Opinião

Direito à saúde e atendimento em hospital privado: longa manus do Estado

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19 de outubro de 2020, 11h48

Em atendimento emergencial, o hospital privado não conveniado ao SUS deve suportar os custos de pacientes sem convênio médico ou sem condições financeiras, e buscar o reembolso do Estado.

A "emergência médica" é considerada como "a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem em risco iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo, portanto, tratamento médico imediato" [1].

Dois elementos emblemáticos para essa constatação:

— Risco iminente de morte ou sofrimento intenso;

— Exigência de tratamento médico imediato.

Diferencia-se da "urgência médica", que se caracteriza pela ocorrência de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, exigindo assistência imediata. O exemplo da "urgência" seria uma fratura óssea. O exemplo da "emergência" seria uma artéria coronária obstruída.

Quando falamos em "emergência médica", certamente estamos invocando ocorrências de saúde da maior gravidade e que exigem a busca de um hospital mais próximo dessa ocorrência. Pois o tempo até o atendimento emergencial pode ser o divisor entre a vida e a morte.

Em casos como esses, é muito claro que a pessoa afetada é levada às pressas para o pronto-socorro ou pronto-atendimento mais próximo da ocorrência. Muitas vezes, esse hospital é privado e não conveniado ao SUS. O paciente não tem convênio médico, ou não tem condições financeiras de arcar com as despesas de tratamento. O hospital, ao receber o paciente, tem o dever legal de tratá-lo.

Nessas condições, os parentes do paciente são chamados ao setor financeiro do hospital, onde são apresentados os contratos de prestação de serviços, o tipo de internação, entre outros documentos de ingresso. Na emoção do momento de pavor de saúde, sem ter lido nada, apenas assinam onde foi solicitado.

Esse é um pequeno resumo de uma ocorrência de tal natureza, que sempre esperamos não ter que passar.

Cremos que, se a pessoa precisa de atendimento de emergência, com risco de morte, não podendo optar entre este ou aquele hospital, mas ao mais próximo, mesmo sendo hospital particular ou privado, ela deve ser atendida, e o hospital deve ser reembolsado pelo Estado, no âmbito do princípio constitucional do direito à saúde.

Porque, nesses casos específicos de emergência, o hospital particular está agindo como substituto do Estado.

Conforme o artigo 196 da Constituição Federal, a saúde é um direito fundamental a cargo do Estado, que pode "terceirizar" a atividade, mas não pode subtrair a responsabilidade pela prestação desse serviço essencial.

Nesses casos específicos de atendimento emergencial, o hospital age como o Estado, dentro da órbita de atuação constitucional de proteção à saúde e direito do cidadão, nos termos do artigo 197 da Constituição Federal:

"Artigo 197 — São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao poder público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado".

No âmbito da proteção constitucional do direito à saúde a todos, emerge o artigo 196 da Constituição da República:

"Artigo 196 — A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação".

Mesmo quando de titularidade privada, a natureza jurídica dos serviços de saúde é pública, pois decorrente do Estado, como leciona Lenir Santos [2]:

"A criação da Agência Nacional de Saúde (ANS), reguladora do seguro e dos planos de saúde, ainda que não se trate de serviço público 'exclusivo' — que pode ser delegado —, reforça o entendimento de que o serviço, em sua essência, mesmo quando tem titularidade privada, é de natureza pública e deve estar inteiramente sob regulação, fiscalização e controle púbico. Por isso na Assembleia Nacional Constituinte esse tema foi objeto de intensos debates".

O STF tem reiteradamente afirmado que o caráter programático do artigo 196 não ser compreendido ou interpretado como uma "promessa constitucional inconsequente". Emblemático voto do ministro Celso de Mello, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo ARE 727.864 AgR [3]:

"Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no artigo 196 da Lei Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao poder público, qualquer que seja a dimensão institucional em que atue no plano de nossa organização federativa. 
(…) O caráter programático da regra inscrita no artigo 196 da Carta Política — que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem , no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro (JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, "Comentários à Constituição de 1988", vol. VIII/4332-4334, item n. 181, 1993, Forense Universitária) — não pode convertê-la
em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o poder público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.
Nesse contexto, incide, sobre o poder público, a gravíssima obrigação de tornar efetivas as ações e prestações de saúde, incumbindo-lhe promover, em favor das pessoas e das comunidades, medidas — preventivas e de recuperação —, que, fundadas em políticas públicas idôneas, tenham por finalidade viabilizar e dar concreção ao que prescreve, em seu artigo 196, a Constituição da República, tal como este Supremo Tribunal tem reiteradamente reconhecido".

