Opinião

Regulação da Cannabis medicinal deve ser tratada com naturalidade

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20 de outubro de 2020, 6h04

Os últimos meses foram marcados por um intenso debate sobre a criação de um marco regulatório para a Cannabis medicinal, em especial no âmbito do Projeto de Lei nº 399/15. A proposta, que tem por objetivo democratizar o acesso à saúde e criar uma alternativa de renda para o país, vem sendo alvo de muitas críticas por parte de alguns parlamentares e ministros. Em especial, o ministro da Justiça, André Mendonça, apresentou uma moção de repúdio [1] ao Congresso Nacional menosprezando as propriedades medicinais da Cannabis e afirmando que a regulação visa, por exemplo, a encobrir o tráfico de drogas.

O calor colocado no debate pelos opositores do marco regulatório pode ser interpretado como uma estratégia para tirar o foco dos aspectos científicos e econômicos que motivaram a criação da proposta. Em outras palavras, a polarização criada em torno da Cannabis medicinal facilita a propagação de um discurso superficial, baseado no negacionismo, já que tira a discussão do campo técnico e a transfere para o campo político [2]. Em termos práticos, essa estratégia faz com que os posicionamentos sejam orientados pela condenação absoluta ou pela liberação total, quando, na verdade, a regulação é exatamente o meio termo que oferece equilíbrio entre os dois lados.

Até certo ponto, é natural que as décadas de proibicionismo, sobretudo do uso adulto da Cannabis, dificultem a discussão. Da mesma maneira, é esperado que o processo de criação de um marco regulatório conte com algum tipo de influência política ou ideológica [3]. No entanto, a negação de evidências científicas nunca é razoável. Ainda que seja necessário aprofundar, não é mais preciso especular sobre as propriedades medicinais da Cannabis. Elas estão comprovadas pela ciência há muitos anos e há inúmeros exemplos de pacientes que foram beneficiados pelo tratamento com a planta.

Vale ressaltar que uma estratégia negacionista maximiza os próprios efeitos adversos que os grupos contrários ao marco regulatório querem supostamente evitar. Não é a regulação que incentiva o mercado clandestino, a produção precária ou o consumo indevido da Cannabis medicinal, mas, sim, a falta dela. Recorrendo ao óbvio, é preciso lembrar que o marco regulatório estabelecerá regras para o mercado. Essas regras incluem, por exemplo, a necessidade de prévia autorização para o cultivo, a definição de padrões mínimos de segurança e qualidade na produção e a conscientização das pessoas a respeito do consumo adequado da planta.

Em linhas gerais, é fundamental manter o bom nível de discussão que antecedeu a elaboração do texto substitutivo, bem como ter em mente que não existe conspiração na regulação da Cannabis medicinal. O marco regulatório se justifica pela ineficiência das regras atualmente vigentes, as quais, a um só tempo, aumentam o custo da produção, limitam o acesso dos pacientes aos produtos e fomentam a judicialização. O que se espera, no fim do dia, é a construção de um ambiente mais sustentável para a população e para a atividade empresarial, movimento similar ao que ocorre de maneira natural em todo o mundo. A partir de determinado ponto, negar-se à realidade deixa de ser apenas uma estratégia política para se tornar uma verdadeira anuência à violação diária ao direito dos pacientes.

 


[2] Nas palavras de Marcelo de Vitta Grecco e Patrícia Vilela, "esse debate tampouco pode ser colocado em um ringue entre esquerda e direita". Íntegra: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/10/pela-criacao-da-lei-elisaldo-carlini.shtml.

[3] "Isso não quer dizer que a política de drogas deva ser desenhada de maneira teocrática, sem deixar espaço para escolhas políticas e até mesmo para princípios éticos e morais de indivíduos e seus governantes". Íntegra: http://pbpd.org.br/publicacao/guia-de-bolso-para-debates-sobre-politica-de-drogas/.

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