Opinião

A Lei 14.073/20 e a responsabilidade penal dos dirigentes de entidades desportivas

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19 de outubro de 2020, 14h07

Como não se pode deixar de reconhecer, a sociedade avança em saltos cíclicos de modernização. O Direito, enquanto instrumento de regulação de fatos sociais, precisa acompanhar o seu desenvolvimento para se adequar à realidade que se impõe, sob pena de se tornar obsoleto e incapaz de cumprir com os seus fins. Em meio a esse contexto, o Direito Penal brasileiro, enquanto principal instrumento de controle social, vem experimentando uma salutar reorientação de suas prioridades, como outrora abordou Greco (2017) [1], passando a abarcar ilícitos praticados por aqueles que historicamente gozavam de certa imunidade diante da persecução penal.

Sob o calor desse cenário, dimensionado pela pandemia da Covid-19, foi publicada a Lei 14.073/20, que, além de dispor sobre ações emergenciais destinadas ao setor esportivo a serem adotadas durante o estado de calamidade pública, cuidou de alterar as Leis nºs 9.615/ 1998 (Lei Pelé) e 13.756/2018.

Entre as medidas, encontra-se a responsabilização dos dirigentes de entidades esportivas, que recebe novos cânones interpretativos para sua viabilização. Se é certo que não há uma necessária correlação entre aquilo que o legislador pretende positivar e aquilo que moralmente se reprova, não é de rigor negar por completo a influência exercida pelos fatos sociais no processo de construção do Direito. Mesmo não sendo uma condição necessária, as valorações sociais impactam na construção de políticas criminais. Situação outra não parece ter sido com o tratamento dado pelo legislador às práticas de ilícitos no desempenho da gestão da entidade desportiva, ante os recentes casos notoriamente divulgados de irregularidades na administração de agremiações esportivas.

Com a nova redação da Lei Pelé, em função do acréscimo dos artigos 18-B, 18-C, 18-D e 18-E, não pende mais qualquer dúvida quanto à possibilidade de sujeição dos bens dos dirigentes das entidades esportivas à desconsideração da personalidade jurídica, servindo-os de garantia geral para a satisfação de eventuais reparações de ilícitos praticados em detrimento da pessoa jurídica, ante sua responsabilidade solidária e ilimitada, desde que tenham agido com culpa grave ou dolo.

Além disso, há o privilégio à situação fática, pois a gestão irregular ou temerária geradora de riscos excessivos e irresponsáveis ao patrimônio da entidade poderá ser imputada não só há quem exerça formalmente algum cargo de direção, mas também àqueles que, de fato, tenham poder de decisão na gestão da entidade, incluído os seus administradores.

Não obstante, buscando regular o que é comum na prática, há também a previsão de que o dirigente poderá ser responsabilizado solidariamente quando tiver conhecimento do não cumprimento dos deveres estatutários ou contratuais por seu antecessor ou pelo administrador competente, conforme dispõe o artigo 18-B, §3º, da Lei Pelé. A razão de ser da norma é criar um dever de cuidado, consistente na comunicação do fato ao órgão estatutário competente, sob pena de ser solidariamente responsável caso se omita e não o faça, impedindo, assim, que se posterguem os efeitos de uma gestão irregular ou temerária ao vincular normativamente o agente ao ilícito a partir da tomada de ciência.

No entanto, a questão de maior revelo diz respeito à responsabilização penal do dirigente desportivo, não afastada por disposição expressa do artigo 18-D, caput, da Lei Pelé, mas com premissas dogmáticas que não se adequam a alguns de seus institutos, como a responsabilidade solidária, por exemplo, inadmissível em matéria penal. No entanto, a nova norma traz parâmetros hermenêuticos aplicáveis, como no caso do dever de comunicar o ilícito ao órgão competente, a conduta juridicamente esperada para que o dirigente se exima de responsabilização.

Saliente-se que a punibilidade pelo cometimento de delitos no contexto do exercício da administração da atividade desportiva não restava obstada antes do advento da lei que ora se aborda. Contudo, o estado de coisas que se apresenta exige um esforço dogmático para a elaboração de propostas coerentes.