Diante de tal realidade, no mesmo voto condutor do ministro Celso de Mello, e que dele faz parte, é afirmado [4]:

"Desta forma a imposição de internamento digno, em hospital público ou particular, dos pacientes que dele necessitam é medida necessária face à inércia do Estado em solucionar tais problemas .
Importante salientar que, no presente caso, devem ser ponderados os valores vida e patrimônio, devendo prevalecer as medidas que protejam, primeiramente, a vida humana e sua dignidade".

O dever de saúde é do Estado, assim como seu custeio de serviços hospitalares prestados por instituições privadas em benefício de pacientes de emergência hospitalar, em que há risco de morte.

O hospital age aí como longa manus do Estado na prestação do serviço de saúde tão emergencial e necessário, de risco de morte, e dele deve obter o custeio de despesas hospitalares.

Essa responsabilização é risco do negócio do hospital, ao se propor a atuar no tratamento à saúde, como permitido no artigo 199 da Constituição Federal: "A assistência à saúde é livre à iniciativa privada".

Por certo que o fato de a assistência à saúde ser autorizada pelo Estado à iniciativa privada comporta os bônus e os ônus dessa atuação. Atuar em situações emergenciais e de risco de morte como longa manus do Estado.

Tal interpretação vai em consonância com as normas constitucionais invocadas acima, que afastam a priorização do lucro sobre a norma-princípio da saúde, como Direito público subjetivo fundamental ligado à dignidade da pessoa humana e ao direito à vida. Vale dizer: impossibilidade de priorização da mercancia da saúde sobre o direito constitucional da proteção da saúde.

Se a assistência à saúde pode ser explorada pela iniciativa privada, não pode apenas se abastecer das cobranças, valores e lucros. Tratando-se de direito fundamental do Estado, em casos pontuais, emergenciais, de risco de vida, em que não há como escolher este ou aquele hospital para ser atendido, deverá acolher o paciente, tratá-lo e buscar o custeio do Estado. A priorização é pela vida, como afirma o STF [5]: "O direito à saúde representa consequência constitucional indissociável do direito à vida".

A saúde não pode ser tratada como mero "negócio", mas direito garantido constitucionalmente e ofertado pelo Estado e pela iniciativa privada. Mas, refrise-se, à iniciativa privada não comporta apenas os bônus dessa atuação, pois derivada de comando constitucional do qual também advêm ônus. Não é apenas exploração como negócio, mas como longa manus do Estado na entrega da saúde, para os casos emergenciais e pontuais aqui mencionados.

O que nota-se é que nas cobranças judiciais hospitalares há articulação que ressoa como que "o hospital não tem nada que ver com o Estado e o direito à saúde". Mas ao concordar em exercitar e explorar esse mercado, está certamente se responsabilizando por ele como risco do negócio. Para o paciente emergencial, em risco de morte, que não pode escolher ou optar entre ir neste ou naquele hospital, mas ao mais próximo, há evidente proteção à saúde pelo Estado, através do hospital que o atende. Principalmente para quem não tem condições de suportar o pagamento.

A obtenção desse reembolso de tratamento pelo hospital deve ser endereçada ao Estado e é solidária dos entes da Federação, como reiteradamente tem afirmado, de modo pacífico, o STF [6].

É importante articular que essa obrigação, esse ônus do hospital, decorrente do risco de seu negócio, não leva em consideração ser ele conveniado ao SUS. É obrigação decorrente da Constituição Federal e da atividade escolhida pelo hospital para exploração, sob o enfoque comercial.

Também é de ser verificado que há articulações de que o contrato que fundamenta a cobrança hospitalar, em casos como os mencionados acima, incorpora potencial nulidade, aí com fundamento do artigo 156 do Código Civil:

"Artigo 156 — Configura-se o estado de perigo quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa".

