Opinião

O debate sobre a constitucionalidade da emenda da vaquejada

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20 de outubro de 2020, 16h10

O STF deve discutir, no próximo dia 5 de novembro, a constitucionalidade da "emenda constitucional da vaquejada" (EC 96/2017), aprovada por amplíssima maioria do Congresso Nacional após o apertado julgamento (6 a 5) do STF que considerou a prática inconstitucional. O tema desperta importantíssimos questionamentos sobre se o STF possui a última palavra sobre o sentido da Constituição e também a respeito dos limites do controle jurisdicional da validade de emendas constitucionais. No julgamento da ADI 5.728, o STF discutirá em que medida a tutela jurídica dos animais não humanos pode ser compreendida como cláusula pétrea.

Para os defensores da tese da inconstitucionalidade da EC 96/2017, a proteção jurídica dos animais estaria inserida no núcleo essencial do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Assim, sua tutela ingressaria também no âmbito de incidência da dignidade da pessoa humana, e possibilitaria a invalidação da decisão do poder constituinte derivado de conferir proteção constitucional à prática da vaquejada. Essa controversa operação argumentativa conduziria à adoção de um parâmetro de reduzidíssima deferência do STF ao poder constituinte derivado. A declaração de inconstitucionalidade da EC 96/2017 exigiria que o STF: 1) abandonasse a postura de autocontenção no controle de validade das emendas constitucionais — o que resultaria de uma leitura excessivamente ampla do alcance da cláusula pétrea dos "direitos e garantias individuais"; e 2) afirmasse uma perigosa prerrogativa de dar a última palavra sobre o sentido dos direitos fundamentais. Para além do risco democrático que envolveria a afirmação de um controle de constitucionalidade forte (pouco deferente) sobre as emendas constitucionais e a rejeição peremptória ao diálogo institucional com o Congresso Nacional sobre o significado da Constituição, a tese defendida na ADI 5.728 padece de múltiplas deficiências, a seguir resumidas.

Os argumentos declinados na ADI 5.728 para demonstrar a suposta inconstitucionalidade da EC 96/2017 — e defendidos por alguns doutrinadores — giram em torno de dois eixos fundamentais: 1) a proteção dos animais estaria inserida no núcleo irredutível do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, de modo que a fragilização da proteção ambiental promovida pela EC 96/2017 violaria a dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana; 2) a vedação das práticas que submetam animais à crueldade, prevista no artigo 225, parágrafo 1º, VII, tem natureza de regra jurídica, e não de princípio, razão pela qual não está sujeita à ponderação, nem mesmo pelo poder constituinte originário [1]. Apesar da relevância jurídica dos argumentos apresentados para defender a necessidade da declaração de inconstitucionalidade da EC 96/2017, nem mesmo a leitura mais ampliativa da jurisprudência do STF acerca dos limites do controle jurisdicional da validade de emendas constitucionais autorizaria essa gravíssima intervenção na liberdade de conformação do poder constituinte derivado.

Em primeiro lugar, a ADI 5.728 incorre em importante contradição performática. De um lado, defende o caráter de regra jurídica da proibição de tratamento cruel aos animais (artigo 225, parágrafo 1º, VII) para afastar a possibilidade de realização de ponderação pelo constituinte derivado. Porém, de outro, vale-se do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, caput) — cuja natureza de princípio jurídico é inegável [2] — para defender a existência de um direito materialmente fundamental da pessoa humana que impediria a prática da vaquejada. Como não se poderia extrair diretamente da tutela jurídica dos animais (artigo 225, parágrafo 1º, VII) qualquer direito ou garantia individual da pessoa humana (artigo 60, parágrafo 4º, I), torna-se necessário acionar o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para defender a existência de violação a uma dimensão essencial da dignidade da pessoa humana. Sem isso, não se poderia sequer cogitar da declaração de inconstitucionalidade de uma emenda à constitucional.

Se já é problemática a compreensão de que a vedação das práticas que submetam animais à crueldade, prevista no artigo 225, parágrafo 1º, VII, tem natureza de regra jurídica, não se submetendo à ponderação [3], mostra-se ainda mais inaceitável a rejeição à lógica da ponderação quando os próprios defensores da inconstitucionalidade da EC 96/2017 acionam o vínculo entre a vedação ao tratamento cruel ao direito fundamental ao meio ambiente equilibrado para afirmar a existência de violação de cláusula pétrea. A colisão entre, de um lado, o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, de outro, o direito à cultura e o direito à dignidade humana, na dimensão do reconhecimento dos nordestinos e da população sertaneja em geral — se resolve, sim, por meio da lógica da ponderação, e não da mera subsunção. E foi justamente uma nova ponderação entre os valores e princípios constitucionais em jogo, atenta à relevância cultural da vaquejada como "modo de criar, fazer e viver da população sertaneja" e também à necessidade de regulamentação da prática para evitar o sofrimento dos animais, que conduziu à promulgação da EC 96/2017.

