MP no Debate

STJ se ocupa com relatórios de produtividade e não julga

Autor

19 de outubro de 2020, 12h41

Em notícia de 19 de dezembro de 2018 publicada em seu portal, o STJ se vangloria de ter julgado, naquele ano, mais de meio milhão de processos, ou um processo por minuto:

"Superamos, pela primeira vez na história, a marca de 500 mil julgados. Mesmo tendo recebido 4% a mais de processos do que em 2017, conseguimos uma redução recorde no estoque”, … Ao todo, foram julgados 511.761 processos em 2018, média de 15.508 para cada um dos 33 ministros, ou 1.402 julgamentos por dia, ou ainda 58 por hora. É praticamente um processo por minuto sendo julgado no STJ".

E continua em 28 de agosto do ano seguinte ao anotar: "338.711 novos processos chegaram ao tribunal em 2018, enquanto 377.574 foram baixados definitivamente, ou seja, a corte consegue atualmente julgar mais do que recebe, o que permite a redução do estoque de processos. Em 2016, o STJ tinha mais de 370 mil processos em tramitação. No ano seguinte, houve uma redução recorde de 11% no acervo, e 2017 chegou ao fim com 330 mil processos em tramitação. O ano de 2018 marcou um novo recorde, com redução de 11,1%, levando o estoque ao patamar de 293.375 processos".

Lamentavelmente, há alguns lustros, no país, por força da invasão do neoliberalismo econômico, propulsor da teoria do Estado-mínimo, a linguagem jurídica, filha de um dos ramos mais nobres da Filosofia, a ética, acabou sendo substituída pela linguagem da Economia, que, ao contrário, longe da ética, cuida de buscar vantagens materiais a qualquer custo.

Mais lastimável ainda é constatar que, sem se dar conta de sua extrema relevância para a sociedade, aquela corte superior tenha se deixado cair nessa armadilha que enaltece a economia e coloca em segundo plano o direito do cidadão e a justiça.

Seu portal, além dos números da suposta produtividade, apresenta como medidas mais relevantes a redução de custos e a economia de tempo, dizendo não haver mais lugar para a ineficiência pública. Tais afirmações parecem mais adequadas para discursos políticos populistas.

Deveria a respeitável corte, como órgão superior do Poder Judiciário, data vênia, velar pela excelência não dos números de decisões proferidas, mas dos resultados sociais de sua atividade-fim, ou seja, pela eficiência da prestação jurisdicional, no sentido de, na solução dos litígios, dar a cada um o que é seu, não prejudicar ninguém e zelar pela dignidade da própria Justiça, para, enfim, por meio de seus julgamentos, promover a efetiva ordem pública e, por consequência, a tão esperada paz social.

Todavia, assim como o médico não pode dar ao paciente o melhor tratamento a partir de uma consulta de apenas um minuto, também não pode um juiz proferir decisão justa se der ao processo apenas um minuto de sua atenção. De se imaginar então como poderia um colegiado de cinco juízes debater a melhor solução para um caso em apenas 60 segundos. O presidente da turma apregoa o caso e seus integrantes têm dez segundos cada um para expor a sua posição.

Não pode haver nada pior em termos de eficiência.

Em contraponto à histórica afirmação de César a Pompéia, não basta que alguém aja incorretamente, é preciso também que pareça incorreto.

Se um juiz de primeira instância confessasse idêntico procedimento, certamente seria encaminhado à corregedoria ou ao CNJ.

A bem da verdade, mais de 90% dos recursos não chegam a ser julgados. O STJ deixa de conhecê-los, sob o pretexto, quase sempre incorreto, de não preenchimento de requisitos de admissibilidade, ora por ausência de prequestionamento, mesmo com todas as questões discutidas desde a peça inicial do processo, ora pela impossibilidade de revolvimento de provas, mesmo em casos em que se discute exclusivamente matéria de direito. Em outros termos, num conhecido jogo de palavras, sempre encontra um pretexto, ainda que falso, para negar seguimento à grande maioria dos recursos.

Aliás, com a suspeita colaboração dos tribunais nos Estados, que invariavelmente, com o mesmo jogo-padrão de palavras, negam seguimento aos recursos aos tribunais superiores, o STJ não julga os recursos especiais, mas os agravos dos despachos denegatórios e, assim, com esse artifício danoso à credibilidade da própria Justiça e na ilegal defesa da referida produtividade formal, além de evitar convenientemente em quase todos os casos a sustentação oral dos advogados (não cabível em princípio nos agravos), ainda tira de letra (ou da letra da lei) uma solenidade que atrapalha dita produtividade, isto é, o efetivo debate entre os integrantes do colegiado.

Chega a tal ponto a absurda pressa da corte central em devolver os processos à origem que conhecidos advogados de Brasília, maldosamente, já apelidam o respeitável STJ de "Jarizão", numa pejorativa referência aos órgãos administrativos colegiados que, embora tendo a atribuição de examinar recursos de multas de trânsito, preferem apenas carimbar todos os casos, sem exceção, com a estampa: indeferido.