A moldura da norma-regra acima poderia se encaixar em casos de contratação sob momento de forte comoção, contratante premido pela necessidade de salvar seu parente de grave dano que impõe o tratamento emergencial.

Não há necessidade de descer a profundidades pelágicas para entender a questão, que é simples: o contrato pode ser nulo por violação da vontade do agente, em momento de pavor de saúde, sem ter lido nada, apenas assinado onde foi solicitado pelo financeiro do hospital. Haveria defeito absoluto no negócio jurídico, violada a livre manifestação da vontade.

O caráter dual do regra do artigo 156 acima seria atendido. De um lado: premido pela necessidade de salvar a vida, houve assunção de obrigação excessivamente onerosa. De outro: o grave dano à saúde e vida é perfeitamente conhecido pelo hospital.

Diz-se "caráter dual", em face do REsp 1.578.474, relatado pela ministra Nancy Andrighi [7], que afastou o estado de perigo em caso pontual de atendimento emergencial, inclusive considerando legítima a cobrança hospitalar:

"8. O estado de perigo é vício de consentimento dual, que exige para a sua caracterização, a premência da pessoa em se salvar, ou a membro de sua família e, de outra banda, a ocorrência de obrigação excessivamente onerosa, aí incluída a imposição de serviços desnecessários, conscientemente fixada pela contraparte da relação negocial".

Contudo, não foi articulada a tese da longa manus do Estado em tal tipo de tratamento emergencial, tampouco articulado o tema constitucional aqui mencionado, o qual, por certo, somente poderia ter lugar perante o STF. E isso não ocorreu.

Há também a ótica da aplicação do Código de Defesa do Consumidor, que não foi abordada aqui para que outros se debrucem sobre o tema. Mas dúvidas sempre são lançadas sobre as contas hospitalares:

As contas não são apenas impagáveis. São excessivamente detalhadas e incompreensíveis. É impossível avaliar a coerência dos valores cobrados. Qual o preço justo de um par de luvas cirúrgicas? E das agulhas hipodérmicas com dispositivo de segurança, na espessura Y, do fornecedor Z? Por que o soro fisiológico custa o dobro do preço cobrado na farmácia da esquina? Como as taxas de materiais e procedimentos são definidas? Como compará-las aos hospitais de mesmo porte [8]?

São temas interessantes, atuais e perenes que precisam ser enfrentados e decididos pelo Judiciário.

 


[1] Resolução CFM Nº 1.451, de 10 DE MARÇO de 1995-publicada no DOU de 17/03/1995.
"Artigo 1º — Os estabelecimentos de prontos-socorros públicos e privados deverão ser estruturados para prestar atendimento a situações de urgência-emergência, devendo garantir todas as manobras de sustentação da vida e com condições de dar continuidade à assistência no local ou em outro nível de atendimento referenciado.
Parágrafo primeiro. Define-se por urgência a ocorrência imprevista de agravo à saúde com ou sem risco potencial de vida, cujo portador necessita de assistência médica imediata.
Parágrafo segundo. Define-se por emergência a constatação médica de condições de agravo à saúde que impliquem em risco iminente de vida ou sofrimento intenso, exigindo portanto, tratamento médico imediato"
.

[2] SANTOS, L. A natureza jurídica pública dos serviços de saúde e o regime de complementaridade dos serviços privados à rede pública do Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, vol. 39 (106), jul-set 2015. Disponível em <https://doi.org/10.1590/0103-1104201510600030021>

[3] j. 4-11-2014, 2ª T, DJe de 13-11-2014. Negritos, itálicos e sublinhados do original.

[4] Negritos e itálicos do original.

[5] RE 393.175-AgR/RS, Rel. ministro CELSO DE MELLO. Negritos, itálicos e sublinhados do original.

[6] AI 817.938-AgR/RS, Rel. ministro RICARDO LEWANDOWSKI.

[7] STJ-3ª Turma, REsp 1.578.474, rel. ministro Nancy Andrighi, j. 11.12.2018, DJe 13.12.2018 .

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