Opinião

O presidente do Supremo não pode cassar liminares de outros ministros

Autor

  • Gustavo Ramos da Silva Quint

    é advogado mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e membro-fundador do Grupo de Estudos em Direito Público – GEDIP da Universidade Federal de Santa Catarina.

20 de outubro de 2020, 7h12

Em respeito aos meus colegas criminalistas, não tratarei aqui sobre a legalidade ou ilegalidade, o acerto ou desacerto da soltura de André Oliveira Macedo, chefe da facção PCC conhecido como André do Rap. Também não ouso sugerir a interpretação correta do parágrafo único do artigo 316 do Código de Processo Penal, que trata da reavaliação das prisões preventivas a cada 90 dias. Tudo isso é, na verdade, irrelevante para o que aqui quero dizer.

O resumo da ópera é o seguinte: André do Rap impetrou Habeas Corpus para o Supremo Tribunal Federal. O ministro Marco Aurélio, em decisão monocrática, determinou a soltura do preso sob o argumento de que o simples fato de sua prisão não ter sido reavaliada dentro do prazo de 90 dias seria ilegal.

Depois de quatro longos dias de exposição na mídia, a Procuradoria-Geral da República percebeu o tamanho da presepada e disparou a primeira arma que viu à frente: a suspensão de liminar, prevista no artigo 4ª da Lei nº 8.437/1992. Pediu ao presidente do Supremo, ministro Luiz Fux, a cassação da liminar do ministro Marco Aurélio.

Fux não hesitou e, de forma praticamente autofágica, censurou seu par. Cassou a liminar e submeteu a controvérsia ao plenário. O pleno do Supremo referendou, por 9 a 1 (vencido sozinho o ministro Marco Aurélio), a decisão do presidente na tarde da última quinta-feira (15/10) de manter a prisão preventiva de André do Rap que, por sua vez, enquanto os ministros trocavam caneladas, já estava a alguns quilômetros depois de onde Judas perdeu as botas.

O curioso é que, apesar da votação expressiva pela manutenção da prisão, alguns dos ministros, como Rosa Weber, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, manifestaram inconformismo com a atitude do presidente de, monocraticamente, cassar a decisão de outro ministro da corte. No entanto, como se estava diante de "situação excepcionalíssima", fizeram vista grossa e a votação seguiu o resultado ontem visto.

A prática do presidente do Supremo Tribunal Federal de cassar decisões de outros ministros da própria corte tem se tornado comum e aceita por boa parte dos juristas e da mídia, principalmente quando o resultado lhes interessa. Na história recente, mais precisamente nos últimos dois anos, isso aconteceu pelo menos três vezes — isso sem falar do que é feito, de forma semelhante, nos tribunais federais das cinco regiões e nos demais tribunais estaduais.

Do caso mais recente para o mais antigo: em janeiro de 2019, o ministro Marco Aurélio havia determinado que a eleição da mesa diretiva do Senado se desse mediante voto aberto. O ministro Toffoli foi acionado e derrubou a decisão, mantendo secreta a votação.

Em dezembro de 2018, o ministro Toffoli cassou a decisão do ministro Marco Aurélio (de novo, ele), que havia determinado, às vésperas do recesso forense, a soltura de todos os presos cumprindo pena após condenação em segunda instância. Houve desgaste extremo internamente na corte e o caso foi amplamente noticiado na mídia dado que afetaria, entre outros, o ex-presidente Lula, custodiado em Curitiba.

Antes, foi o ministro Ricardo Lewandowski a vítima. Depois de permitir ao ex-presidente Lula conceder entrevista da prisão, teve sua decisão cassada pelo ministro Luiz Fux, que estava exercendo provisoriamente a presidência do Supremo na ausência do titular. Ao reassumir a presidência, Toffoli ratificou a decisão de Fux. 

O fundamento invocado pelos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, enquanto na presidência, para suspender as decisões de seus pares é a suspensão de liminar prevista no artigo 4º da Lei nº 8.437/1992, que prescreve o seguinte:

"Artigo 4º  Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a requerimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas".

O dispositivo não autoriza, nem de perto, que o presidente do Supremo Tribunal Federal casse decisões de outros ministros. O artigo em questão é aplicável, em primeiro lugar, contra decisões que afetem o "poder público e seus agentes". Ou seja, em decisões proferidas contra a Administração Pública, não contra particulares.

