Opinião

O STF e o clima: inaplicabilidade da defesa da separação de poderes à ADPF 708

Autor

  • Alessandra Lehmen

    é advogada (Brasil e Nova York) laureada pós-doutoral no Programa Make Our Planet Great Again (Presidência da França/CNRS) doutora em Direito Internacional (UFRGS) mestre em Direito Ambiental (Stanford) e em Direito Internacional (UFRGS) especialista em Negociação (Harvard) e em Direito da Empresa e da Economia (FGV) vice-presidente da Comissão de Direito Ambiental e coordenadora do Grupo Temático de Mudanças Climáticas da OAB/RS.

17 de outubro de 2020, 6h04

A ADPF 708, que tem por objeto o funcionamento do Fundo Clima, inaugura um importante capítulo no Direito do Clima brasileiro [1]. Primeiro litígio diretamente climático a chegar ao Supremo Tribunal Federal, o caso deve tornar-se paradigmático por dois motivos. Primeiro, por conta de seu objeto: o Fundo Clima, fundo de natureza contábil vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, criado pela Lei 12.114/09 como instrumento da Política Nacional sobre Mudança do Clima, vem tendo seus recursos contingenciados [2], a despeito de sua importância para a consecução dos compromissos climáticos brasileiros. Segundo, porque representa uma oportunidade inédita de fazer avançar o debate climático no Brasil.

Na ADPF 708, busca-se compelir o Executivo a garantir o regular funcionamento do Fundo Clima. Nesse contexto, uma importante questão, que vem sendo debatida em litígios climáticos ajuizados em diversas jurisdições ao redor do mundo e sob a égide de sistemas jurídicos de tradições distintas, diz respeito à defesa baseada na separação de poderes, isto é, se, e dentro de que limites, os tribunais podem decidir sobre direitos e obrigações relativos às mudanças climáticas.

A história do desenvolvimento do Estado moderno confunde-se, em larga medida, com a evolução do controle do poder, e a questão da divisão e da limitação do poder estatal permanece vital para o constitucionalismo contemporâneo. Hoje, a maioria dos Estados democráticos organiza-se em um modelo de separação de poderes, no qual as funções estatais primárias de legislar, administrar e julgar são atribuídas a órgãos independentes e especializados, que controlam-se reciprocamente com o objetivo de impedir a concentração de poderes em qualquer deles e, em última análise, riscos à democracia e aos direitos fundamentais. Ao Judiciário não cabe com exclusividade a tarefa de interpretar a Constituição — os três poderes o fazem, nos limites de suas atribuições —, mas é inerente ao arranjo institucional brasileiro que lhe caiba a palavra final nesse sentido.

A defesa baseada na separação de poderes caracteriza-se, nos Estados Unidos, por uma emanação específica, a political question doctrine, estabelecida em 1962 no caso Baker v. Carr [3]. Embora pouco usada desde então — a ponto de a Suprema Corte estadunidense sequer a ter aplicado ao altamente político caso Bush v. Gore —, a doutrina foi reavivada como defesa em casos climáticos.  

Essa contextualização é importante, pois a generalização da defesa da separação de poderes na litigância climática é problemática por diversos motivos: 1) é utilizada em casos climáticos baseados em responsabilidade civil (torts), que não guardam correspondência com casos que sejam fundados em direitos fundamentais (rights-based); 2) a corte, no próprio caso Baker v. Carr, entendeu que, embora se tratasse de um caso político, não havia base para a aplicação da doutrina ao caso concreto; e 3) o Baker Test, estabelecido em 1962 no caso Baker v. Carr, é pouco utilizado nos próprios Estados Unidos, e não encontra correspondência no ordenamento jurídico brasileiro. O Baker Test consiste em seis pontos aos quais é condicionada a aceitação da defesa da separação de poderes. Os casos climáticos que se utilizaram do teste estão centrados nos três primeiros pontos do Baker Test: a atribuição constitucional expressa da questão a outro ente político, a ausência de padrões (standards) judiciais para a solução da questão ou a impossibilidade de decidir o caso sem invadir a seara da formulação de políticas públicas.           

