Discricionariedade para processar

Promotores e procuradores dos EUA prometem não executar leis antiaborto

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17 de outubro de 2020, 10h39

Mais de 60 promotores e procuradores dos EUA assinaram uma declaração conjunta em que prometem não executar leis que criminalizam o aborto, mesmo que a decisão da Suprema Corte que legalizou o aborto no país em 1973 (caso Roe v. Wade) seja revogada em um futuro próximo pela sólida maioria conservadora que irá se instalar na corte com a nomeação da juíza Amy Coney Barrett.

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Para procuradores e promotores dos EUA  assinaram declaração conjunta em que prometem não executar leis que criminalizam o aborto
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A legalização versus criminalização do aborto é, provavelmente, a questão mais contenciosa no país. Embora a maioria dos americanos seja a favor do aborto (61% segundo pesquisa de opinião pública da Pew Research Center, de 2019), a minoria (de 38%) não descansa em sua luta, iniciada em 1973, para proibir definitivamente o aborto no país. A maior força do movimento antiaborto vem dos cristãos, notadamente dos evangélicos brancos.

Desde o ano passado, vários estados republicanos têm aprovado leis que criminalizam ou dificultam o aborto de alguma forma, apesar do precedente da Suprema Corte. Tais leis são contestadas na justiça por organizações liberais — e isso é o que as organizações conservadoras querem. Elas esperam que as disputas cheguem à Suprema Corte, onde uma maioria de ministros conservadores possa, a qualquer momento, reverter sua própria decisão.

Em sua declaração conjunta, os promotores e procuradores eleitos, filiados à organização Fair and Just Prosecution, afirmam que essas leis preveem longas penas de prisão e multas para médicos, enfermeiros, anestesistas, quaisquer outros profissionais de saúde, recepcionistas e até mesmo para as pacientes.

Mas não consideram as necessidades e os sofrimentos das vítimas de abuso sexual infantil, estupro, incesto, tráfico humano e violência doméstica. "Leis que voltam a vitimizar e traumatizar vítimas são abusivas. É obrigação do promotor proteger e buscar justiça a favor de todos os membros da comunidade, incluindo vítimas que são, frequentemente, as mais vulneráveis e menos empoderadas", diz o documento.

O exercício sensato da discricionariedade sugere focar os recursos limitados da instituição nos molestadores de crianças ou estupradores — não em processar a vítima ou os profissionais de saúde que cuidam e tratam dela, afirmam os promotores.

"Os recursos em nosso sistema de justiça criminal são inerentemente limitados. Acreditamos que o uso sensato da discricionariedade requer balancear esses recursos limitados, atendendo ao mesmo tempo às necessidades de segurança de nossas comunidades. Em nossa visão, os recursos são mais bem utilizados para prevenir e lidar com crimes sérios que impactam nossa comunidade, em vez de executar leis tais como essas, que dividem nossa comunidade, criam opções inviáveis para as mulheres e provedores de tratamento de saúde e corroem a confiança no sistema judicial", diz o documento.

Leia o texto da "Declaração Conjunta dos Promotores Eleitos", de outubro de 2020 (os nomes dos assinantes podem ser vistos na versão original em inglês):

"Como promotores [e procuradores-gerais] eleitos, assumimos o compromisso de proteger a segurança e o bem-estar de todos os indivíduos de nossas comunidades. Também somos encarregados de proteger a integridade de nosso sistema judicial, de defender a Constituição e o Estado de Direito. O cumprimento dessas obrigações é equiparável. Sabemos, por nossa experiência coletiva que, quando nossas comunidades confiam em nós e veem o exercício justo, equitativo e sensível da discricionariedade dos promotores, elas ficam mais inclinadas a trabalhar com todas as partes de nosso sistema judicial, conforme buscamos promover comunidades mais seguras e mais saudáveis.

Recentemente, temos observado a  aprovação de leis no país que impõem amplas restrições ao aborto. Muito dessas novas legislações são ambíguas ou omissas sobre quem pode ser responsabilizado criminalmente, deixando em aberto a possível criminalização de pacientes, profissionais de saúde, instituições de saúde e, possivelmente, outros auxiliares nesses procedimentos médicos.

