Público X Privado

A decisão do ministro Marco Aurélio e o princípio da legalidade

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19 de outubro de 2020, 16h57

Spacca
O ministro Marco Aurélio, em decisão proferida em habeas corpus, reconheceu a ilegalidade da prisão preventiva do traficante internacional André do Rap. Imediatamente a mídia saiu em quase uma só voz a criticar a decisão do ministro. Interpretações alternativas foram apresentadas ao público para justificar a possibilidade da manutenção da prisão preventiva. Viralizaram nas mídias sociais críticas ao ministro, o que foi repercutido pela mídia tradicional. Debates paralelos surgiram sobre o tema e vozes apareceram defendendo a prisão após decisão de segunda instância e associando a decisão ao combate à "lava jato".

Em todo o debate que se travou o que menos foi divulgado é a lei em si. O que diz o art. 316 do Código de Processo Penal? O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem. Por sua vez, o parágrafo único do mesmo artigo, fundamento da decisão do Ministro Marco Aurélio, assim estabelece: Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal.

Hoje o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lançou o seu Anuário Brasileiro de Segurança Pública em que apresenta alguns números relevantes para este debate. O primeiro é que o número de presos provisórios alcança a marca de 235 mil pessoas ou 32% da população carcerária. Nos Estados do Amazonas e Sergipe o percentual de presos provisórios alcança mais de 50% da população carcerária. O segundo ponto a ser destacado é que 2/3 da população carcerária de mais de 700 mil pessoas é originária da população afro-brasileira. Ou seja, é uma população que apresenta uma clara homogeneidade racial, o que coloca em questão o próprio equilíbrio e imparcialidade do sistema. E o terceiro ponto a ser destacado é que o Brasil é o terceiro país com a maior população carcerária do mundo, como indica a Organização Não Governamental Conectas. Ficamos apenas atrás dos Estados Unidos da América, que possui mais de 2 milhões de presos, e da China.

Não é demais lembrar que os mutirões carcerários, conduzidos pelo Conselho Nacional de Justiça- CNJ desde 2008, na gestão do Ministro Gilmar Mendes, permitiram identificar os verdadeiros descalabros que rodeiam o nosso sistema prisional. Identificaram, por exemplo, mais de 45 mil pessoas libertadas por continuarem presas apesar de já terem cumprido as suas penas. Foram localizados casos de prisões preventivas que já duravam mais de 10 anos.

Compreendendo estes dados é possível entender o que levou o legislador brasileiro a impor ao Juiz a necessidade de periodicamente justificar as prisões preventivas e a consequência da falta desta justificativa. E neste ponto, a reação contra a decisão do Ministro Marco Aurélio torna-se incompreensível. É certo que André do Rap tinha todos os requisitos para ser e permanecer preso provisoriamente. Mas por que então as críticas não foram dirigidas àqueles que a lei obrigava justificar a manutenção da prisão? Porque o Juiz não fez a justificativa que devia no prazo de 90 dias? Porque o Ministério Público monitorou a situação desse preso de alta periculosidade e agiu a tempo para demandar que fosse suprida a exigência da lei? A obrigação legal era deles e a consequência do descumprimento gravíssima.

O casuísmo do caso do Andre do Rap tem implicações maiores para o sistema prisional brasileiro, já que oferece uma alternativa e tolerância para a inapetência e paralisia institucional de um sistema cada vez mais disfuncional. Por mais grave que fosse a consequência da decisão do Ministro Marco Aurélio ela tinha, ao menos, o mérito de chamar à responsabilidade os Juízes que são responsáveis pela condução de processos criminais, principalmente no que se refere aos direitos dos indivíduos contra a natureza inquisitorial do sistema. Era, com certeza, uma advertência ao arbítrio que gerou um sistema prisional ineficiente, que não pune o criminoso, mas com certeza assusta o inocente.

Os parâmetros da Lei nº 13.964, de 2019, ao alterar o art. 316 do Código de Processo Penal, acabaram por perder a consistência objetiva buscada pelo legislador, voltando o sistema a funcionar na base de uma mera recomendação. Torna impróprio o prazo de 90 dias, podendo o Juiz cumprir com a necessária justificativa de manutenção da excepcional prisão provisória apenas quando conveniente. Com isto, a liberdade tende a ser uma exceção, os números trazidos pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública são realimentados e as injustiças do nosso sistema ganham mais um fôlego para permanecerem vivas.

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