Opinião

O 'caso André do Rap' e a sociologia jurídica

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20 de outubro de 2020, 6h34

O "caso André do Rap" faz lembrar dois ensinamentos da sociologia jurídica, grosso modo, mais ou menos assim: 1) o Direito é condicionante e condicionado pela sociedade e tem função educativa, conservadora e transformadora; 2) a norma jurídica, quando muito em desacordo com os sistemas em que vai incidir, provavelmente será descumprida, modificada ou revogada. Vamos ao caso.

O Parlamento aprovou e o presidente da República sancionou o seguinte texto:
"Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal." (Parágrafo único do artigo 316 do CPP, incluído pela Lei 13.964/2019).

O texto é claro, tem destinatário certo (o órgão emissor da decisão), beneficiário implícito (o preso preventivamente) e sanção expressa (ilegalidade da prisão preventiva). A regra é novidade, nunca existiu no nosso sistema penal e começou fazendo sucesso.

A revisão obrigatória foi fruto de um momento político conturbado. Em resposta a um projeto de mais rigor na repressão à criminal, o Parlamento, sem o adequado debate com os destinatários da norma, parecendo revanchismo, impôs uma obrigação pesada ao Judiciário: revisar a cada 90 dias as prisões preventivas.

Há motivos relevantes para uma regra de revisão das prisões preventivas. Primeiro, porque temos um assustador número de presos, perto de 700 mil. Segundo, porque por volta de 40% desse contingente estão presos preventivamente, sem conclusão definitiva do processo. Terceiro, porque a nossa prisão preventiva não tem prazo certo, é por tempo indeterminado, acontecendo até de o acusado ficar preso preventivamente por anos e depois ser absolvido.

Certamente por esse fundo de verdade inegável, a regra da revisão foi aprovada. Os defeitos que carrega são frutos da aprovação atabalhoada, que não considerou as características e complexidade do nosso sistema judicial, especialmente, o direito a quatro instâncias de julgamento para trânsito em julgado, o elevado número de presos provisórios (muito decorrente dessas quatro instâncias de julgamentos, dezenas de recursos e habeas corpus sem limites) e, por fim, a pesada elevação do trabalho dos juízos criminais com o novo encargo processual de revisão periódica.

A revisão da prisão preventiva, enquanto o processo está na primeira instância, apesar do curto prazo de 90 dias, pode funcionar, com a criação de controles, assessorias e fiscalização das corregedorias. Depois da sentença, quando o processo já estiver no tribunal de apelação, ou no STJ, ou no próprio STF, fica evidente a insuficiência técnica da nova regra.

Estando o processo no tribunal, longe do órgão emissor da prisão preventiva, quem vai fazer a revisão? O relator, o revisor, ou quem estiver com vista do processo? O processo volta à primeira instância, que já cumpriu sua jurisdição sobre o caso, para revisar a necessidade da prisão preventiva?

Tem mais: depois de já confirmada a culpa em segunda e terceira instâncias, o prazo nonagesimal e a obrigação do juízo atuar de ofício passam a ser um exagero. Depois da condenação é razoável que o prazo de revisão seja bem maior (pois o processo tem um longo e demorado caminho até o STF) e até dependa de requerimento fundamentado da parte, com prazo para decisão.

A regra da revisão tem uma função transformadora elogiável, evitar prisões preventivas que não mais têm razão de serem mantidas, proteger os acusados do avassalador poder estatal e cumprir o princípio da inocência. Entretanto, na construção da regra em referência, foram desconsideradas as características importantes do sistema judicial, chegando ao ponto de precisar ser modificada ou condicionada.

Pelo noticiado, o STF reconheceu a validade da regra da revisão, mas condicionou os efeitos da ilegalidade também ao reconhecimento da inexistência dos requisitos para a manutenção da preventiva, além da decorrência do prazo nonagesimal. O "caso André do Rap" entrou para a história judicial brasileira, confirmando os ensinamentos da sociologia jurídica.

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