Se é verdade que o STF afirmou que a briga de galo não consubstanciava qualquer atividade cultural, a mesma conclusão não pode ser reafirmada no caso da vaquejada. Aqui, a indiscutível existência de uma manifestação cultural digna de proteção constitucional obriga o intérprete a ponderar, já que não é possível simplesmente afirmar que não há qualquer fundamento constitucional para a tutela jurídica da prática da vaquejada. E essa ponderação não é novidade para o Supremo: no RE 494.601, a corte assentou a constitucionalidade do sacrífico ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana, considerando a fundamentalidade da liberdade religiosa para a dignidade humana e afastando a alegação de violação à proteção constitucional ao meio ambiente. Cabe frisar, contudo, que tal ponderação não é privativa do Poder Judiciário, mas, ao contrário, está, sim, aberta à deliberação democrática. E a ponderação legislativa não pode ser simplesmente substituída pela ponderação judicial. Essa conclusão decorre da necessidade de manutenção de profunda autocontenção judicial no controle de constitucionalidade de emenda à constituição, especialmente quando em jogo tema moralmente complexo e divisivo como esse que envolve a colisão entre tradições culturais profundamente enraizadas e a tutela da posição jurídica dos animais.

Em segundo lugar, o argumento segundo o qual a natureza de regra jurídica da vedação das práticas que submetam animais à crueldade (artigo 225, parágrafo 1º, VII), por não se sujeitar à ponderação, encerraria o debate de uma vez por todas e comprovaria a inconstitucionalidade da EC 96/2017 enfrenta pelo menos dois obstáculos insuperáveis. De um lado, tal argumento esconde a inviabilidade de realizar uma aproximação aceitável da esfera de direitos materialmente fundamentais protegida como cláusula pétrea sem acionar o direito fundamental (mais amplo e inegavelmente principiológico) ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A ponderação estará, portanto, necessariamente presente no debate. De outro, esse argumento procura anular a divergência empírica existente em torno do caráter intrinsecamente cruel da prática da vaquejada. Como demonstrou o debate parlamentar que culminou na aprovação da EC 96/2017, há divergência científica sobre a viabilidade de impedir o tratamento cruel aos animais. A respeito dessa divergência sobre as premissas empíricas, é preciso mais uma vez lembrar que o legislador em geral — e o poder constituinte em especial — dispõe de uma margem de ação epistêmica para formular juízos sobre os riscos de determinadas ações diante da dúvida a respeito de certas condições fáticas [4]. O fato de seis juízes do STF terem afirmado a tese de que a prática da vaquejada é intrinsecamente cruel para os animais não significa que a divergência sobre essa premissa empírica esteja definitivamente superada. Tanto é assim que o constituinte, trilhando o caminho dos cinco votos vencidos no próprio julgamento do STF, entendeu que o legislador ordinário poderia oferecer um grau de proteção suficiente aos animais, sem que fosse necessário, para tanto, banir a manifestação cultural.

Em terceiro lugar, a ADI 5.728 confunde o âmbito de incidência do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado com o núcleo irredutível desse direito ao qual ser poderia imputar a qualidade especial de cláusula pétrea. O fato de ser indiscutível o vínculo material entre o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e algumas das mais importantes dimensões da dignidade da pessoa humana [5] não permite afirmar, a priori, que qualquer restrição imposta pelo constituinte derivado àquele importará obrigatoriamente em ofensa ao núcleo essencial de direitos materialmente fundamentais.

A restrição ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado imposta por meio de emenda constitucional só será inconstitucional se importar em limitação desproporcional de direitos materialmente fundamentais. O reconhecimento da fundamentalidade material do direito ao ambiente ecologicamente equilibrado [6] não autoriza afirmar que todo o âmbito de incidência desse direito consubstancia cláusula pétrea. E também não significa que eventuais restrições a esse direito fundamental sejam aprioristicamente desproporcional. O núcleo do direito fundamental que não está sujeito a restrição — e, portanto, integra o sentido da cláusula pétrea — só é identificado após a ponderação, e não antes dela. Não será, portanto, qualquer tipo de restrição à tutela jurídica dos animais que resultará necessariamente em violação à cláusula pétrea. O espectro de proteção jurídica do meio ambiente que assume o status de cláusula pétrea é aquele diretamente relacionado à manutenção das condições de vida digna para a pessoa humana [7]. Nesse contexto, é por meio da ponderação entre os princípios constitucionais colidentes que se poderá concluir pela existência ou não de restrição inconstitucional do direito ao ambiente ecologicamente equilibrado. É incorreto, portanto, e sob o ponto de vista metodológico, apresentar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como regra jurídica da qual se possa extrair uma vedação peremptória a qualquer forma de restrição.

