Opinião

A revisão periódica da prisão preventiva: Direito comparado e pauta hermenêutica

Autor

  • Marcello Miller

    é advogado ex-procurador da República ex-promotor de Justiça do Distrito Federal ex-diplomata Bacharel em Direito e mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

17 de outubro de 2020, 6h37

Recente concessão de liminar em Habeas Corpus pelo ministro Marco Aurélio em favor de notório líder do PCC criou acerba controvérsia sobre o instituto do reexame periódico da prisão preventiva, introduzido no CPP  pela Lei 13.964/2019, conhecida como pacote "anticrime". Este artigo sugere elementos — em especial do Direito comparado — para uma interpretação equilibrada desse instituto.

O novo parágrafo único do artigo 316 do CPP assim dispõe:
"Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal."

A norma tem dois fundamentos complementares. O primeiro, constitucional, é a do princípio da excepcionalidade da prisão provisória (artigo 5º, LXVI, da Constituição de 1988). O segundo, processual, é a instabilidade dos motivos autorizadores da prisão preventiva, que podem ficar preclusos com a marcha do procedimento ou desaparecer com a alteração das circunstâncias e/ou o próprio alongamento temporal da medida.

Nesse sentido, a prisão preventiva decretada para garantia da instrução criminal não deve ir além do encerramento da instrução, e a decretada para evitar reiteração delituosa pode deixar de ser necessária se desaparecerem as condições específicas da dinâmica criminosa (e.g. crimes cuja prática dependesse do exercício de função pública por um dos autores não podem ser reiterados se este foi eficazmente afastado da atuação estatal).

O reexame do cabimento da prisão preventiva deveria, em rigor, ser iterativo: o juízo da decretação da medida deveria estar sempre atento à atualidade dos respectivos fundamentos. A experiência mostra, contudo, que não só isso não ocorre, como o Poder Judiciário não raro tende à inércia em matéria de prisão e liberdade — imputados livres tendem a permanecer livres, e imputados presos, a ficar presos.  

O exame do Direito comparado mostra que ordenamentos jurídicos que constituem referências culturais para o Brasil contém soluções positivadas para a inércia jurisdicional em matéria de prisão cautelar. A solução mais frequente é a fixação de prazo para a custódia, findo o qual incidem regras bem definidas de cabimento de prorrogação — é o que ocorre nos ordenamentos francês, italiano, espanhol, alemão, suíço e canadense. No ordenamento português, vige regra de feitio mais próximo da introduzida no Brasil pelo pacote "anticrime".

Com base na premissa de que o Direito comparado pode ser útil como método hermenêutico, segue breve exame desses ordenamentos e, em seguida, sugestão de pautas hermenêuticas para a inovação legislativa pátria.

O CPP francês [1] veicula regras de prazo e prorrogação de prisão cautelar em seus artigos 144, 145-2 e 145-3. Ela pode durar dois anos se a pena passível de ser imposta é inferior a 20 anos, três anos se superior e quatro anos para os crimes de tráfico de drogas, terrorismo, agenciamento sexual (proxenetismo) extorsão ou crimes cometidos por organização criminosa. Se, porém, a custódia cautelar excede um ano, as decisões tanto de prorrogação quanto de rejeição de pedido de liberdade, de competência do juiz das liberdades e da detenção, devem ser precedidas após contraditório entre as partes e conter indicações específicas que justifiquem concretamente o prosseguimento da investigação judicial e previsão de prazo para sua conclusão.

Na StPO, a Ordenança Processual Penal alemã [2], o imputado é titular de duas garantias distintas, previstas nos artigos 117, 118a, 121, 122 e 122a. A primeira é de requerer, a qualquer tempo, revisão da prisão cautelar, que inclui direito de audiência em juízo a cada requerimento, a ser designada em até duas semanas depois de ajuizado o requerimento, salvo se a última audiência tiver ocorrido menos de dois meses antes ou a custódia durar menos de três meses. A segunda é de que a prisão cautelar, ao alcançar seis meses de duração, deve ser submetida, caso o juízo processante ou o órgão de acusação entenda necessário mantê-la,  ao tribunal superior regional para reexame, somente podendo ser prorrogada se houver particular dificuldade, extensão incomum da investigação ou outro motivo relevante, caso em que a defesa deverá pronunciar-se e realizar-se audiência.