Observe-se, por exemplo, a denúncia oferecida contra membros integrantes dos órgãos de cúpula da associação esportiva Cruzeiro Esporte Clube pelo Ministério Público de Minas Gerais [2]. Na peça acusatória inicial, narram-se crimes de lavagem de dinheiro, apropriação indébita, falsidade ideológica e formação de organização criminosa. Nesse caso, a entidade desportiva figura como vítima, o que levou, inclusive, o MP-MG a pedir que fosse fixada indenização ao CEC no montante do prejuízo causado, ante a constatação de danos materiais, morais coletivos e à imagem do clube. Por essa razão, a punibilidade resta viabilizada com a discriminação de cada uma das condutas lesivas ao patrimônio da entidade, com a consequente comprovação da ocultação ou da dissimulação do capital indevidamente apropriado, além da estrutura organizada para a prática de delitos, tudo isso viabilizado com a utilização de documentos elaborados com informações falsas, respondendo cada autor ou partícipe na medida de sua culpabilidade.

No entanto, para os casos em que a pessoa jurídica é utilizada como interposta pessoa para a prática de crimes, a exemplo da associação esportiva Clube de Regatas do Flamengo no triste episódio do incêndio que desencadeou a morte de dez atletas das suas categorias de base [3], algumas questões se impõem. Embora não haja, no plano fático, maiores dúvidas quanto à materialidade do delito, no plano normativo, a atribuição de responsabilidade penal é dificultosa. O Flamengo, enquanto entidade, é responsável criminalmente? É possível falar no preenchimento do elemento subjetivo do tipo, agindo uma entidade com culpa? Se não, estar-se-á diante de um vácuo de juridicidade, deixando sem respostas situações cuja relevância penal parece ser latente, ante a dificuldade de imputação?

Como, no Brasil, só é possível a responsabilização da pessoa jurídica nos crimes ambientais, essa proposta logo carece de sentido. Assim, passa-se a buscar os critérios para viabilizar a punição de quem agiu em nome da entidade, cometendo delitos no interior de sua estrutura. Nessa linha, se as decisões tomadas em organizações são resultado da soma de inúmeras vontades, faz-se necessário comprovar o liame subjetivo entre todos os agentes para, conscientemente, empreenderem as condutas criminosas que a eles se imputam, se o fundamento for o artigo 29 do Código Penal (CP). Caso não seja possível a comprovação, ante eventual impossibilidade de se precisar as contribuições causais ou mesmo de serem elas insuficientes para fundamentar uma responsabilização penal quando consideradas isoladamente, também não parece ser o caso da aplicação da teoria do domínio do fato na forma do domínio de aparatos organizados de poder, já que os dirigentes, embora detenham um domínio sobre a causa de resultado, não se valem de uma organização apartada da ordem jurídica para cometer crimes, vez que a entidade desportiva se desenvolve dentro do Direito, ainda que eventualmente seja utilizada para a prática de crimes, da forma como teorizou Claus Roxim.

Desse modo, restando insuficiente o artigo 29, CP, ao passo que inaplicável a teoria do domínio do fato, parece possível a punição do dirigente pela via da omissão imprópria, com fundamento no artigo 13, §2º, CP, desde que preenchidos todos os requisitos da punibilidade, sobretudo a possibilidade jurídica de agir, do qual se inclui a capacidade física de agir como esperado e a cognoscibilidade do contexto fático diante do qual a ação é esperada. No entanto, é preciso assumir que os dirigentes possuem um dever de garantia, consistente no emprego das condutas necessárias para manter a fonte de perigo "entidade desportiva" dentro dos patamares tolerados, da forma como ocorre nas sociedades empresárias, como explica Bottini (2018) [4]. Sob essa ótica, o dirigente, caso tenha ciência da situação de perigo provocada pela entidade desportiva, mas não empregue a conduta juridicamente esperada para evitar o resultado, poderia responder por este como se causador fosse.

Por isso, todo esse estado de coisas exigirá um esforço dogmático para elaboração de respostas compatíveis com a dogmática penal institucionalizada, seja para confirmar, seja para negar o que proposto, lançando-se a Lei 14.073/20 como salutar instrumento à readequação de alguns dos cânones interpretativos, sobretudo no que tange à conduta que juridicamente se espera dos dirigentes, garantindo que o Direito cumpra com sua função de orientar claramente as condutas dos particulares, sem tornar inviável o exercício das atividades diretivas.

 


[1] GRECO, Luís. Prefácio. In: ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. 1. ed. — São Paulo: Marcial Pons, 2017.

[4] BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. 1. ed. — São Paulo: Marcial Pons, 2018.

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