Tais advertências dogmáticas servem ao propósito de evitar que uma interpretação excessivamente ampla das cláusulas pétreas — tal como defendida na ADI 5.728 — consolide, entre nós, um modelo de controle jurisdicional das emendas constitucionais que impeça o legítimo exercício do poder de reforma constitucional, o que não se concilia com o princípio democrático. O direito de cada geração se autogovernar exige cautela e autocontenção do STF no campo do controle de validade das emendas constitucionais. Não se justifica, sob o prisma do princípio democrático, a pretensão de impedir o povo brasileiro de deliberar sobre a necessidade ou não de tutelar a prática cultural da vaquejada. A ponderação envolvida na decisão do poder constituinte derivado de aprovar a EC 96/2017, porque não coloca em risco a identidade constitucional brasileira, não pode ser substituída por uma nova ponderação judicial dos princípios constitucionais em jogo. É necessário garantir que o povo brasileiro, por meio das maiorias qualificadas necessárias à aprovação da emenda constitucional, participe ativamente da construção do sentido da Constituição. Afinal, a banalização do controle de constitucionalidade das emendas à constituição, como bem lembrou o ministro Gilmar Mendes, "ao invés de assegurar a continuidade do sistema constitucional, pode antecipar a sua ruptura" [8].

 


[1] Tais argumentos foram defendidos, com percuciência, por Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer em ensaio publicado no Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-18/direitos-fundamentais-ec-962017-vaquejada-adi-5728df, acesso em 18 out. 2020.

[2] V., nesse sentido, Cristina Queiroz. Interpretação Constitucional e Poder Judicial: sobre a epistemologia da construção constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, p. 162.

[3] A propósito, a crítica de Caroline Medeiros Rocha: "Ao perceber essa norma como regra, o inciso VII impõe dever definitivo para o poder público, o qual não pode ser relativizado, sendo a estrutura cabível aqui a de tudo ou nada, i.e., ou essa norma é aplicável em todas as situações ou ela não é válida, e deve ser extraída do ordenamento jurídico. O dever do poder público é absoluto, contudo a ação de proteger a fauna e a flora e vedar práticas que coloquem em risco a sua função ecológica implica uma série de conflitos em potencial. Por exemplo, como fica essa exigência quando, para construir uma hidrelétrica, é necessário inundar uma grande área? A fauna e a flora daquela região irão ser destruídas, isso significa que a construção desse empreendimento pelo poder público é inconstitucional? A resposta é não necessariamente. Defende-se que o inciso VII deve ser entendido como uma imposição de dever prima facie. Ele deverá ser realizado na maior medida possível diante das possibilidades fáticas e jurídicas existentes. Portanto, a norma deve ser percebida como princípio e não como regra" (Caroline Medeiros Rocha. O STF e o meio ambiente: a tutela do meio ambiente e sede de controle concentrado de constitucionalidade [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Direito, 2013, p. 34).

[4] Se as premissas empíricas não são indiscutíveis, cabe ao STF atuar com deferência ao legislador. V., a propósito, Carlos Bernal Pulido. O Princípio da Proporcionalidade da Legislação Penal. In: Cláudio Pereira de Souza Neto; Daniel Sarmento (Coord..). A Constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007. p. 818-820. O princípio da precaução, por outro lado, tem aplicação temperada no caso em exame, considerando que não está em jogo qualquer aspecto relacionado à vida humana.

[5] V., nesse sentido, José Afonso da Silva. Direito Ambiental Constitucional. 4ª ed. São Paulo: Malheiros. 2003, pp. 43 a 46.

[6] V., nesse sentido, Édis Milaré. Direito do Ambiente: A Gestão Ambiental em Foco: Doutrina, Jurisprudência, Glossário. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2009, p. 152.

[7] V., nesse sentido, Antônio Herman Benjamin. A constitucionalização do ambiente e a ecologização da constituição brasileira, in José Joaquim Gomes Canotilho; José Rubens Morato Leite (org.), Direito Constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva. 2007, p. 89.

[8] ADI 2.395, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 09.05.2007.

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