No Código de Processo Penal suíço [3], conforme seu artigo 227, a decretação de prisão preventiva pode ou não conter prazo de duração da medida. Caso contenha, o MP pode, até quatro dias antes do termo final, requerer prorrogação; caso não contenha, o requerimento de prorrogação deve ser feito até quatro dias antes de o período de custódia completar três meses. A corte de medidas compulsórias, competente para apreciar o requerimento, deve abrir vista à defesa por três dias e pode conceder prorrogação de três meses ou, em casos excepcionais, de seis meses.

O Código de Processo Penal italiano [4] apresenta, em seus artigos 297, 300 a 303 e 305 verdadeiro cipoal de regras de duração da prisão cautelar conforme pena máxima cominada ao tipo imputado e fase do processo e regras de prorrogação bastante abertas. Como garantia, ele estabelece  prazos totais (complessivi) de prisão cautelar, que se sobrepõem inclusive às prorrogações. O prazo total é de seis anos para crimes a que é cominada prisão perpétua ou pena máxima superior a 20 anos, quatro anos para crimes a que é cominada pena máxima superior a seis anos e inferior a 22 anos para os demais.

O Código de Processo Penal canadense [5] cria, em seu artigo 525, solução interessante. O diretor do estabelecimento penitenciário é obrigado a requerer ao juízo competente a designação de audiência sobre a continuação da prisão cautelar imediatamente depois de decorridos 90 dias de sua duração sem que o julgamento tenha sido iniciado — a regra é, portanto, expressamente destinada a tutelar a celeridade do processo. Na audiência, o juízo deve avaliar se acusação ou defesa deram causa a qualquer delonga. Se entender que a marcha do procedimento é lenta, podendo resultar demora desarrazoada, pode determinar o que for cabível para acelerar o procedimento e designar nova audiência em outros 90 dias ou no prazo que entender razoável. Deve, por fim, reexaminar se persistem fundamentos para a custódia dentre os previstos em lei (necessidade de evitar evasão; proteção da comunidade; probabilidade de prática de crime; interferência na administração da justiça e manutenção da confiança na administração da justiça, em especial quando o crime é grave) e, em caso negativo, pôr o imputado em liberdade.

O Código de Processo Penal português [6] adotou solução com escopo de garantia mais abrangente que outros ordenamentos europeus. Ele fixa prazos máximos para a prisão preventiva, conforme fase do processo, tipo penal e dinâmica criminosa (artigo 215). Mas não prevê prazos intermédios sujeitos a prorrogação a requerimento do MP, e, sim, mecanismo de reexame periódico de ofício (artigo 213). No máximo em três meses depois de decretada a prisão preventiva ou do reexame mais recente, e também em determinados marcos processuais, o juiz deve reexaminar de ofício a manutenção da medida. O contraditório não tem a relevância que lhe dão outros ordenamentos, pois a previsão legal é de que o juiz deve ouvir o MP e o imputado "sempre que necessário". Não há cominação expressa de sanção processual à ausência do reexame.

