em particular, passarem a ter consciência do quão bom e interessante é de que a busca das soluções de conflitos sejam efetuadas por meio da mediação ou da conciliação, vamos ter uma rapidez da solução, que poderá ser de algumas horas, dias ou poucos meses, ao invés dos mais de sete anos para a decisão judicial, como constatado no relatório do CNJ.

Para a busca da solução consensual, há de se ter criatividade e colaboração de ambas as partes. Nessa busca, os advogados devem instruir e orientar os clientes de que cada um pode construir a resposta para a disputa que se apresenta.

Poderíamos, a partir das assertivas acima expostas, relembrar da frase popular que diz que "é melhor um mau acordo do que uma boa demanda".

Não é demais ressaltar que a utilização de meios de autocomposição para a resolução de disputas, como a negociação, a mediação e a conciliação, nos quais as partes decidem, por si sós, com base nos seus interesses, trazem excelentes resultados, como rapidez e menor custo, pois a utilização destes meios apresentam alto controle sobre o resultado; em regra, permitem a manutenção de um bom relacionamento (o que é de suma importância nos relacionamentos continuados, como por exemplo, de pais que se separam e têm filhos em comum) e, de um modo geral, o tipo de resultado alcançado ao final da interação é ganha-ganha, ou seja, ambas as partes ganham.

E para concluir, tomamos a liberdade de trazer um interessante jogo de palavras da lavra do professor doutor Asdrubal Júnior, que transformou a frase "por um conflito, se estou certo que tenho razão, vou até o fim. Quero conquistar na Justiça e assim construir a melhor vitória" na seguinte: "Estou certo que se quero conquistar a vitória, tenho que por um fim no conflito. Assim, vou até a razão, construir a melhor vitória".

E essa melhor vitória é a paz, a harmonia e a concórdia como resolução apropriada de disputas, por intermédio do consenso, ao invés de se manter em alto nível os métodos adversariais.

 


[1] GRIMAL, Pierre. Justiça. In: ______. Dicionário da mitologia grega e romana. 3a. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. p. 435.

[2] Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/WEB-V3-Justi%C3%A7a-em-N%C3%BAmeros-2020-atualizado-em-25-08-2020.pdf.

[3] No curso de capacitação em Mediação Extrajudicial com o prof. dr. Asdrubal Júnior foram apresentadas várias razões para o alto nível de litigiosidade no Brasil, citaremos algumas a título exemplificativo: “(a) facilitação para acessar a Justiça; (b) Estado não resolve problemas administrativamente, sendo grande usuário da Justiça; (c) grande facilidade de concessão de gratuidade das Justiça; (d) aumento exponencial das faculdades de direito e formação centrada no processo judicial; (e) riscos de sucumbência minimizados, baixo honorários; (f) custas judiciais muito baixas, insuficientes para arcar com os gastos com o processo; (g) ampliação exponencial do número de advogados.”

[4] No site do STJ especificamente no endereço abaixo colado e consultado em 04/10/2020 é informado que no 1º semestre de 2019 “o total de processos julgados se manteve estável, com 255.915 no período…”. http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Numero-de-decisoes-da-presidencia-aumentou-130–em-um-ano.aspx#:~:text=O%20n%C3%BAmero%20de%20decis%C3%B5es%20da,no%20primeiro%20semestre%20de%202018.

[5] No curso de capacitação em Mediação Extrajudicial com o prof. dr. Asdrubal Júnior foi apresentado um slide com as seguintes informações: "253.000 decisões do STJ no 1º semestre de 2019, são 33 Ministros, foram 99 dias úteis, 2.555 decisões/dia útil, 77 decisões/dia/ministro, cada mistro deu 10 decisões/hora, o que permite dedicar 6 minutos por caso".

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