No caso concreto de André do Rap, não houve decisão contra o poder público ou agente mandando fazer ou deixar de fazer algo. A decisão envolvendo diz respeito e atinge um sujeito determinado: o próprio André do Rap. Apesar de tido como chefe de organização criminosa que tem orçamento maior do que muitos municípios do país, André ou o PCC não podem, por óbvio, ser considerados entes da Administração Pública para os efeitos de suspensão de liminar. A questão é unicamente privada, mesmo ciente dos reflexos e danos colaterais de sua soltura na sociedade.

Demais disso, o pedido não serve para a cassação de decisões de membros do mesmo órgão colegiado. Ou seja, o dispositivo permite aos presidentes dos tribunais suspenderem os efeitos de liminares proferidas contra o poder público por juízes de instâncias inferiores, nunca da mesma. As competências do presidente estão dispostas na lei processual e no artigo 13 do Regimento Interno do Supremo Tribunal e, em nenhum desses dois lugares, o presidente tem o poder de censor ou de superministro.

Em resumo, por mais que a decisão de um ministro agrade ou desagrade, não existe hierarquia dentro do Supremo Tribunal Federal (e em nenhum dos outros tribunais do país), o presidente não manda mais que ninguém e não pode cassar decisões de seus pares. Foi exatamente o que consignou o ministro Lewandowski ontem (15/10) em seu voto:

"O presidente do Supremo Tribunal Federal, assim como o seu vice, não são órgãos jurisdicionais hierarquicamente superiores a nenhum dos ministros da Corte. Apenas as funções de ordem estritamente administrativa para a organização dos trabalhos e o funcionamento do Tribunal é que os diferencia dos demais membros da Casa.
Por essa razão, não se pode admitir que, fazendo uso processualmente inadequado do instituto da Suspensão de Liminar, o presidente ou o vice do STF se transformem em órgãos revisores de decisões jurisdicionais proferidas por seus pares, convertendo-se em verdadeiros em superministros.
O perigo de conceder-se uma tal discricionariedade aos dirigentes da Corte, permitindo que atuem em situações por eles próprios consideradas excepcionais, consiste no risco de que passem a cassar decisões de colegas com base em meras idiossincrasias pessoais ou quiçá movidos por algum viés político"
.

O ministro Fux até parece saber, nas entrelinhas, que não tinha competência para cassar a decisão do colega. Mas justificou a medida dizendo tratar-se de situação excepcionalíssima, envolvendo preso de "comprovada altíssima periculosidade" e grave violação da ordem pública.

Nenhum dos fundamentos invocados pelo presidente é juridicamente sustentável. A lei não prevê suspensão de decisão de outros ministros pelo presidente com fundamento em situação "excepcionalíssima" ou outros superlativos que se queira alegar. Aliás, o que é situação excepcionalíssima? Em quais casos o presidente poderia cassar a decisão? Em situações excepcionais (como as que vemos todos os dias nos tribunais do país) ou apenas nas excepcionalíssimas?

E mais, o caminho processual já está trilhado na regra do jogo. Caberia, na hipótese, o agravo regimental. Só que esse recurso é conduzido pelo mesmo relator, e depende de sua vontade de reconsiderar a decisão ou levar ao colegiado (que seria uma das turmas, e não o pleno. Aliás, hoje em dia tudo chega ao pleno). A Procuradoria-Geral da República sabia disso e quis encurtar o caminho pela via transversa buscando a sorte com o presidente, que lhe seria mais simpático. A PGR lançou a tarrafa e agora mostra o troféu.

Com o devido respeito ao excelentíssimo presidente, situações excepcionalíssimas não são fundamento para transgredir a ordem jurídica e valer-se de um instrumento processual manifestamente incabível para justificar os fins. É evidente que se trata de situação excepcional, mas o ordenamento jurídico existe justamente para garantir a segurança jurídica e a previsibilidade das decisões.

Não é admissível romper a ordem jurídica com o pretexto de protegê-la. A história recente do país já nos mostrou os efeitos deletérios desse tipo indesejável de voluntarismo. E o Supremo Tribunal Federal, a quem compete a guarda da Constituição, é justamente quem deve dar o peito a protegê-la, não dobrá-la.

Autores

  • é advogado, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e membro-fundador do Grupo de Estudos em Direito Público – GEDIP, da Universidade Federal de Santa Catarina.

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