A jurisprudência portuguesa, inclusive do Supremo Tribunal de Justiça, entende que, embora o excesso dos prazos máximos do artigo 215 enseje ilegalidade da prisão, o excesso de prazo para o reexame periódico constitui mera irregularidade e confere ao imputado direito apenas a que o reexame seja efetuado. O fundamento do tribunal para assim entender é de direito estrito: o CPP português não prevê que desse excesso de prazo resulte a extinção da medida nem excesso de prazo máximo: "(2) Ainda que se mostre excedido (em um dia) o prazo legal de reexame da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva (art. 213.º, do CPP), a manutenção desta não é ilegal, pois dessa irregularidade não resulta a extinção da medida (art. 214.º, do CPP) nem o excesso do prazo máximo da prisão preventiva, prazo esse determinado em função apenas das circunstâncias fixadas no art. 215.º, do mesmo Código. (3) O ter sido excedido o aludido prazo para reexame da prisão preventiva não integra nenhum dos fundamentos da providência de habeas corpus (art. 222.º, n.º 2, do CPP) (Ac. do STJ de 6.2.02, Acs STJ, X, 1)" (Ac. STJ 5-01.2005 — Processo 04P4831).

De volta ao CPP brasileiro, observa-se que o legislador de 2019 não instituiu, de forma expressa, prazos máximos para a prisão preventiva, limitando-se ao mecanismo de reexame periódico a que cominou sanção de ilegalidade da prisão. Surgem, então, duas possibilidades interpretativas. Por um lado, pode-se entender que a cominação de ilegalidade serve justamente como equivalente funcional dos prazos máximos, devendo ensejar por si só o relaxamento da prisão em caso de excesso de prazo de reexame. Por outro lado, pode-se entender que a cominação em tela  constitui reforço normativo dos efeitos do desaparecimento dos fundamentos do decreto de prisão, que agora enseja seu relaxamento, e não sua revogação, mas sem atuar por si só como indutora de ilegalidade do título de custódia.           

Ao inovar o regramento da prisão preventiva, o legislador de 2019 não fez distinções nem criou exceções previstas em praticamente todos os demais ordenamentos a propósito da extinção dessa medida por excesso de prazo. Com efeito, o Direito comparado revela a presença praticamente ubíqua de cláusulas de reserva para situações excepcionais e/ou disciplina própria quando o crime é mais grave

A propósito de situações excepcionais e crimes graves, não há razoabilidade em que, por exemplo, a prisão preventiva de pessoa incluída em regime disciplinar diferenciado em razão de seu alto risco para a sociedade se torne ilegal apenas como efeito da omissão de reexame. Figure-se que tenha sido excedido o prazo de reexame ainda no primeiro período, ou seja, 90 dias depois de efetivada a custódia — é pouco provável que, nesse período, tenham desaparecido os respectivos fundamentos.

Não se trata de exemplo extremo ou desconectado da realidade. É notória a existência de significativo contingente carcerário de alto risco no país e da presença de organizações criminosas armadas em todo o território nacional.

Nessas condições, embora a inovação legislativa esteja em sintonia com o esforço de outros países para limitar a extensão excessiva das prisões cautelares e confiná-las à medida do estritamente necessário, eliminando a possibilidade de que sejam manejadas como sucedâneos de pena, o exemplo acima assinala a existência de lacuna de razoabilidade na exegese mais literal do parágrafo único do artigo 316 do CPP. Deve-se preferir a exegese que concebe a cominação de ilegalidade como reforço normativo do desaparecimento dos motivos autorizadores da prisão: caso se torne negativo o juízo sobre a continuação do cabimento da prisão preventiva, ela deverá agora ser relaxada, e não apenas revogada.           

Devem reconhecer-se, ademais, a par da correta criação de da rotina procedimental do reexame, duas consequências jurídicas da cominação de ilegalidade, sob pena de indevida negativa de utilidade a palavra que o legislador claramente quis atribuir relevância: 1) passa a haver direito líquido e certo do preso provisório ao próprio reexame, em caráter de urgência, caso excedido o prazo correlato; e 2) ainda que o reexame seja de competência do juízo prolator do decreto de prisão, a negativa de relaxamento pode abrir via, ainda que muito estreita, de Habeas Corpus, desde que o desaparecimento dos motivos ensejadores da prisão preventiva seja evidenciado em cognição sumária, sem revolvimento de prova.

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    é advogado, ex-procurador da República, ex-promotor de Justiça do Distrito Federal e ex-diplomata. Bacharel em Direito e mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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