Diário de Classe

Fragmento sobre (des)caminhos nas ciências e o fenômeno jurídico

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17 de outubro de 2020, 8h00

1 — Primeiras palavras
Pensar sobre a verdade nos exige sempre, para além de uma certa dose de autocrítica, a problematização dos caminhos que percorremos para construir determinado raciocínio. Elaboramos juízos sobre todo tipo de situação a todo instante: acho bonita aquela pessoa; esta cadeira é confortável; o tempo está feio; esse programa do governo provoca injustiças; esta lei é inconstitucional. Ideias como essas passam por nossas cabeças constantemente, e, muitas vezes, confrontamo-nos com dúvidas sobre a sua veracidade: pensando melhor, aquela pessoa não é tão interessante; a mesa, na verdade, poderia ser um pouco mais baixa; lendo melhor o texto, a lei não é inconstitucional.

Isso tudo é muito natural. Analisar repetidas vezes assuntos que nos interessam é saudável, mas tem vezes que desejamos que houvesse um meio seguro para alcançar a resposta adequada. Desde as coisas mais simples ("não consigo me decidir se gosto daquela blusa") até aquelas que mexem com milhões ("soltar ou não soltar o André do Rap?"), estamos fadados a hesitar em um sem-número de questões. É possível construir um foguete para viajar até outra estrela? Qual é a cura para o coronavírus? Devo cumprir a promessa que fiz ao meu amigo?

Uma pergunta ecoa: é possível estabelecer um caminho para a verdade em todo tipo de situação, seja no campo das ciências naturais, seja no domínio das ciências humanas? É evidente que não pretendo resolver uma pergunta como essa neste ensaio, mas gostaria de esboçar um início de resposta a partir da colocação do problema do método. Na Física, para decidir se uma bala de canhão vai atingir seu alvo, podemos partir de equações bem conhecidas para determinar sua trajetória, sua velocidade e outras grandezas necessárias. Na Medicina, temos muitas estatísticas e testes empíricos sólidos que nos fornecem segurança para a prescrição de medicamentos. Áreas como essas têm métodos bem definidos cujo sucesso é confirmado dia após dia. No Direito, parecemos estar muito longe de qualquer espécie de certeza semelhante. Como caminhar em busca da verdade?

2 — Um problema antigo
Como conhecer algo? Para dominarmos o fogo, foi necessário observar de que modo certos materiais entravam em combustão. Às vezes, um raio acertava em cheio uma árvore e verificávamos que as chamas geradas acabavam ardendo por algum tempo em um pedaço de madeira. Aos poucos, verificamos que poderíamos reproduzir, ainda que em menor escala, algumas fagulhas que tinham a capacidade de gerar um fogo maior a partir da fricção de materiais secos. Elaboramos uma técnica para produzir fogo porque temos a capacidade de raciocinar sobre como as coisas funcionam. Temos uma rotina, organizamos nossos dias a partir de horários, calculamos nossos gastos e quanto vai sobrar para as férias. A nossa vida gira em torno de métodos, quer estejamos ou não cientes disso.

A ciência moderna é o campo do método par excellence. O seu esquema de racionalização e o avanço da técnica científica estão em toda parte. Vivemos com máquinas que nos têm substituído em um número cada vez maior de tarefas, e as perspectivas de nossa obsolescência não são nada animadoras. Mas não é só isso. Toda essa revolução científica impactou profundamente nosso espírito metodológico. Temos regras e procedimentos específicos e altamente especializados para construir computadores, diagnosticar doenças, projetar aviões, calcular paralaxe, analisar indicadores econômicos. Até em lidas mais simples, como consertar janelas, acertar a temperatura e a ventilação do ar-condicionado, dirigir, temos expedientes técnicos. Tudo se tornou uma questão de passos certeiros em direção a um objetivo.

Muito bem. Tudo isso é muito bonito, admito. O modo de ser matemático tem um amplo alcance e é de grande utilidade. O mundo parece estar à nossa disposição. Buscar a algoritmização da vida é atraente. Já de muito tempo é, tem sido — e acredito que — será assim. Platão defendia que o mundo tal qual se apresenta aos nossos sentidos é defeituoso, mas haveria um outro domínio, de maior perfeição, povoado por entidades ("ideias" ou "formas") eternas e imutáveis, que poderiam ser objeto do conhecimento. São essas as verdades inteligíveis que poderiam ser conhecidas com a certeza da geometria por meio da razão. No corpus aristotélico, encontramos no Organon uma importante sistematização do que pode ser considerado método científico, com escritos sobre métodos de investigação diversos: partindo daquilo que é observado em direção a princípios mais fundamentais e gerais; ou partindo do fundamental e geral em direção a outras ramificações desses princípios.