Apesar de algumas dessas leis listadas abaixo tenham sido consideradas inconstitucionais, a recente e contínua promulgação de leis restritivas demonstra as maneiras com que os direitos reprodutivos têm sido e continuarão a ser atacados, bem como a vontade de legislativos estaduais em toda a nação de criminalizar as decisões pessoais de tratamento de saúde — e também as ações dos profissionais de saúde:

  • Em julho de 2020, o estado do Tennessee promulgou a lei do “batimento cardíaco”, impondo restrições extremas sobre a realização de abortos, incluindo banimento gestacional tão cedo quanto seis semanas; de acordo com a lei, as pessoas condenadas poderão ser sentenciadas à prisão por 3 a 15 anos e a pagar multas de até US$ 10 mil.

  • Idaho e Utah promulgaram recentemente dispositivos de banimento automático (trigger bans), que irão proibir o aborto, com exceções limitadas, se o precedente Roe v. Wade for revogado ou se uma emenda constitucional restringindo os direitos ao aborto for aprovada.

    • A lei de Idaho pode resultar em acusações de crime contra provedores de tratamento de saúde que administrarem abortos, por violação da lei, com penas de 2 a 5 anos de prisão.

    • A lei de Utah pode resultar em acusações de crime contra um médico ou uma mulher que terminar sua gravidez, com penas de 1 a 15 anos de prisão e multas de até US$ 10 mil.

  • Uma lei de Alabama de 2019 impõe pena mínima de prisão de 10 anos e pena de prisão de até 99 anos a médicos que realizarem abortos – e a lei não contém escapatória para vítimas de estupro ou incesto.

  • Uma lei de Missouri de 2019 baniu o aborto a partir de aproximadamente oito semanas de gravidez, o que ocorre frequentemente antes mesmo que a mulher descubra que está grávida, sem exceções para casos de estupro ou incesto – e médicos enfrentam penas de prisão de 5 a 15 anos.

  • De acordo com uma lei da Geórgia de 2019, um procurador federal pode, a seu critério, apresentar acusação e pedir a prisão de qualquer pessoa envolvida na realização de um aborto, mesmo como auxiliar; além disso, não há proibição explícita nessa lei contra criminalizar mulheres que fazem suas escolhas médicas.

  • Em meio à pandemia global, o estado de Arkansas baniu os procedimentos de aborto logo no início da pandemia de COVID-19, ao determinar que o serviço de aborto não é essencial.

Médicos, enfermeiros, anestesistas, provedores de tratamento de saúde, recepcionistas de clínicas – virtualmente qualquer pessoa que realizar ou prestar assistência na realização ou no arranjo do que é um procedimento médico legal, baseado em precedente por quase meio século – e, em alguns estados, mesmo a própria paciente – podem ser responsabilizados criminalmente de acordo com essas leis.

Como promotores (ou procuradores) eleitos, fizemos o juramento de defender a Constituição dos EUA e as Constituições de nossos respectivos estados. A Suprema Corte dos EUA, ao decidir Roe v. Wade, determinou que todas as mulheres têm o direito fundamental à privacidade, o que é amplo o suficiente para abarcar a decisão de uma mulher sobre se deve ou não por um fim a sua gravidez. Como alguns promotores eleitos já notaram, as amplas restrições previstas nas leis desses estados parecem ser inconstitucionais, de acordo com Roe v. Wade. Muitos de nós compartilhamos essa visão jurídica, mas nosso compromisso de não processar mulheres que fazem um aborto e profissionais de saúde que fornecem o tratamento não se sustentam nessas questões apenas – e, de fato, irão prevalecer mesmo que as proteções de Roe v. Wade sejam corroídas ou eliminadas.