Casos mais recentes demonstram que esse teste não tem o condão de impedir a apreciação judicial de litígios climáticos. Particularmente digno de nota é o célebre Urgenda v. Holanda [4], que refutou o argumento da separação de poderes de forma paradigmática. Em Urgenda, o governo holandês argumentou que uma ordem judicial exigindo que o Estado limitasse suas emissões de gases de efeito estufa violaria a doutrina de separação de poderes, pois uma decisão que caberia a líderes democraticamente eleitos seria indevidamente posta em mãos do Judiciário. O tribunal discordou, concluindo que a lei holandesa exige que o Judiciário avalie os atos dos demais poderes sempre que os direitos dos cidadãos estiverem em jogo, ainda que a resolução do caso tenha consequências de natureza política. O tribunal asseverou que os pedidos em Urgenda dizem respeito essencialmente à proteção de direitos e, portanto, justificam a manifestação judicial. Há exemplos abundantes de casos climáticos que são baseados em direitos fundamentais (rights-based) e em que, por esse exato motivo — porque não se pode subtrair violações a direitos da apreciação do Judiciário —, a defesa da separação de poderes não prosperou, por exemplo Leghari v. Federation of Pakistan, In re Court on its own motion v. State of Himachal Pradesh and others e Gbemre v. Shell Petroleum Development Company of Nigeria Ltd..

O caso Urgenda ilustra, assim, porque casos baseados em direitos fundamentais superam as três formulações do Baker Test: a primeira, porque o assunto não é exclusivamente de interesse de outro poder e a medida requerida deixa aos poderes políticos uma margem de manobra suficiente para a formulação de políticas; a segunda, porque determinar se uma ação do governo federal viola direitos constitucionais é uma prática padrão do Judiciário; a terceira, porque decidir o caso não exige que o Judiciário determine politicamente o "melhor" nível de emissões ou como alcançá-lo, deixando significativa margem de discricionariedade ao Executivo.

Retornando, por um momento, à jurisprudência estadunidense, o voto divergente prolatado pela juíza Josephine Staton no emblemático caso Juliana v. United States [5] traz uma importantíssima lição quanto aos limites e à adequada aplicação da doutrina da separação dos poderes, que pode ser assim resumida: a political question doctrine não é incompatível com a judicial review doctrine, e que não se deve impedir o Judiciário de agir, por excessivo apego à primeira doutrina, quando os demais poderes estiverem "levando a nação ao precipício". Judicial review é, essencialmente, a ideia fundamental de que as ações do Executivo e do Legislativo estão sujeitas a revisão, e possível invalidação, pelo Judiciário. Nesse sentido, o sistema estadunidense aproxima-se do brasileiro.

De fato, há no Brasil clara tendência ao aumento da judicialização de questões constitucionais. Não há, entretanto, incompatibilidade intrínseca entre judicialização e separação de poderes. A questão é exemplarmente abordada em artigo do ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADPF 708, em que esclarece que "(a) conservação e a promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade das maiorias políticas, é uma condição de funcionamento do constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do Judiciário, nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma lei inconstitucional, dá-se a favor e não contra a democracia" [6].

A ADPF 708 é precisamente isto: a judicialização de ações concretas e políticas públicas que afetam diretamente o direito ao meio ambiente equilibrado, prevista no artigo 225 da Constituição Federal. As questões climáticas, como já o estabeleceu a ciência, são ubíquas e transversais às demais questões ambientais. Poder-se-ia argumentar, portanto, que as ações e omissões governamentais discutidas na ADPF 708 configurariam um estado de coisas inconstitucional [7], bem como uma violação objetiva ao princípio da vedação ao retrocesso em matéria ambiental. 

Entretanto, esses argumentos sequer são necessários para a adequada apreciação — e o êxito — dos pedidos formulados no caso concreto. Isso porque, primeiro, o direito ao clima equilibrado e estável é um corolário lógico e inexorável do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no artigo 225 da Constituição Federal. Ações e omissões governamentais em detrimento da efetividade da proteção constitucional ao meio ambiente, e, consequentemente, ao direito ao clima equilibrado, configuram, portanto, matéria constitucional naturalmente vinculada à esfera de atuação do Supremo Tribunal Federal.

Segundo, porque os pedidos formulados na ADPF 708 limitam-se a compelir o Executivo a cumprir as normas que regem o funcionamento do Fundo Clima. Nesse sentido, a recente decisão do caso Friends of the Irish Environment (FIE) v. Irlanda [8] guarda importantes semelhanças com a ADPF 708: a corte irlandesa reconheceu que a política climática em questão foi reconhecida em lei, e que por esta o Judiciário tem por função precípua zelar. A corte não abordou argumentos gerais de direitos humanos aplicados ao meio ambiente e ao clima, mas entendeu que o descumprimento à lei era objetivamente verificável, e determinou ao governo irlandês que tomasse medidas para implementá-la. O mesmo ocorre com relação às normas que regem o Fundo Clima: constatado seu descumprimento, toca ao STF determinar que sejam respeitadas, sobretudo diante dos compromissos e metas climáticas adotados pelo Brasil nos planos internacional e doméstico.