Já nos séculos 16 ao 18, a Revolução Científica provocou um profundo impacto não só nos meios de produção ou na organização social, mas no nosso próprio modo de pensar o pensar. Nesse ambiente efervescente, embora muitos autores pudessem ser aqui citados, como Descartes e Galileu, é notória a influência empirista de Francis Bacon e de David Hume (assim como de Newton) para o nosso modo de ser contemporâneo. Bacon, para fundamentar a ciência aplicada (scientia operativa), enfatizou que apenas uma guinada em direção ao método indutivo permitiria estratégias para a reprodução de fenômenos naturais sob investigação. Hume, crítico das "infindáveis disputas" (endless Disputes) em que os filósofos se metiam para avançar teorias que eram "inteiramente hipotéticas" (entirely Hypothetical), centralizou seus estudos na natureza do homem, salientando que apenas a investigação empírica poderia proporcionar ao pensamento filosófico os avanços que os "filósofos naturais" — aqueles a que chamamos de cientistas — experimentavam. Essa seria a cura para a “paixão por hipóteses e sistemas” (hypotheses and systems).

Por certo que todas essas elaborações respingariam nas ciências do espírito (Geisteswissenschaften). Auguste Comte e John Stuart Mill viveram à mesma época e, inclusive, foram correspondentes durante certo tempo. O primeiro, pai do que se denomina de positivismo (o científico), escreveu, para fundamentar sua teoria do progresso social, que o desenvolvimento da humanidade passa por três estágios sucessivos: o teológico, o metafísico e o positivo. Enquanto nas duas primeiras etapas a mente humana se ocupa de explicar o universo como intervenções de agentes sobrenaturais ou a partir de entidades abstratas, na última nós desistiríamos de buscar causas para os fenômenos, limitando-nos estritamente a estudar as leis que os governam. Mill seguiu linha parecida: o conhecimento deveria ser alcançado apenas pela observação empírica e por raciocínios baseados em dita observação. Essa fixação na realidade positiva e a crença no método (o local onde reside o valor da ciência) os levaram a advogar em nome do estreitamento metodológico entre as diferentes ciências, como se os fenômenos sociais pudessem e devessem ser percebidos como os outros fenômenos da natureza.

Fiz um brevíssimo apanhado de alguns pontos importantes sobre nossa busca por métodos no pensamento humano. Séculos de filosofia (na verdade milênios), estudos sobre epistemologia e ciência se passaram, e até hoje não temos um método específico para qualificar um evento histórico ou predizer seus próximos passos, como saber se alguém que já cometeu crimes reincidirá, qual sequência seguir para interpretar um caso jurídico. Acredito que seja o momento de compreendermos que as ciências humanas não estão nem perto de serem reduzidas a uma construção lógica como queriam Comte e Mill, e talvez só possam mesmo ser conhecidas por meio de considerações refletidas que levem em conta a gênese histórica dos problemas e a nossa própria responsabilidade enquanto intérpretes de práticas sociais.

A falta de um método rigoroso não deveria nos espantar. Para compreender uma obra de arte específica, por exemplo, nós já precisamos ter alguma compreensão prévia sobre o que seja arte (mesmo que, no caso de uma pintura, nós só saibamos que uma obra é produzida a partir de pinceladas em uma tela), pois de outro modo sequer podemos concebê-la como algo a ser compreendido enquanto obra de arte. Isso vale para qualquer coisa que pretendamos conhecer: não podemos entender o que seja uma curva a ser calculada se não sabemos absolutamente nada sobre curvas ou cálculos. O problema do caso da apreciação de uma obra de arte é que existem elementos fundamentalmente normativos em que o método não chega: a obra de arte é bela? Qual o sentido que ela nos passa? Tudo isso depende de tradição e experiências que não são capturáveis nos artifícios das ciências naturais. Podemos calcular sua simetria, utilizar-nos do ponto de fuga, representar figuras com traços mais realistas ou mais caricaturais, mas não temos método para atingir o belo ou o feio. Essas questões não podem ser conhecidas de modo estranho ao eu — típico da ciência moderna da natureza —, mas apenas a partir de intérpretes que não têm meios de se distanciar da própria história, essência da experiência necessária para efetuar juízos nessas áreas do conhecimento. Dilthey já dizia que as ciências humanas são mais normativas por natureza do que as ciências da natureza.

Como reduzir algo que exige análise prescritiva a proposições descritivas? Hans Kelsen, dentre outros motivos, notabilizou-se por conceber uma linguagem de segunda ordem (uma metalinguagem) para aproximar o Direito de uma ciência "pura", longe das suas tendências normativas. Agora eu pergunto: adiantou alguma coisa? Quando discutimos Direito, engajamo-nos em uma análise sobre como ele deveria ser, de que modo deveríamos decidir um caso, como alguém deveria agir. Precisamos dar uma resposta aos problemas jurídicos que surgem, assim como os físicos resolvem questões de balística, os químicos permitem o desenvolvimento de processos industriais, médicos concebem procedimentos cirúrgicos para salvar vidas. O jurista não pode fugir de problemas interpretativos exatamente porque o objeto do seu estudo assim o requer. Se não compreendermos nosso papel propositivo, continuará mais do mesmo: a política toma conta, o Direito é escanteado, e ficaremos inutilmente descrevendo o que acontece, fingindo sermos uma "ciência natural".

