Justiça Tributária

O STF e a irrazoável equivalência financeira das taxas de fiscalização

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

19 de outubro de 2020, 8h00

Spacca
Existem alguns temas que são antigos e recorrentes e, exatamente por isso, muitas vezes deixamos de prestar a devida atenção a eles. As taxas fazem parte desse rol. Com impacto financeiro muito menor que os impostos e as contribuições, são analisadas sem o mesmo afinco teórico e, quando menos se espera, nos deparamos com alguns entendimentos um pouco fora do lugar, que merecem reflexão mais acurada. O espaço desta coluna apenas permitirá tratar o assunto de forma telegráfica isto é, se alguém ainda souber o que era um telégrafo.

Comecemos pelo que se entende ser consensual. O fato gerador das taxas decorre de ações do Estado consistentes no exercício do poder de polícia ou no fornecimento de serviços públicos, sempre de modo específico e divisível a determinados beneficiários por isso não possuem caráter arrecadatório, mas de comutatividade ou retributividade.

É óbvio que o Estado arrecada valores em decorrência da cobrança das taxas, mas para o custeio daquela específica fiscalização ou prestação de serviço, e não para custeio de toda a máquina estatal. Essa característica diferencia as taxas dos impostos, estes calcados em ações dos contribuintes, sem qualquer expectativa de contraprestação direta pelo Estado. Ou seja, os impostos custeiam a máquina estatal; as taxas custeiam aquela específica fiscalização ou prestação de serviço, dirigida àquele específico segmento econômico que está sendo fiscalizado ou beneficiado por aquele serviço, o qual deve ser específico e divisível – exatamente para permitir a cobrança individualizada. Nos impostos, é a ação do contribuinte que o faz incidir na norma tributária; nas taxas, é imprescindível que haja ações do Estado para sua cobrança, seja exercendo a fiscalização ou a prestação do serviço. Exatamente por isso que é que as taxas não podem utilizar a base de cálculo que é própria dos impostos (artigo 145, parágrafo 2º, CF).

Destaca-se: através de impostos se arrecada para o amplo custeio da máquina estatal; através de taxas se arrecada para o custeio daquela específica atividade estatal. Logo, para a cobrança de taxas há de haver uma relação de razoável equivalência financeira entre o custo real da atuação estatal referida ao contribuinte e o valor que o Estado pode exigir de cada contribuinte sujeito àquela fiscalização ou prestação de serviços. Caso isso não ocorra, haverá confisco (artigo 150, IV, CF), em face de desproporcionalidade entre a cobrança e o custeio pretendido. Isso é assente há anos na jurisprudência do STF, do STJ e de vários tribunais estaduais e federais. Nesse sentido, ver, por todos, o RE 554.951, Relator Ministro Dias Toffoli e a ADI-MC-QO 2.551, relatada pelo ministro Celso de Mello. O confisco aqui referido tem a conotação de  coibir cobranças abusivas, de defesa de um direito fundamental dos contribuintes, e não de mensuração milimétrica dos resultados. O risco aqui apontado é o de as taxas se tornarem uma válvula de escape para a majoração indiscriminada da carga tributária, ao invés de serem usadas para o custeio daquela fiscalização/serviço específico.

Essa mesma lógica foi utilizada recentemente pelo Ministro Barroso para conceder a liminar pleiteada na ADI-MC 5.374, impetrada pela Confederação Nacional da Indústria contra a cobrança de Taxa de Fiscalização de Recursos Hídricos (TFRH), instituída pelo Estado do Pará (Lei 8.091/14). Argumentou haver plausibilidade da alegação de sua inconstitucionalidade “por conta da desproporcionalidade entre o valor cobrado e o custo da atividade estatal disponibilizada”. Em 22/06/20 a liminar foi referendada pelo Plenário do STF, por unanimidade.

Este raciocínio também foi adotado em 20/04/20, na ADI 5.480, relatada pelo Ministro Alexandre de Moraes, que, por unanimidade julgou inconstitucional da Taxa de Fiscalização de Petróleo e Gás (TFPG), instituída pelo Estado do Rio de Janeiro (Lei 7.182/15). Na decisão foi referido que usar como base de cálculo a quantidade de barris de petróleo extraído ou unidade equivalente de gás “não guarda congruência com os custos das atividades de fiscalização exercidas pelo órgão ambiental estadual (…). Desproporcionalidade reconhecida”.

Pois bem, essa linha decisória está ruindo na ADI 4.785, ora sob apreciação do Plenário Virtual do STF. Discute-se a cobrança de Taxa de Fiscalização sobre Recursos Minerais (TFRM) instituída pelo Estado de Minas Gerais (Lei 19.976/11, alterada pela Lei 20.414/12). O ministro relator conclui “não ser desproporcional a base de cálculo referente à TFRM, (…) haja vista que traduz liame razoável entre a quantidade de minério extraído e o dispêndio de recursos públicos com a fiscalização dos contribuintes”. O placar, até o presente momento, aponta 5 votos pela constitucionalidade da norma (Ministros Fachin, seguido por Celso de Mello, Cármen Lúcia, Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski) e dois 2 votos por sua inconstitucionalidade (Ministros Marco Aurélio e Roberto Barroso).

O ponto em questão é: o que mudou? Porque usar como base de cálculo “barris de petróleo” é inconstitucional e usar “toneladas de minério” é constitucional? Porque usar barris de petróleo “não guarda congruência com os custos das atividades de fiscalização exercidas pelo órgão ambiental estadual” e usar toneladas de minério pode vir a guardar congruência?

Como paradigma sobre o efeito confiscatório é apontado o RE 448.432 (Min. Joaquim Barbosa), mas este diz respeito a impostos e não a taxas, que, como visto, possuem diferentes pressupostos. Também é alegado o ARE 712.285 (Min. Celso de Mello), que se refere a multas e não a taxas – incabível, pois.

Sobre o proveito econômico da demanda é apontada a ADI 2078 (Min. Gilmar Mendes), que se refere a custas judiciais, porém no julgamento ficou assente que estas ou possuem, ou devem possuir teto para sua cobrança, o que diferencia fortemente seu aspecto financeiro das taxas sob análise. No mesmo sentido, no RE 232.393 (Min. Carlos Velloso) ficou assente que a taxa do lixo deve ter como parâmetro que “o custo do serviço constitui a base imponível da taxa”, o que não ocorre no caso em apreço.

Por fim, no RE 416.601 (Rel. Min. Carlos Velloso), sobre a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA) do IBAMA (Lei 10.165/00), constata-se que sua base de cálculo varia em função da “potencialidade poluidora” da atividade, e não de sua receita bruta. Observe-se que “toneladas de minério” ou “quantidade de barris de petróleo” tem direta correlação com a receita bruta dessas atividades.

A despeito de estar sendo julgada a Lei do Estado de Minas Gerais (ADI 4.785), outras ADIs estão na fila para serem analisadas, sobre o mesmo tema (ADI 4.786/PA e 4.787/AP) e sobre temas correlatos, uma vez que, em face da crise econômica, os Estados e Municípios encontraram nas taxas de fiscalização uma forma de expandir ilimitadamente sua arrecadação. Basta ver o valor arrecadado e o orçamento dos órgãos encarregados das atividades fiscalizatórias, para se constatar que a equação financeira dessas taxas está desequilibrada – não há nada de razoável equivalência financeira em sua incidência e arrecadação.

É necessário estar atento para que os Tribunais uniformizem sua jurisprudência, mantendo-a estável, íntegra e coerente (CPC, artigo 926).

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    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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