A ADPF 708 representa, pois, a possibilidade de compelir o governo brasileiro a, reativando de forma efetiva o Fundo Clima, dar um passo adiante no cumprimento de seus compromissos climáticos internacionais e nacionais. A crise climática global — objeto, hoje, de amplo consenso científico — não conhece fronteiras, e só pode ser superada através de ampla concertação internacional. Não há solução possível sem a participação efetiva do Brasil, sexto maior emissor de gases de efeito estufa.

Diga-se, ainda, que o mundo em 2020 não é o mesmo de 2019, e sinaliza decisivamente para um novo protagonismo da sustentabilidade. Com vistas à retomada econômica pós-Covid, numerosos movimentos institucionais nesse sentido têm se organizado e se tornado cada vez mais relevantes. O retrocesso quanto ao Fundo Clima e a outras políticas ambientais prejudica enormemente o posicionamento internacional brasileiro. Não se fala, aqui, apenas em boicotes internacionais, mas também de uma nova percepção de risco sistêmico, com a possibilidade concreta de que as mudanças climáticas criem stranded assets, isto é, ativos que, em determinados cenários de aquecimento global, não mais poderão ser utilizados economicamente. Além disso, a inação climática governamental pode, para além dos efeitos econômicos, afetar os direitos de investidores. No caso O’Donnell v. Austrália [9], ajuizado em julho de 2020, a autora alega que a economia da Austrália e a reputação do país nos mercados financeiros internacionais serão significativamente afetadas pela adequação da resposta do governo australiano às mudanças climáticas, e que, por via de consequência, os investidores que negociam títulos do governo australiano enfrentam riscos materiais associados às mudanças climáticas. O desempenho econômico do Brasil depende amplamente, portanto, da execução de políticas ambientais e climáticas sérias e verificáveis.

Para além do caso concreto, a ADPF 708, primeiro e paradigmático caso de litigância climática a chegar ao STF, representa uma oportunidade inédita de fazer avançar substancialmente o Direito do Clima. O Brasil junta-se ao grupo de países cujas cortes constitucionais manifestaram-se, ou estão em vias de fazê-lo, sobre litígios climáticos, e tem a oportunidade de contribuir para robustecer o corpus de decisões sobre clima que tem sido amplamente estudado, e utilizado na prática, por juristas e cientistas do mundo inteiro.

A manifestação da advogada Julia Olson, na audiência do caso Juliana perante a Corte de Apelação do Nono Circuito dos Estados Unidos, não poderia ser mais pertinente para ilustrar a crescente relevância da litigância climática: "(s)e olharmos para o século XX, podemos ver que a discriminação racial e de gênero foram as questões constitucionais daquela época. Quando nossos bisnetos olharem para trás, para o século XXI, eles verão que a destruição climática sancionada pelo governo foi a questão constitucional deste século" [10].

A ADPF 708 representa, portanto, a possibilidade de, por meio da adequada solução do caso concreto, determinar-se a cessação da inação governamental e contribuir para que o país avance no cumprimento de seus compromissos climáticos. Tão ou mais significativamente, é também uma oportunidade ímpar de deslocar-se a Janela de Overton do diálogo climático no Brasil, promovendo o progresso do Direito do Clima e a efetividade da questão constitucional do século XXI.

 


[1] LEHMEN, Alessandra e BORGES, Caio. Climate Fund Case: Climate Litigation reaches the Brazilian Supreme Court.” Oxford Human Rights Hub. https://ohrh.law.ox.ac.uk/climate-fund-case-climate-litigation-reaches-the-brazilian-supreme-court/

[2] Relatório publicado pela Controladoria Geral da União em 21/08/2020 dá conta de que apenas 13% do orçamento federal para medidas de combate às mudanças climáticas foram aplicados em 2019.

[6] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Suffragium – Revista do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, Fortaleza, v. 5, n. 8, p. 11-22, jan./dez. 2009.

[7] O conceito de estado de coisas inconstitucional foi introduzido pela Corte Suprema de Justicia colombiana na década de 1990. No Brasil, foi reconhecido na ADPF 347, que trata do sistema carcerário.

Autores

  • Brave

    é doutora em Direito Internacional pela UFRGS, mestre em Direito Ambiental por Stanford, Rising Environmental Leaders Fellow por Stanford e especialista em Direito da Empresa pela FGV. É sócia do escritório Juchem Advocacia, membro do Conselho de Meio Ambiente da Fiergs e autora do livro Governança Ambiental Global e Direito.

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