É como se aquela superior corte fosse composta não por juízes comprometidos com a justiça, mas por economistas, despachantes ou estatísticos, profetas do tribunal da produtividade, num sistema de julgamentos que não demora nem o tempo do acionamento da balança e do martelo, mas apenas o minuto necessário para bradar aos infelizes recorrentes: "Nega-se o seguimento" ou "Nega-se conhecimento". E o faz sempre com a cruel ponta da espada, sem qualquer preocupação com as consequências sociais.

Se a elevada corte, com esse péssimo novo e produtivo hábito, não parece tributar o menor respeito ao cidadão, pior ainda aos advogados, porque insinua, ainda que implicitamente, que os recursos não chegam a ser julgados em virtude de falhas formais constatadas nas petições e razões de recursos, que poderiam ser evitadas se os advogados estivessem profissionalmente qualificados para a correta interposição. Isso não é verdade. Cada dia mais os escritórios de advocacia se estruturam para o correto cumprimento de seu dever. Aliás, diversos deles, embora integrados por professores especializados em recursos especiais, também não conseguem dar normal seguimento à maioria de seus recursos. E, além disso, os advogados ainda inseguros, em geral, contratam colegas especializados para recorrerem.

A ironia é que, confessadamente, diversos honrados ministros, antes de chegarem ao STJ, não haviam formulado profissionalmente ao menos um recurso especial. E agora, já no altíssimo trono, aviltam a dignidade dos advogados, apesar de toda a reverência que lhes dispensam, ao esmerarem-se na formulação de seus recursos especiais, interpostos só excepcionalmente, quando efetivamente cabíveis, mas quase sempre em vão.

O que se espera é que o advogado volte a ser respeitado como outrora, no mínimo com o efetivo, correto e leal exame de seus recursos.

A desvantagem da idade é ter saudade. Há quatro décadas, bastava um advogado se aproximar da porta de um cartório para levantarem-se dois ou três qualificados escreventes para ao menos cumprimentá-lo, sempre indagando todos sobre como atendê-lo da melhor forma. Hoje, é preciso que quatro ou cinco advogados se encostem no balcão do cartório e ainda façam algum barulho para, com sorte, serem "atendidos" por um servidor mal-educado que, sem dizer "bom dia" ou "boa tarde" e sem se levantar da cadeira, pergunta com voz agressiva: "O número do processo?" (sem o mínimo "por favor, senhor").

Com o advento do processo digital, então, o antes afetuoso relacionamento entre os componentes da chamada família forense tornou-se uma praça de apáticos que fazem questão de manterem-se desconhecidos apesar de encontrarem-se cotidianamente. Situação que faz lembrar Cecília Meireles, para quem "não se morre de doença, não se morre de idade; morre-se da indiferença".

Julgar é examinar com cuidado o conflito apresentado, dando-lhe a melhor solução. Deixar de dar seguimento ou conhecimento ao recurso não é julgar, é apenas lavar as mãos, pouco importando as consequências.

O pior de tudo é que, quando o STJ julga, em casos raríssimos, o mérito dos recursos, sobretudo em causas importantíssimas para toda a sociedade, acaba julgando mal.

Para não delongar, considere-se apenas um exemplo, o do reajuste as prestações dos planos de saúde. Num país em que a inflação há muito está próxima de zero, nos últimos anos, as operadoras de planos coletivos de saúde têm se enriquecido ilicitamente com reajustes anuais de 20%, sob a alegação de aumento de sinistralidade e revisão contratual por imprevisibilidade de fato superveniente, incabível nos contratos aleatórios.

Como mais de 90% dos homens são apáticos, conforme a teoria do homem escravo, de Aristóteles, esse percentual se conforma com o abuso e nem reclama. Tanto que, somente em 2018, cerca de 30% de titulares de plano de saúde preferiram migrar em silêncio para o SUS. A grande maioria dos 10% restantes reclama do reajuste abusivo só por telefone e se cala com qualquer resposta. A grande maioria do grupo restante dirige-se ao Procon e se cala com qualquer solução, ainda que desfavorável. E, assim, a pequena minoria restante (talvez 0,1%) busca o último reduto do cidadão, o Judiciário, e pouquíssimos prejudicados chegam ao STJ, que nega conhecimento à maioria dos recursos.

Pois bem. Ao simplesmente lavar as mãos, a Superior Corte, como se vê, já prejudica milhões de cidadãos, favorecendo, ainda que por omissão, o enriquecimento ilícito das operadoras de saúde. Mas, para piorar, nos casos que vem julgando ultimamente pelo mérito, ainda acaba, por absurdo, permitindo o exorbitante reajuste por aumento de sinistralidade, com a expressa homologação do abuso (ex. STJ, 3ª Turma, AgInt AREsp 1431218/SP, julg.30/3/2020, public. DJe 1/4/2020), erro inadmissível, com todo o merecido respeito, para a augusta corte que pretende se intitular Tribunal da Cidadania.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!