3 — O caso privilegiado do Direito
O Direito é um conhecimento pertencente às ciências do espírito. Como já adiantei, o envolvimento do intérprete no estudo do fenômeno jurídico pressupõe uma atitude prescritiva. Ao nos enveredarmos na sua análise, fazemos juízos de valor: para dizer qual o conceito de Direito, levamos em conta certas instituições que julgamos relevantes para caracterizar o fenômeno — precisamos de instituições legislativas, outras judiciárias, por exemplo —, e isso tudo passa por uma prescrição que envolve o propósito do Direito enquanto conceito. Isso tudo é conhecido (ou deveria ser).

Mas há uma evidente diferença entre o Direito e outros domínios das humanas como psicologia, história e sociologia. É no Direito que as disputas por poder e autoridade se revelam mais fortes. Aqui não estou, de modo algum, diminuindo a importância das temáticas enfrentadas por aquelas outras áreas. Apenas me refiro ao fato de que é na discussão sobre e no Direito que todas essas divergências causam mais rupturas na sociedade: dúvidas sobre presunção da inocência, golpes de estado, integração de minorias. Questões que fundamentalmente nos dividem estão abrangidas pelo fenômeno jurídico, e é por isso que a falta de compreensão sobre seu “método” é tão prejudicial.

No positivismo jurídico primevo (ou legalista), do século 19, o "método" forjado em meio a um ambiente em que o positivismo científico tinha força se baseava em "atar" a interpretação dos juízes à legislação, aos conceitos dos professores e aos precedentes, como se isso pudesse impedir a natureza hermenêutica da compreensão humana. Savigny arquitetou métodos para a interpretação do Direito privado — todos que já estudaram Direito conhecem (ou deveriam conhecer) a metodologia baseada em noções gramaticais ou literais, lógicas, sistemáticas, históricas e sociológicas ou teleológicas —, ficando a cargo do intérprete escolher por qual optar, como se fosse simples assim. No realismo jurídico, encontramos um valioso exemplo do quanto temos dificuldade de lidar com a falta de método: o Direito é reduzido àquilo que for dito pelo tribunal, afinal é ele quem tem autoridade para ditar o que vale. Na ponderação alexyana, há um suporte metodológico que tenta encobrir a discricionariedade do intérprete.[2]

Onde está o erro? Por que motivo passamos e voltamos de uma ideia de que a interpretação deve ser impedida para uma concepção que imagina que não há como impor limites à interpretação? Acaba parecendo que há apenas duas opções: (i) ou existe um método perfeitamente bem delimitado que assegure um conhecimento "exatificado" (que para as pessoas em geral coincide com o conhecimento "científico") ou, (ii) se aceitamos que os métodos não nos garantem um conhecimento exato nas ciências do espírito, tudo vira um jogo de poder sem pudores ou escrúpulos?

Parece-me que tudo isso decorre de uma extrema falta de compreensão sobre o que nos define enquanto conhecimento. Se o Direito é um conceito interpretativo, que depende de prescrições e debates profícuos, isso não deveria nos conduzir diretamente a relativismos de todo tipo. As ciências exatas são, sim, muito bem-sucedidas no que elas se propõem. Temos smartphones e carros excelentes hoje em dia. O grande ponto é que não podemos pretender uma unificação metodológica, e isso é difícil de aceitar quando tendemos a acreditar que todo conhecimento deve ser obtido de uma determinada maneira.

Concedo que é difícil de engolir que o conhecimento do Direito enquanto ciência humana dependa da responsabilidade do intérprete. Como poderíamos crer nisso? O método deveria assegurar a separação entre observador e coisa observada. Mas não é bem assim. É bem possível que concluir que a investigação do Direito depende da capacidade argumentativa e honestidade intelectual do investigador talvez não agrade a muita gente. Mas não é “corrigindo” a fórceps uma ciência que existe de modo diferente que mudaremos o mundo. É importante que esses tópicos sejam trazidos para o debate, mas todos os lados devem arcar com seu ônus. Se o Direito pode ser aplicado de qualquer maneira, não há Direito. Se o Direito deve(ria) se portar como ciência da natureza, que venham as evidências empíricas de que é o caso.

Métodos nos passam uma imensa segurança. Sem métodos, parece que ficamos sem chão. Já nos é quase automático procurar explicações causais para todos os eventos. Mas as relações de investigação dentro dos diferentes campos do conhecimento não são — nem deveriam ser — da mesma forma. Se assim o fossem, sequer seria necessária tanta especialização de conhecimento. A história nos mostra que deveríamos abandonar a exatificação do jurídico: no eterno retorno à objetificação do mundo, perdemos a intersubjetividade.

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