Nem todos entre nós concordam nessa questão do aborto em nível pessoal ou moral. E nem todos entre nós estão em estados onde os direitos das mulheres são ameaçados por leis que criminalizam o aborto. O que nos congrega é nossa visão de que os promotores não devem e não irão criminalizar decisões de saúde como essas – e acreditamos que é nossa obrigação, como promotores eleitos encarregados de proteger a saúde e a segurança de todos os membros de nossa comunidade, esclarecer nossos pontos de vista.

Aos promotores é confiada uma imensa discricionariedade. Com essa discricionariedade, vem a obrigação de usá-la sensatamente para buscar justiça. E, na essência da busca da justiça, deve estar necessariamente a promoção de políticas e práticas que protegem o bem-estar e a segurança de todos os membros de nossa comunidade.

Os recursos em nosso sistema de justiça criminal são inerentemente limitados. Acreditamos que o uso sensato da discricionariedade requer balancear esses recursos limitados, ao mesmo tempo que atenda às necessidades de segurança de nossas comunidades. Em nossa visão, os recursos são mais bem utilizados para prevenir e lidar com crimes sérios que impactam nossa comunidade, em vez de executar leis tais como essas, que dividem nossa comunidade, criam escolhas insustentáveis para as mulheres e provedores de tratamento de saúde e corroem a confiança no sistema judicial.

Além disso, essas medidas deixam de considerar as necessidades e o sofrimento das vítimas de abuso infantil, estupro, incesto, tráfico humano ou violência doméstica, muitas das quais experimentam traumas de longa duração. Nas últimas décadas, os executores da lei vêm trabalhando corretamente no sentido de adotar abordagens baseadas em provas e informadas sobre traumas, que incluem reconhecer que nem todas as vítimas de tais crimes são capazes ou desejam denunciá-los imediatamente e que os atrasos em denunciar ou reticências na denúncia são consistentes com a experiência do trauma. Também sabemos, como promotores, que muito frequentemente o processo de denunciar volta a criar traumas e não é consistente com as necessidades da vítima.

Apesar de alguns estados terem previsto exceções para vítimas de estupro e incesto, essas promulgações recentes ignoram grandemente a realidade e o sofrimento das vítimas. Essas leis não levam em consideração que as vítimas podem não denunciar um incidente de estupro dentro do tempo especificado em lei ou não denunciar nunca, o que força as vítimas a viver com a escolha de denunciar e divulgar os detalhes do estupro ou correr o risco de ficar conectada com o estuprador por toda a vida.

As leis que voltam a vitimizar e a traumatizar são abusivas. É obrigação do promotor proteger e buscar justiça em benefício de todos os membros da comunidade, incluindo as vítimas, que são frequentemente mais vulneráveis e menos empoderadas. O exercício sensato da discricionariedade sugere focar os recursos limitados da instituição nos molestadores de crianças ou estupradores, não em processar a vítima ou os profissionais de saúde que cuidam e tratam dela.

Manter as comunidades seguras requer, inerentemente, promover a confiança, que seria profundamente corroída pela execução dessas leis. Para melhor promover a segurança pública, os promotores devem ser percebidos por suas comunidades como dignos de confiança, legítimos e justos – valores que podem ser minados pela execução de leis que causam danos, provocam dificuldades desnecessárias e levam a decisões traumáticas de muitos em nossa comunidade.

Em suma, como promotores eleitos, com discricionariedade para processar, decidimos não processar indivíduos com base nessas leis profundamente preocupantes. O precedente jurídico, como estabelecido pela mais alta corte da nação, mantém por quase 50 anos que as mulheres têm o direito de tomar decisões sobre seu próprio tratamento médico, incluindo, sem se limitar a, fazer abortos.

A execução de leis que criminalizam decisões de tratamento de saúde pode esvaziar esse precedente, impor escolhas inviáveis às vítimas e instituições de saúde e corroer a confiança na integridade de nosso sistema judicial. Para cumprir nossas obrigações, como promotores e administradores da justiça, de preservar a integridade do sistema e de manter nossas comunidades seguras e saudáveis, é imperativo que usemos nossa discricionariedade para nos recursarmos a processar escolhas pessoais de tratamento de saúde, que são criminalizadas por essas leis".

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